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Partimos, no início deste trabalho, em busca da compreensão da articulação existente entre o par alcoolismo/doença e da definição da noção de pessoa no modelo terapêutico de A.A.. Para isso, adentramos no universo social construído pelos membros da irmandade dos Alcoólicos Anônimos, participando de seus rituais terapêuticos, particularmente de suas reuniões de recuperação.

Passamos a conviver na companhia daqueles que se identificam como doentes alcoólicos em recuperação, buscando entender esse outro universo de significação construído em torno da “experiência do alcoolismo”, entendida como uma “doença crônica e fatal” capaz de levar seu portador ao chamado “fundo do poço”, isto é, às perdas relacionais, sobretudo, na esfera familiar e no trabalho.

Nesse encontro, foi possível compreender o problema do alcoolismo a partir do “ponto de vista do nativo”, desvendando os processos de construção de significado do fenômeno por ele vivido. Em A.A., como destacado nos capítulos 5 e 6, o alcoolismo é entendido como uma doença do indivíduo e, ao mesmo tempo, da família, que se propaga pelo “contágio” social.

A estratégia terapêutica se baseia na construção da identidade de “doente alcoólico em recuperação”, a partir de mecanismos simbólicos colocados em prática para dar conta da “doença alcoólica”, entre os quais se destacam a noção de “fundo do poço” e a questão do anonimato.

O modelo de A.A. cria, assim, as condições necessárias para a construção de uma ordem que possibilita ao alcoólico atribuir e organizar um sentido à sua experiência, apreendida, agora, como doença. Nas reuniões do grupo, formula-se um discurso, sobre o alcoolismo e seus efeitos “físicos” e “morais”, que permite aos AAs se reconhecerem nas experiências vividas, que são mutuamente compartilhadas.

A irmandade opera, então, como uma ordem moral no interior da qual a experiência da “anomalia” adquire um sentido. Como lembra Douglas (2001: 58): “Existem várias maneiras de lidar com as anomalias. Negativamente, podemos ignorá- las, percebê-las; ou, ainda, percebê-las e condená-las. Positivamente, podemos enfrentar deliberadamente a anomalia e tentar criar uma nova ordem do real, onde a anomalia se possa inserir.”

Quando falam do mal que os aflige, os AAs falam, sobretudo, dos conflitos enfrentados com os valores e as regras da vida social, nas quais estão envolvidos. A fala da doença é uma fala sobre si mesmo, constituindo uma referência simbólica fundamental, uma linguagem que permite organizar e dar um sentido à experiência vivida, ao mesmo tempo em que delineia os contornos de si mesmos entendidos como “doentes alcoólicos” e se fabrica a noção pessoa dentro do grupo.

Mas quais são os contornos dessa “pessoa alcoólica” fabricada dentro da irmandade? Qual a relação entre a noção de pessoa produzida dentro do modelo de A.A. e a ideologia do individualismo moderno? Ora, se é certo que a “teoria nativa” enfatiza o aspecto individualista da noção de pessoa, reproduzindo em seus contornos o “valor indivíduo”, característico do campo ideológico moderno, a partir dos dados etnográficos, podemos estabelecer uma teoria antropológica da “pessoa alcoólica” que efetivamente contraste com a ideologia do individualismo, conferindo, assim, uma especificidade ao modelo terapêutico de A.A.. Para tanto, retomemos um pouco mais a maneira como os AAs descrevem sua trajetória etílica:

Quando bebi pela primeira vez, eu achei ter tomado um estimulante. Houve uma reação muito forte em mim. Uma troca de personalidade, uma troca de comportamento. Eu me senti um outro homem. Inicialmente, eu parecia ter descoberto uma forma de vida que me agradava. Foi uma euforia tremenda. Eu era tímido e eu me livrei da timidez. Me soltei perante a sociedade. Me desinibi por completo. Essa foi uma fase que não durou muito não. Logo vieram as conseqüências, e o alcoolismo foi aumentando e veio uma segunda

fase do alcoolismo, que foi a falta de personalidade. Eu dependia

eu bebia, do lugar que eu estava eu agia de uma maneira. Eu me

tornei um homem só com quatro, cinco, oito, dez personalidades. Me

tornei um homem sem personalidade fixa. O alcoolismo foi me

tirando a personalidade (João, entrevistado em 24 ago. 2002).

A fala de João apresenta os dois regimes de alteridade vinculados ao consumo de álcool, que ajudam a apreender os novos contornos da teoria da “pessoa alcoólica” construída dentro do grupo. Em um primeiro momento, trata-se de um regime de alteridade produtivo, no qual o ato de beber conduz à troca com o “outro” e, portanto, à sociabilidade (eu ≠ outro). A exemplo dos “convivas” citados por Lévi-Strauss (cf. Capítulo 2), que reforçam seus laços à medida que trocam o vinho à mesa, o álcool atua como um desinibidor que leva ao “outro”, fortalecendo os laços sociais. Em uma reunião de recuperação, João narra nos seguintes termos as reações quando de seu “primeiro gole”:

Ao ter contato com a bebida alcoólica, inicialmente, eu tive diversas reações. Em uma das reações que eu tive, eu pensei ter tomado um estimulante tamanha foi a mudança que o alcoolismo me fez. Eu era aquele cara tímido, aquele cara sossegado e rapidamente fiquei falante, fiquei um cara completamente diferente. Ali tinha se manifestado a mudança no comportamento do ser humano, no momento em que eu tomei aquele primeiro gole (João, reunião de

recuperação aberta, 31 ago. 2002).

O álcool tem um efeito estimulamente, de maneira que o bebedor se sente “eufórico”, superando sua “timidez” (“eu me soltei perante a sociedade”) e estabelecendo uma relação de reciprocidade, fundamental para construção de sua identidade (“Eu me senti um outro homem”; “Ali tinha se manifestado a mudança no

comportamento do ser humano”).

Em um segundo momento, trata-se de um regime de alteridade destrutivo, no qual o álcool e sua ingestão são identificados e percebidos na experiência como “doença” resultante da progressão do alcoolismo. Com efeito, o ato de beber conduz agora ao “outro em si mesmo” (eu = outro), que enfraquece a troca, colocando o bebedor em uma espécie de curto-circuito simbólico, no qual ele passa a simbolizar a totalidade sozinho, perdendo os laços que o ligavam a seu grupo social, isto é, ele perde os amigos, a família e o trabalho, ao deixar de se integrar, podendo chegar mesmo à “loucura” ou à “morte prematura”.

Assiste-se a um dilaceramento do “eu” (“Eu me tornei um homem só com

quatro, cinco, oito, dez personalidades”), isto é, à fragmentação do sujeito, na qual

“vários eus” passam a disputar a primazia de uma só pessoa, ameaçando sua integridade (“Me tornei um homem sem personalidade”). Essa fragmentação contraria por completo a idéia, de forte tradição ocidental, da indivisibilidade do indivíduo. Diante desse fato empírico, o processo de fabricação da “pessoa alcoólica” pode ser relativizado e pensado, a partir da seguinte expressão:

DAR = ES + EB

A noção de pessoa, aqui, é pensada em meio ao dilaceramento e à fragmentação do sujeito, provocados pela doença, acentuando o estranhamento de si mesmo (“O

alcoolismo foi me tirando minha personalidade”). Esse, inclusive, é o sentido presente

na imagem, citada acima, do conflito entre o Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que ilustra o comportamento do alcoólico na ativa. O “doente alcoólico em recuperação” aparece, portanto, fracionado entre o “eu sóbrio” e o “eu(s) bêbado(s)”, vivendo um conflito que compromete a troca com o outro, de maneira que ele passa a negar a alteridade exterior, fechando-se no círculo da dependência.

Mas, como o modelo terapêutico de A.A. possibilita a reconstrução subjetiva de seus membros? Que processo simbólico, subjacente a esse modelo, permite ao alcoólico recuperar os laços sociais, notadamente na família e no trabalho?

O modelo possibilita a reconciliação dos dois regimes de alteridade — um produtivo e outro destrutivo — através da compreensão da troca como o fundamento tanto da sociabilidade como da recuperação do cuidado de si e das relações sociais perdidas no tempo do alcoolismo ativo. A troca vivida dentro do grupo torna possível a fabricação da “pessoa alcoólica”, a partir da construção simbólica de uma fração do “eu” — o “eu bêbado” — como o “outro bêbado” —, criando assim a alteridade necessária em todo processo identitário —, que é internalizada e compartilhada por todos os membros de A.A. O “eu bêbado” passa por um processo de objetivação, apreendido a partir dos “sintomas” físicos e morais da doença, ganhando, assim, um “corpo” e um “espírito” doentes.

A alteridade inscrita simbolicamente nas falas de cada um dos AAs funda a possibilidade de se pensar numa noção de pessoa que passa agora a incorporar o “outro”