• Nenhum resultado encontrado

PARTE I: ESCOLHAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

2. Danilo Martuccelli: ferramentas para análise macrossociológica dos projetos

2.1. Os contextos estruturais e sentidos singulares

A noção de provas refere-se aos desafios históricos produzidos pela sociedade, representados culturalmente e desigualmente distribuídos que os indivíduos se veem obrigados a enfrentar cotidianamente no processo de fabricação de si. São obstáculos estruturais, compartilhados pelos membros de um coletivo, mas vivenciados de modo singular, a partir de posições diversas e experiências diferentes (MARTUCCELLI e SINGLY, 2012). Cada indivíduo, ao ser confrontado com esses obstáculos construídos socialmente, produz respostas singulares.

Martuccelli aponta ainda quatro grandes características analíticas das provas. A primeira delas refere-se a situações difíceis e dolorosas com as quais os indivíduos são confrontados, o que pode produzir, fatalmente, distintas percepções dos processos vivenciados. Assim, as provas são inseparáveis de uma dimensão narrativa, revelando-se como um mecanismo de autopercepção, na qual os indivíduos interpretam suas vidas como um percurso sujeito a um conjunto permanente de provações. A narrativa torna a vida uma aventura onde é preciso enfrentar inúmeras experiências em que se veem constantemente testados.

A segunda característica supõe a existência de particularidades dos sujeitos, uma vez que, ao serem confrontados com uma prova, cada um é capaz de produzir respostas diferentes

24

a ela. Isto quer dizer que cada um constrói as próprias estratégias para lidar com as provas, as quais podem ir desde uma capacidade de adaptação à de enfrentamento ou até a atitudes de fuga, evasão. Enfim, essa segunda característica faz referência à capacidade do ator para afrontar os processos difíceis que vive.

A terceira característica das provas diz respeito a seu caráter seletivo, já que, ao serem confrontados com tais obstáculos, os indivíduos podem obter sucesso ou falhar, e o resultado desse processo produz diferentes consequências. A vida social tem sido cada vez mais marcada por experiências desafiadoras (divórcios, períodos de desemprego, falhas escolares) que, para além de suas razões estruturais, são experimentadas como erros pessoais, obrigando os indivíduos a encontrar a força necessária para enfrentá-las. Neste sentido, como aponta Martuccelli, a noção de prova restaura do mecanismo seletivo seu caráter contingente, já que é em função de seus próprios êxitos e fracassos que os atores vão forjando suas existências e construindo subjetividades (MARTUCCELLI, 2007 b).

A quarta característica analítica das provas é que estas se encontram dispostas num certo conjunto estrutural, não sendo, portanto, independentes das posições e dos contextos sociais vivenciados, o que quer dizer que cada contexto social possui um conjunto de provas mais ou menos pré-determinadas. Assim, não se trata de qualquer tipo de desafio ou problema experiencial, mas de um conjunto de grandes desafios estruturais, que se apresentam de forma distintiva e específica para cada grupo social.

É nesse sentido que a noção de provas se apresenta como um importante operador analítico no estudo dos projetos dos jovens da pesquisa em questão. Ela nos permite mapear os desafios estruturais, ligados às posições sociais dos sujeitos ao mesmo tempo em que permite analisar as diferentes estratégias organizadas pelos jovens para lidar com tais obstáculos. Em última instância, a própria ação projetiva pode ser considerada no contexto de estratégias para lidar com provas estruturais. Se as provas produzem singularidades, modos de ser que dão contornos às ações, impactam também as expectativas, a relação com o tempo, enfim, os planos que os indivíduos elaboram para suas vidas.

Em suma, o conceito de provas implica em reconhecer que a modernidade e todas as transformações dela advindas trouxe consigo um processo estrutural de produção de desafios que quando enfrentados, produzem singularidades. Deste fato advém o interesse em mapear fenômenos estruturais com base nas percepções e vivências individuais.

Entretanto, se o processo de singularização aponta para a pluralidade irredutível dos universos de significados contidos nas práticas individuais, também não exclui certo aspecto padronizado da produção de sentidos, intimamente associado à expansão do individualismo e

25

ao processo de secularização. Aqui referimo-nos ao que Martuccelli, (2007 b) denomina de “objetivo existencial genérico” que permeia todos os demais sentidos de existência, o qual o autor chama de “projeto de realizar a própria vida”. É o objetivo existencial comum que está na origem de qualquer outro objetivo que um indivíduo possa ter na vida. Esse alvo genérico existencial é visto quase como um “dever” de todo indivíduo. Trata-se de um requisito comum e subterrâneo que atravessa todo o conjunto plural de universos de significados e se expressa nas múltiplas combinações pessoais feitas pelos atores.

Martuccelli ainda aponta duas combinações típicas de sentidos feitas pelos indivíduos na busca por realizar esse motivo existencial genérico que muito nos interessam, uma vez que implicam no modo de relacionar-se temporalmente com a vida. A primeira maneira é combinar esse objetivo de “realizar a própria vida” com uma forma de consumismo existencial: a vida não teria outro sentido senão extrair satisfação de uma série de pequenos momentos de felicidade, mortais e passageiros. Neste sentido, o objetivo do indivíduo não é buscar o significado a vida, mas dar-lhe um pouco mais de significado. O alvo é fazer a vida interessante, seja através da lógica hedonista, ou por uma lógica consciente, através da busca por manter a curiosidade para escapar ao tédio do tempo morto. Assim, o importante é multiplicar as experiências, vivendo com a máxima intensidade possível. Em última análise, dinheiro, relacionamentos, trabalhos, acabam sendo percebidos e vividos como recursos para fazer a vida interessante (MARTUCCELLI, 2007 b).

Esse objetivo existencial genérico também se manifesta com outros universos de significados, com aparência radicalmente antitética. É o caso das pessoas que têm como interesse inscrever-se para a posteridade. Para estes, o sentido da existência permanece primordial. Este anseio por um sentido às vezes aparece profundamente laicizado quando se trata, por exemplo, de prolongar a vida, perpetuando o nome da família. Mas, outras vezes, é mobilizado por um sentido de natureza religiosa, como o de fazer da vida um testemunho particular, por exemplo. Essas são algumas, dentre outras combinações de sentido possíveis, nas quais permanece o objetivo existencial genérico de “fazer algo com a nossa própria vida” (MARTUCCELLI, idem).

A caracterização deste “projeto de realizar a própria vida” nos permite compreender as diversas posturas temporais que permeiam as ações dos indivíduos. Ao projetarem suas ações, há um objetivo existencial, fruto do processo estrutural de singularização da sociedade, que acaba por afetar a maneira como os atores agem em relação, por exemplo, à escolarização, foco de nossa atenção.

26

Para não ficar apenas nos aspectos puramente subjetivos que podem permear os projetos de vida, retornemos ao estudo dos contextos em que em que as projeções se dão, lançando mão também da noção de suportes existenciais proposta por Martuccelli. Como argumenta o autor, cada um de nós possui ao redor de si um conjunto de apoios múltiplos, materiais ou simbólicos, composto de relações de amizade, relações familiares, profissionais, entre outras. Tais apoios podem ser considerados suportes existenciais na medida em que nos permitirem criar estratégias para lidar com as provas cotidianas. Assim, não se trata de supor que todas as relações que estabelecemos se tornam necessariamente suportes. Segundo Martuccelli (2007a. p.61) “compreender os diversos apoios em termos de suportes, consiste em examiná-los dentro de seu caráter particular, tendo em conta a sua regularidade (ou não) e a sua consistência”. Em suma, depende da intensidade da relação que se estabelece. Nesses termos, entende-se que as condições materiais (recursos financeiros, propriedades, entre outros.) podem ser suportes, embora não os únicos e nem sempre os mais importantes. A fé pode ser um suporte na medida em que a pessoa projeta uma representação simbólica que a permite sustentar-se nela. As relações interpessoais também podem representar suportes. Em nossa sociedade, fortemente embebida pelos meios de comunicação, não é incomum que existam até suportes fictícios, como mostra o autor:

(...) Às vezes nosso melhor “amigo” é um personagem de novela ou herói de um filme. Não se trata de nenhuma maneira de uma negação do real, nem de uma nova versão de um ideal do “eu”. Senão de um “amigo”, porque não deixamos de falar com ele, de receber seus conselhos e até de julgá-lo e traí-lo (MARTUCCELLI, 2007a, p. 61 – tradução nossa).

A noção de suporte visa, então, apreender esse conjunto de elementos heterogêneos, reais ou imaginários, que se desdobram através de um emaranhado de vínculos. Graças a tais vínculos, os quais possuem diferentes implicações segundo as situações e as práticas, os indivíduos se sentem sustentados em meio à vida social. Em última análise, o estudo dos suportes gira em torno da consistência dos entornos que rodeiam os atores.

Sendo o suporte a experiência fundadora que auxilia o indivíduo em seu processo de individuação, quando há fragilidade de suportes, a autonomia é prejudicada. Conforme explicita o mesmo autor, “quanto mais frágil é a situação social do indivíduo, mais obrigado ele se encontra a assegurar-se por si mesmo, sobretudo, por falta de outra alternativa que mostre possibilidade para o sucesso” (op., cit., p. 73) Se os suportes materiais ou simbólicos forem débeis, a experiência dos indivíduos de se autogovernar torna-se ainda mais difícil. Do

27

mesmo modo, quando os suportes assumem posição de tutela, favorecendo o desenvolvimento de relações de dependência, a autonomização dos sujeitos é tolhida.

Assim como representam a matriz da autonomia, os suportes fornecem também a substância essencial para a elaboração dos projetos de vida. É nesses termos que se pretende pensar o papel da escola na vida dos jovens. Conforme defende Carrano (2011), considerando-se o contexto de multiplicidade de experiências de tempo e de alargamento dos campos de possibilidades, característicos da sociedade atual, a escola precisa ser um espaço que contribua para a autonomização dos indivíduos, não seu condicionamento. Deste modo, uma das funções primordiais da escola é possibilitar aos jovens a compreensão da realidade do mundo no qual estão inseridos e contribuir para que eles façam escolhas conscientes sobre suas trajetórias pessoais. Enfim, sem desconsiderar os demais espaços formativos, concebe-se a escola, mais precisamente o Ensino Médio, como potencial promotor de suportes para que os jovens elaborem seus projetos de vida.

28