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Reunião de entrega de fichas: uma celebração da sobriedade

Entre os vários tipos de reunião realizados pela irmandade, uma merece um destaque especial, a saber, a chamada “reunião de entrega de fichas”. Trata-se de uma reunião aberta, na qual são forjadas importantes representações sobre o álcool, o alcoolismo e sobre o alcoólico, entendido como um “doente alcoólico em recuperação”. Nela, os AAs, seus amigos e seus familiares celebram o “tempo de sobriedade”, conquistado após a entrada no grupo.

Embora os AAs repitam que devem se abster do uso do álcool um dia de cada vez, evitando “só por hoje” o “primeiro gole”, as fichas recebidas marcam simbolicamente o “tempo da sobriedade”, possibilitando ao alcoólico uma reconstrução de sua história de vida. Durante a “partilha”, o alcoólico relembra as perdas vividas no tempo do alcoolismo ativo e as conquistas após a prática do programa de recuperação. Como diz Paulo, “o programa de A.A. não é só para parar de beber. O A.A. ajuda a

manter a sobriedade”. Com efeito, se a expressão “só por hoje” marca o “tempo da

abstinência”, exigindo uma renovação diária do compromisso de se evitar o uso de bebida alcoólica, as fichas recebidas significam a reafirmação do objetivo principal do modelo terapêutico, isto é, a manutenção da sobriedade.

No grupo Sapopemba, essa reunião faz parte de seu calendário de atividades e ocorre geralmente no último sábado de cada mês. Todo mês, são definidos os nomes daqueles que irão receber as fichas e também do alcoólico a ser homenageado durante a reunião. O responsável pela organização do grupo anota e grava os nomes dos companheiros nas fichas, indicando a respectiva data de ingresso e a do aniversário, além do tempo total de sobriedade. Já a homenagem, em geral, é feita a um membro veterano do grupo, com 10 anos ou mais de sobriedade. Em sua partilha, ele ressalta sua vida de dor, perdas e sofrimento antes de conhecer o programa de recuperação de A.A. e suas conquistas após a entrada na irmandade. Diante de outros membros do grupo, de seus familiares e de visitantes, ele reforça o legado de A.A., reafirmando os significados construídos coletivamente em torno do álcool e do alcoolismo. Ao término do encontro, ele é novamente chamado e lhe é entregue um presente, uma lembrança em nome de todos os companheiros. Todos o cumprimentam, reforçando, assim, os laços que os unem à irmandade.

A relação dos membros que vão receber as chamadas “fichas da sobriedade” em um determinado mês é obtida a partir do “livro de registro” de ingresso, no qual se encontra a relação de nomes com as respectivas datas de entrada no grupo. Esse livro é usado como referência para definir os membros que ainda mantém um vínculo com a irmandade e, por isso, recebem, das mãos de seu padrinho, ao final de cada partilha, uma ficha, cuja cor corresponde ao tempo de sobriedade.

O padrinho é, em geral, um membro do grupo com mais tempo de sobriedade, escolhido pelo alcoólico, e que será o responsável por aconselhá-lo durante sua trajetória rumo à sobriedade. Sua intervenção é importante nos momentos de “crise de abstinência”, durante os quais o alcoólico pode sofrer uma “recaída”.

As fichas da sobriedade são de plástico em cores diferentes, cada uma obedecendo a uma escala que marca o tempo de sobriedade do alcoólico:

Quadro 3 – Fichas de sobriedade (tempo/cor) Tempo de A.A. Ficha de cor

Ingressante Amarelo

1 mês Verde

3 meses Azul

6 meses Rosa

9 meses Vermelha

1 e 2 anos Verde/Madrepérola – luxo 3 anos Marrom/Madrepérola –luxo 4 anos Vermelho/Madrepérola –luxo 5 anos Branca/Madrepérola – luxo 6 anos Amarelo-claro/Pérola –luxo 7 anos Azul-claro/ Pérola – luxo 8 anos Amarelo-ouro/Pérola – luxo 9 anos Laranja/Pérola – luxo 10 anos Ouro-velho/Pérola-luxo 15 anos Azul/Pérola-luxo 20 anos Lilás/Pérola-luxo 25 anos Vermelho/Pérola-luxo 30 anos Azul e Branca/Pérola-luxo

fonte: Escritório de Serviços Gerais de A.A. – ESG

Essas reuniões obedecem a uma seqüência semelhante às das reuniões de recuperação, feitas todos os dias, e se repetem em todos os grupos de A.A.. Garcia (2004: 92), contudo, observa uma situação específica do grupo denominado Doze Tradições, na qual o “alcoólico passivo” — termo utilizado pela autora para se referir ao

“doente alcoólico em recuperação” — pode solicitar uma alteração no dia de recebimento da ficha, devido à “falta de apoio na família”. Nesses casos, a entrega de fichas ocorre em uma reunião fechada, durante os dias úteis da semana58. Embora, em minha pesquisa, não tenha observado nenhuma situação semelhante, ela pode ser entendida como parte da autonomia dos grupos para definir a forma de suas reuniões.

A reunião de entrega de fichas reafirma a identidade do “doente alcoólico em recuperação”, selando seu pertencimento ao grupo. Também pode ser pensada, como veremos a seguir, como um ritual, no qual são dramatizados os significados em torno do álcool e do alcoolismo, que ajudam, ao mesmo tempo, a definir uma compreensão sobre si mesmo e a delimitar os contornos da própria irmandade59.

Ao final da reunião, são servidos sucos e refrigerantes, acompanhados de salgados e bolo feitos pelos membros do grupo e seus familiares. Trata-se, novamente, de um “beber sóbrio” que reforça a relação dos AAs entre si e deles com seus familiares e amigos. Nesse contexto, revive-se o circuito da troca, no qual o dar e o receber definem a reciprocidade necessária para o reforço os laços sociais.

Ao contrário da reunião de recuperação, na qual todos os AAs ocupam uma posição de igualdade entre si ao proferirem suas partilhas, a celebração da sobriedade também define as afinidades e as hierarquias no interior do grupo. Assim, na celebração festiva é possível observar os membros mais antigos do grupo reunidos entre si, enquanto os novatos buscam uma maior aproximação com seus respectivos padrinhos.

Abraços, gestos de amizade, palavras e sorrisos traduzem o caráter comemorativo desse momento, no qual os AAs brindam e celebram, junto com os amigos e familiares, a manutenção da sobriedade.

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Garcia (2004: 92) também aponta situações nas quais o homenageado escolhe uma data comemorativa, solicitando que a reunião seja em um dia da semana e aberta a amigos e convidados.

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A cerimônia de entrega de fichas é tratada por Garcia (2004: 91-92) como um “ritual” que traz fortes marcas da representação do álcool e do alcoolismo, ao mesmo tempo em que celebra o tempo de abstinência do alcoólico. Já em sua análise, Fainzang (1996: 99-102) se refere apenas à cerimônia La

remise de la carte rose como um ritual. Trata-se de uma cerimônia na qual, após seis meses de sua

entrada no grupo, o ex-bebedor recebe uma carta rosa, que confirma sua abstinência em relação ao álcool, reafirmando sua ligação com o grupo Vie Libre.