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Para que um grupo assuma a “responsabilidade de transmitir a mensagem de A.A. ao alcoólico sofredor que procura ajuda” (Alcoólicos Anônimos, 1996: 13), é preciso que os AAs se ocupem das tarefas necessárias tanto para a organização de suas atividades fundamentais quanto para a manutenção da sobriedade de seus membros, tais como:

• providenciar e manter a sala de reuniões;

• programar as reuniões e atividades do grupo, mantendo um painel de avisos para a fixação das notícias e dos boletins de A.A.;

• disponibilizar a literatura aprovada pela Conferência de A.A.;

• disponibilizar a publicação brasileira da irmandade, a revista Vivência, e familiarizar os membros do grupo com ela;

• garantir que haverá sempre água e café disponíveis no local das reuniões; • possibilitar aos alcoólicos o acesso às informações sobre o grupo e as

atividades gerais de serviços na área;

• manter contato com os demais grupos de A.A., através do Escritório de Serviços Gerais (Alcoólicos Anônimos, 1996: 14-29).

Em geral, o novato é instado a participar das atividades dos grupos após um período de sobriedade51. Ele passa inicialmente por uma espécie de “reconhecimento”, devendo tomar contato com a literatura da irmandade. Só depois de participar das algumas reuniões ele pode se encarregar de algum dos “serviços” essenciais para o funcionamento do grupo, entre os quais se destacam os postos de: coordenador; secretário-geral; tesoureiro; representante nas reuniões intergrupais (RI), que participa de reuniões de serviço com representantes de outros grupos para partilhar a experiência de seu grupo na transmissão da mensagem de A.A.; representante de serviços gerais (RSG), que representa o grupo na Conferência de Serviços Gerais de A.A.;

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O período para que o alcoólico comece a assumir as atividades de manutenção do grupo pode variar de grupo para grupo e depende, também, do desenrolar do tratamento. No grupo Sapopemba, esse período é de três meses após a entrada na irmandade. Todavia, durante a pesquisa de campo, assisti a membros assumindo a coordenação das reuniões após um mês de sobriedade.

representante da revista Vivência (RV), que é o responsável pela divulgação entre os membros do grupo da revista brasileira de A.A.; representante do Comitê de Trabalho com os Outros (CTO), responsável por fazer a divulgação da irmandade na comunidade, notadamente, em escolas e nas igrejas, no horário da missa; e secretário de manutenção.

A escolha dos servidores é feita na chamada “reunião de serviços”. Observou-se que o grupo Sapopemba fazia algumas diferenciações entre seus membros. As posições que exigiam um maior domínio da leitura e/ou da escrita, em geral, eram atribuídas àqueles com nível de formação escolar mais elevado ou com mais anos de prática do programa de A.A. Já a função de manutenção da sala e preparo do café para as reuniões, por exemplo, era ocupada por um membro com baixa escolaridade. Alguns membros recusaram o papel de coordenador das reuniões, reconhecendo certas dificuldades de leitura. Esse dado também foi observado por Garcia, em sua pesquisa no grupo Doze Tradições, no qual as posições que demandavam relações externas e/ou domínio da escrita também eram ocupadas pelos profissionais mais qualificados, com nível de escolaridade mais elevado e/ou com mais anos de adesão. A posição de secretário de manutenção, cuja função é cuidar da arrumação e limpeza da sala, era ocupada por indivíduos semi-analfabetos, com maior dificuldade em articular o discurso (Garcia, 2004: 76).

Embora essas diferenciações existam, é importante salientar que não encontrei em minha observação nenhuma diferenciação relacionada às atividades executadas pelos homens e pelas mulheres. Em relação a esse aspecto, é importante retomarmos o que diz Mäkelä (1996: 175 – trad. minha), quando se refere às posições do homem e da mulher nos “serviços” em A.A.:

Na sociedade em geral, as mulheres são subordinadas aos homens, e a divisão do trabalho é diferenciada: em parte alguma mulheres gozam de um status igual ao do homem, e algumas tarefas pertencem à mulher e outras aos homens. Na contramão, A.A. enfatiza que todos os membros são iguais em seu alcoolismo e que nenhum é mais alcoólico do que o outro. No interior de A.A., eles são também persuadidos a acreditar que todas as tarefas dos serviços são importantes tanto para o grupo quanto para a recuperação individual. Ao servir café ou ao arrumar as cadeiras, eles sabem que estão agindo de uma maneira igualmente valorizada.

No grupo Sapopemba, tanto os homens como as mulheres executam todas as tarefas necessárias à manutenção da sala: limpam, varrem, fazem o café e deixam a sala em ordem para a realização das reuniões, assumindo, assim, as tarefas essenciais para o funcionamento do grupo 52. Algumas reuniões de recuperação, que tive oportunidade de observar, também eram coordenadas pelas mulheres que participam da irmandade.

Os escolhidos não são propriamente empossados num cargo, mas passam a ser considerados “servidores de confiança” do grupo. Teoricamente, as posições descrevem apenas “serviços e responsabilidades”, para os quais devem ser “eleitos” membros com o único objetivo de assegurar o bem-estar do grupo em geral (Alcoólicos Anônimos, 1996:26).

Durante a pesquisa etnográfica, pudemos observar a enorme importância que exercer os serviços no grupo tem na recuperação dos membros de A.A.. Eu procurava chegar mais cedo às reuniões e logo era recebido pelo “servidor” responsável pela tarefa de manutenção da sala de reuniões. Mauro, 72 anos, casado, 23 anos de A.A., aposentado, um membro “veterano” do grupo, me dizia satisfeito: “é importante para

minha recuperação ajudar os companheiros, receber; isso me ajuda também”.

A importância da prestação de serviços à irmandade remonta às suas origens e foi sintetizada pelos co-fundadores como um dos três legados de A.A.: “Recuperação, Serviço e Unidade”. O primeiro diz respeito ao compromisso do alcoólico de utilizar o programa adotado para sua recuperação individual; o segundo refere-se às tarefas executadas no interior da irmandade, deixando-a sempre em condições para receber alguém que procure ajuda; e, enfim, o terceiro legado afirma a importância da unidade da irmandade para a recuperação do indivíduo doente.

A recuperação de um alcoólico depende da manutenção da unidade do grupo, no qual ele poderá readquirir a responsabilidade perdida nos tempos do alcoolismo ativo. Embora o modelo seja centrado na recuperação individual de seus membros, estes só podem controlar a doença do alcoolismo participando das atividades dentro da irmandade. É isso que afirma Bill Wilson, ao se referir à importância do grupo para a recuperação do alcoólico:

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Embora as mulheres assumam as tarefas na organização do grupo Sapopemba, é importante ressaltar que algumas delas encontram dificuldades devido ao fato de também terem de “cuidar de casa”. Certa vez, em uma conversa, uma das mulheres que participa do grupo me disse: “Até que gostaria de assumir

Aflora em cada membro a percepção de que ele não é senão uma pequena parte de um grande todo [...] Ele aprende que o clamor dos seus desejos e de suas ambições internas deve ser silenciado sempre que possa prejudicar o Grupo. Torna-se evidente que o Grupo precisa sobreviver para que o indivíduo viva (Alcoólicos Anônimos, 1996: 14).

É na relação entre o indivíduo e o grupo que os três legados se concretizam e que se constrói a eficácia do modelo terapêutico, de maneira que o indivíduo só pode se reconhecer como um “doente alcoólico em recuperação”, assumindo a responsabilidade no cuidado de si mesmo, no interior da rede de ajuda vivida dentro da irmandade.

Assiste-se, assim, à concretização da máxima proposta por A.A. de que é preciso que se coloque “os princípios acima das personalidades”. Somente dessa maneira, o alcoólico pode readquirir a responsabilidade pelo cuidado de si mesmo na busca pela sobriedade. Essa exigência nos coloca diante de uma forma específica, para usar a expressão de Fassin (1996: 199- 281), de “gouvernement de la vie”. Ou seja, o exercício da responsabilidade individual no cuidado de si mesmo se manifesta no interior de um modelo de gestão coletiva da saúde, tal como o proposto pela irmandade. Como afirma esse pesquisador (1996: 273 – trad. minha), trata-se nesse caso, “da coexistência de interpretações e de políticas que se referem ao individual e ao coletivo, ou mesmo à integração de normas e práticas de tipo individualista à gestão coletiva da saúde”.

O modelo aponta para a existência de um elo intrínseco entre o indivíduo e o grupo, sinalizando também para uma relativização da noção substantiva de indivíduo, entendido como um ser autônomo e auto-suficiente. Como sublinha Castel, em entrevista a Claudine Haroche: “um indivíduo não existe como uma substância e, para que exista como indivíduo, é necessário ter suportes; é, portanto, necessário que se interrogue sobre o que há ‘atrás’ do indivíduo, que lhe permite existir como tal”53 (Castel e Haroche, 2001:13 — grifo do original – trad. minha).

É nesse sentido que devemos entender a exigência de que, em A.A., para que o indivíduo floresça, é necessária a existência do grupo, que opera como um “suporte” capaz de permitir o exercício da autonomia e da responsabilidade individual. Ainda,

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Com explica Castel (2000: 30 – trad. minha), “o termo ‘suporte’ pode ter várias acepções [...] é a capacidade de dispor de reservas que podem ser de tipo relacional, cultural, econômica etc, e que constituem os fundamentos sobre os quais pode se apoair a possibilidade de se desenvolver as estratégias individuais”.

segundo Castel (2001: 166 – grifo do original – trad. minha), “o indivíduo não é dotado

a priori de consistência”. Logo, ele necessita do apoio e da base fornecida pela matriz

coletiva e relacional da irmandade para desabrochar.

Nessa linha, para compreendermos a construção da pessoa dentro do modelo de A.A. é necessário voltarmos nossas atenções para o grupo de A.A., pois é dentro da matriz coletiva e relacional fornecida pelo grupo que o indivíduo pode florescer, recuperando a responsabilidade no cuidado de si mesmo.