• Nenhum resultado encontrado

O nascimento da filha: um “suporte existencial” para a reinvenção de si

PARTE V – POSTURAS TEMPORAIS

15. Tempo do “agora”: o eterno recomeço de João e seus “motivos por que”

15.2. Presente: “agora to vivendo”

15.2.1. O nascimento da filha: um “suporte existencial” para a reinvenção de si

O elemento basilar que encarna esse tempo do “agora” é o nascimento de sua filha, que ocorreu quando o jovem tinha 25 anos de idade. Quando nos concedeu seu último depoimento, a menina estava prestes a completar quatro anos e morava com a mãe, ex companheira de João. Naquela ocasião, o jovem afirmou que cuidava da menina nos finais de semana, mas disse nutrir desejo de adquirir sua guarda para desfrutar de mais tempo com a mesma. Em todo o momento, demonstrou desempenhar a paternidade de modo ativo, acompanhando a filha nos cuidados com a saúde, educação, alimentação e lazer, tudo aparentemente feito com envolvimento emocional intenso.

A descrição do nascimento da filha está entre os poucos detalhes biográficos mais precisos que João nos forneceu. Ainda que tenha demonstrado certa dificuldade em informar o período de tempo dos eventos ocorridos em sua vida, ele mantinha o hábito de citar com precisão o ano, mês e hora do nascimento da menina. Ao se tornar descritivo e insistente em alguns detalhes que envolvem a filha, João nos leva a compreender não apenas a profundidade 47 A imagem da ponte a qual o jovem se refere estava disposta em um varal de fotografias durante o encontro

para a realização do Grupo de Discussões do qual o jovem participou. Fazia parte de uma das metodologias utilizadas pela pesquisa Jovens Fora de Série cujo objetivo era favorecer a autoreflexividade a partir das imagens.

162

afetiva de seu relacionamento com a mesma, mas também o quanto a representação da paternidade tem papel central na construção de um “novo” relato sobre si.

Nos depoimentos de João, a pequena Maria Carolina encarna a imagem de “nova vida”, um “novo João” já que, como afirmou, teria deixado a “vida errada” quando soube que seria pai. A menina representaria, então, uma referência temporal divisória entre o “antes” e o “agora”, uma fronteira entre a “vida errada” e a “vida direita”.

João- “O que me fez mudar muito o jeito que eu sou foi minha filha. Tem que muda agora não pode ser depois. Eu não tinha filho, não tinha nada, não tinha compromisso, eu era voado. (...) Depois que eu tive minha filha foi que eu..pô...tem que mudar...agora parou...

Entrevistador– mas a ideia de mudar veio quando você soube que a sua companheira tava grávida ou quando ela nasceu?

João- Quando eu via ela na barriga eu sabia que ela tava ali. Começou a partir dali. Que descobriu que tava grávida..eu digo; agora tem que começar mudar. Aí já começou o desdobramento de preocupação.

Entrevistador- Aí você saiu da vida errada?

João- Ah...saí (abaixando a cabeça) graças à Deus eu saí (silêncio breve) Entrevistador- Pensando nela?

João- Porque agora eu tenho uma filha, eu tenho que ter outra vida, né. Eu já perdi vários convites pra fazer...perdi não, eu, graças a Deus, rejeitei vários convites (...). Eu disse: pô, não dá pra mim mais não...não quero não. Vou ganhar mil, dois mil, cinco mil...mas...a vida, pra minha filha, vale mais do que isso. Eu não tenho vergonha. Eu teria vergonha de falar: pô, to fazendo ainda...mas eu tenho o orgulho de falar que eu não faço mais”.

Quando solicitado pela equipe de pesquisa a produzir imagens (fotografias) que o ajudassem a contar sua história, a fotografia da menina foi a primeira imagem que João nos apresentou, descrevendo-a como “lente, óculos, menina dos meus olhos”, o que nos levou a entender que a paternidade era o principal prisma sobre o qual o jovem queria olhar ser visto pelo mundo. O enquadramento de “pai de família” significa um apoio na tentativa de redirecionar suas ações e reelaborar sua autoimagem: “esse aí é meu lado positivo da vida,

que eu penso que sempre vai me dar força”, revelou referindo-se à menina. Ela é seu “agora”,

163

agora, a vitória que eu to levando até agora foi minha filha, mano. Que faz minha alegria, entendeu” 48

Quando, em momento posterior, foi solicitado a produzir vídeos sobre seu dia-a-dia, a pequena Maria Carolina mais uma vez abriu a sessão. Em primeiro plano, apareceu João com a menina, preparando-se para assistirem a um filme infantil enquanto ele lhe dirigia as falas para a câmera com frases do tipo: “fala eu te amo papai”; “fala eu sou o amor do meu pai”. Em segundo plano, apareceu sua companheira sentada no sofá, quase imóvel, organizando os preparativos para a comemoração do aniversário da menina que se aproximava. Ao referir-se a essas imagens diz: “aquele vídeo lá de cinema mostra que eu sou muito família, entendeu”, expressando assim um retrato idealizado de família e de paternidade, construído com substratos de passado e de projeção. Em outro momento argumenta: “minha filha é a pessoa

que nuca vai me decepcionar”, indicado o lugar ideal que a menina ocupa em sua vida.

A filha aparece em todos os seus argumentos de “mudança”, condensando a justificativa de que por ela é preciso afastar-se de atividades arriscadas para manter-se vivo e lhe proporcionar uma “vida decente”. Assim, é tomada como o fio orientador de sua conduta, um ponto de referência para organizar as ações no presente.

João- Eu falei pra mim e pra Deus: Não quero tirar um centavo de ninguém pra dar pra minha filha. Isso aí não me compete mais não. Se eu cometer esse erro...eu não sou um homem...porque um homem tem que ter sua palavra. Então você passa a ser covarde, cosigo mesmo. [...] hoje eu não tô pecador não [...] Eu sempre tive essa personalidade...se eu to certo, eu to certo. Se eu to errado, eu baixo minha cabeça e fico quieto. Graças à Deus, eu não cometo mais essas infrações...preciso...

Entrevistador- aprendeu com a experiência?

João- A experiência...e o medo. Eu tenho medo de perder minha filha. Minha filha é tudo pra mim.

Sempre que fala da filha, menciona seu dilema com a vida “vida errada” e vice-versa. Ao descrever o que representava para si a imagem da menina numa foto que produzira diz:

Tudo para mim. Minha filha. Essa é a Maria Carolina, que deus me deu. Faço de um tudo, graças a Deus não preciso tirar nada de ninguém para dar para minha filha. Isso

48 Em sua penúltima entrevista, João mencionou, de modo inesperado, a existência de uma “outra” filha, fruto de

um “outro relacionamento”, que possivelmente tivera antes de vir para o Rio de Janeiro. Ainda que o fato não tenha ficado claro, já que o jovem desconversou em seguida e não voltou a tocar no assunto, pensamos no quanto revelar esse “detalhe” poderia quebrar o enquadramento baseado na paternidade que vinha construindo até então. Seria este um dos motivos de tal encobrimento? Essa foi uma das hipóteses não comprovadas que construímos ao longo da análise.

164 foi uma coisa que eu combinei com Deus, mesmo. Quero fazer de tudo certo para dar para minha filha. Fazer a alegria da minha filha e a tristeza dos outros eu acho que não é legal, entendeu. Eu prefiro me dispor a acordar cedo, pra dar do bom e do melhor pra minha filha. Eu costumo dizer: dentro da minha condição, eu dou do bom e do melhor pra ela. O qual eu não tive, eu faço por ela.

A dualidade entre fazer “certo” e fazer “errado”, constante especialmente nos relatos em que a filha aparece, aponta o quanto manter-se fora da “vida errada” ainda representa um “desafio” para o jovem. Viver “corretamente” em seu contexto de vida é desafio que exige vigilância constante para não retornar ao que diz ter abandonado. Não à toa, para o jovem, “cada minuto é um desafio pra a gente superar a vida”. João sente-se em constante estado de risco de revir a esse “passado”, seja retornando a condutas “deixadas”, seja sendo responsabilizado por atitudes pregressas. Ao mesmo tempo em que diz querer “esquecer o passado”, insiste em lembrar para negá-lo, cotidianamente. É como se precisasse convencer a nós e a si mesmo de que “agora” era uma “nova pessoa”. E a filha é o suporte principal nesse movimento diário de “superação” do referido “desafio” de manter certa direção na conduta.