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PARTE III AS PROVAS ESTRUTURAIS QUE CONSTRANGEM AS EXPECTATIVAS

7. Expectativas de futuro e os impactos socioterritoriais

7.2. O efeito favela-cidade

Como já mencionamos, a distinção núcleo-periferia não é a única forma de segregação socioespacial da cidade do Rio de Janeiro. A presença de favelas em vários de seus bairros, em especial nos mais próximos do Centro, aponta para o tipo de segregação “favela-cidade” que põe de lados distintos indivíduos que residem próximo. Agora, falaremos não mais em “região de moradia”, mas em “tipo de moradia”.

Ao cruzarmos o tipo de moradia com dados da trajetória escolar dos estudantes, encontramos correlação significativa (P= 0.003) entre abandonar a escola no Ensino Fundamental e morar em comunidade de favela. Entre os que nunca abandonaram, 75,8% não residiam em comunidade, enquanto 61,3% residiam. Logo, moradores de comunidade se mostraram mais propensos ao abandono escolar nesse nível de ensino.

Gráfico 41- Abandono no E. Fundamental e tipo de moradia (%)

Via de regra, moradores de comunidades apresentam percentuais de distorção idade- série mais elevados do que aqueles que não residem nessas áreas. Dentre os estudos que apontam nesta direção, podemos citar o efetuado em 2018 por Alves, Franco e Ribeiro, também focado na cidade do Rio de Janeiro. A partir de microdados amostrais do Censo 2000

NR três ou mais duas vezes uma vez nunca 4.6 3.3 5.2 25.6 61.3 4.5 2.2 0.9 16.6 75.8 Mora em comunidade Não mora em comunidade

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(IBGE), os autores chegaram à conclusão que, dentro do município do Rio de Janeiro, alunos da oitava série do Ensino Fundamental, moradores de favela com entornos abastados, tinham 30% a mais de chances, em relação aos moradores de “bairros”, de possuírem um ano ou mais de distorção idade-série, enquanto moradores de favelas com entorno popular apresentam 16% a mais de chance.

Utilizando dados do mesmo Censo realizado em 2000, a pesquisa de Salata (2010), evidenciou que morar em favela exerce efeitos estatisticamente significativos sobre a alocação do tempo entre a escola e o mercado de trabalho. De acordo com esse estudo, que investigou jovens do sexo masculino (entre 15 e 24 anos), moradores da cidade do Rio de Janeiro, residir em favela diminui a probabilidade desses sujeitos somente estudarem e aumenta as chances de não estudarem nem trabalharem.

Um dos modelos explicativos comumente utilizados para fundar a hipótese de relação de causalidade entre morar em comunidade e certos desfechos sociais, como estes observados no campo educacional, é a categoria conhecida como efeito de vizinhança. Uma das formas de compreender como ele se dá no âmbito da educação está relacionada aos “modelos de papel social”, que partem do pressuposto de que as crianças aprenderiam sobre os comportamentos considerados normais ou aceitáveis a partir dos adultos com que frequentemente interagem em suas vizinhanças. Desta forma, aquelas que crescem em vizinhanças muito segregadas ou pobres estariam apartadas de modelos de adultos bem sucedidos via escolarização e, como consequência, estariam menos propensas a apresentarem comportamentos e atitudes que levariam ao sucesso escolar (altas expectativas educacionais e esforço), já que não seriam tão expostas a evidencias diretas de que estas atitudes e comportamentos sejam úteis e desejáveis (RIBEIRO e KOSLINSK, 2009). Outra forma de explicar o efeito vizinhança seria por meio do “mecanismo Institucional” (semelhante ao de “geografia das oportunidades” utilizado anteriormente) que parte do pressuposto de que os indivíduos podem ser afetados pela qualidade dos serviços que são oferecidos em suas vizinhanças.

Em nossa dissertação de mestrado este foi um dos aspectos sobre o qual nos debruçamos. Queríamos compreender se havia correlação entre expectativas de futuro e o tipo de moradia dos jovens da pesquisa (morar /não morar em comunidade). Contudo, diante de algumas sugestões de aprofundamento rebebidas da banca que examinou nosso trabalho, resolvemos voltar a esta investigação, agregando-lhe novos cruzamentos e análises. A seguir, apresentamos resumidamente alguns pontos abordados na dissertação para, em seguida, ampliarmos o debate acerca dos impactos de residir em comunidade de favela nas expectativas de futuro dos sujeitos investigados.

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Ao cruzarmos as expectativas de futuro dos jovens com o tipo de moradia (morar/não morar em comunidade)30, obtivemos um resultado pouco previsível: os jovens que residiam

em comunidade representam o maior percentual entre aqueles que nutriam expectativas de ingresso em nível superior.

Gráfico 42-Local de moradia e expectativas de futuro (%)

Agregando as opções escolhidas por tipo de expectativas, confirma-se, como disposto no gráfico a seguir (gráfico 47) a preferência pela continuidade da escolarização entre moradores de comunidade (83,6%) em detrimento dos não moradores de comunidade (75,0%). Naquele momento, para compreender esse dado aparentemente contraditório, apostamos na hipótese de que as expectativas de futuro dos jovens moradores de comunidade poderiam estar sofrendo impactos benéficos de políticas de inclusão social que vinham ocorrendo no país naquele contexto. Consideramos o cenário de alargamento do campo de possibilidades proporcionado pela relativa melhoria das condições de vida, pela ampliação dos anos de escolarização, pela abertura de chances de acesso ao nível superior e pela consequente multiplicação dos casos de referência que vinha ocorrendo em áreas periféricas.

30 Nos questionários da pesquisa Jovens Fora de Série foi utilizado o termo “comunidade” para referir-se àquilo

que o IBGE denomina como “aglomerados subnormais”, ou seja, assentamentos irregulares conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos e palafitas, entre outros. Nesta pesquisa, utilizamos os termos favela e comunidade indistintamente para nos referirmos aos mesmos tipos de moradia. Ainda, chamamos de “tipo de moradia” o “morar” e o “não morar” em comunidades de favelas.

Prestar vestibular e fazer ensino superior

Prestar vestibular e continuar trabalhando

Procurar emprego

Fazer curso profissionalizante e me preparar para o trabalho Trabalhar por conta propria/negocio

da familia

Ainda não decidi

Tenho outro plano

39.10 15.10 13.00 29.40 4.00 8.70 7.70 32.90 12.30 9.60 29.80 4.40 11.40 10.10 Mora em comunidade Não mora em comunidade

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Entendíamos que, se não podia explicar, ao menos nos ajudava a compreender, em certa medida, a maior expectativa de cursar o ensino superior entre moradores de comunidade.

Gráfico 43- Expectativas de futuro e morar em comunidade (%)

Já naquela ocasião compreendemos a necessidade de aprofundar a investigação inserindo nela aspectos regionais, afinal, morar em favela na Zona Sul não é o mesmo que morar em favela na Zona Norte, ou Oeste, dadas as nítidas diferenças socioespaciais já apontadas anteriormente. Observando o perfil geral da amostra, vimos que 53,8% dos participantes residiam em comunidade, enquanto 40% não residiam. Ao cruzarmos esses tipos de moradia (comunidade/não comunidade) com a região de moradia dos participantes, observamos que a maioria dos que afirmaram morar nas Zonas Central, Sul e Norte residiam em comunidade. Quando se tratava da Zona Oeste, o resultado foi inverso: a maioria (69,9%) dos participantes que habitam na região não moravam em comunidade.

Gráfico 44(%)- Morar em comunidade e Zona de Moradia 0 20 40 60 80 100 Expectativa escolar Expectativa

não escolar Indecisos 83.6 24.7 8.7 75.0 24.1 11.4 Mora em comunidade Não mora em comunidade 0.0 10.0 20.0 30.0 40.0 50.0 60.0 70.0 80.0 90.0

Zona Norte Zona Oeste Centro Zona Sul 77.1 32.1 83.3 85.7 22.9 69.9 16.7 14.3 Mora em comunidade Não mora em comunidade

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De acordo com o Censo do IBGE (2010) existem 763 comunidades de favelas na cidade do Rio de Janeiro, a maior parte delas concentradas na Zona Norte e a menor parte na Zona Oeste, conforme mostra a imagem abaixo, o que nos ajuda a compreender as proporções verificadas em nossa pesquisa. Vemos que há mais favelas nas regiões onde as expectativas foram menos prejudicadas, regiões estas situadas mais próximas ao centro da cidade. Esse suposto “efeito favela” seria então um efeito de morar próximo a zonas economicamente mais desenvolvidas? Fica claro que é preciso considerar ao mesmo tempo região e tipo de moradia para medir impactos da segregação sócio-espacial sobre expectativas de futuro dos jovens.

Mapa 2- Localização da favelas da cidade do Rio de Janeiro

Disponível em https://acidblacknerd.files.wordpress.com/2012/10/favelas-normal.jpg

Para compreender o impacto de morar em comunidade nas expectativas de futuro dos jovens passamos a investigar as possíveis diferenças entre moradores e não moradores de comunidade situados na mesma região. Assim, criamos um filtro só para moradores de comunidade e cruzamos expectativas de futuro com região de moradia. Em seguida, criamos outro filtro somente para não moradores de comunidade e cruzamos as mesmas variáveis. A comparação entre os dois cruzamentos nos mostra apontamentos interessantes.

Zona Oeste

Centro

Zona Sul Zona Norte

88 Gráfico 45-Expectativas de não moradores de comunidade por região (%)

Gráfico 46- Expectativas de moradores de comunidade por região (%)

Confrontando os dois gráficos vemos que apenas na Zona Norte moradores de comunidade tinham mais expectativas escolares (98,8%) do que não moradores de comunidade (73,7%), sendo essa região a responsável, então, pelo resultado observado anteriormente. Admitimos que esse resultado ainda não nos é perfeitamente compreensível. Que especificidades da Zona Norte nos ajudariam a explicar esse “efeito positivo” de morar em comunidade sobre as expectativas de futuro dos jovens, situação que não ocorre nas demais regiões?

Zona Norte à parte, nas demais regiões houve decréscimo de expectativas, ainda que sensíveis, entre os moradores de comunidade. Na Zona Oeste, 75,9% dos não moradores de

Expectativa escolar Expectativa não escolar Indecisos 73.7 15.8 15.8 75.9 23.0 9.2 100.0 0.0 0.0 Zona Norte Zona Oeste Centro/Sul Expectativa escolar Expectativa não escolar Indecisos 96.8 25.8 6.5 71.8 33.3 5.1 90.9 9.1 18.2 Zona Norte Zona Oeste Centro/Sul

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comunidade tinham expectativa de ampliar a formação após o Ensino Médio, enquanto 71,8% dos moradores o possuíam. Nas Zonas Centro/Sul, 100% dos não moradores de comunidade nutriam tal desejo, indo para 90,9% entre os moradores de comunidade. Na Zona Oeste o decréscimo foi de 4,1 %, enquanto na Zona Sul foi de 9,1%. Isso nos permite dizer que morar em comunidade de favela tem efeito negativo sobre as expectativas de futuro mais nas Zonas Central e Sul, onde o contraste socioeconômico é maior, do que na Zona Oeste, onde a discrepância favela-cidade é menor. Seja como for, na Zona Oeste as expectativas dos jovens são as mais prejudicadas, independente de morarem ou não em comunidade.

Em suma, as expectativas de futuro dos jovens sofrem impactos da organização socioespacial da cidade, tanto no âmbito da segregação territorial como da segmentação residencial. Ainda que de modo sutil, morar em comunidade de favela, prejudica mais moradores das zonas mais abastadas da cidade (Central e Sul). Contudo, a discrepância regional mostrou impactos mais contundentes sobre as expectativas dos jovens, sendo os moradores da Zona Oeste os mais prejudicados pelas precariedades vivenciadas naquele contexto periférico. Assim, a reprodução socioterritorial das desigualdades pode ser pensada como uma das provas estruturais que os jovens enfrentam no momento de elaborarem suas apostas para o futuro.

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