• Nenhum resultado encontrado

O relato da reunião de recuperação e da reunião de entrega de fichas possibilita uma aproximação com o contexto etnográfico em que me envolvi durante as muitas horas de pesquisa de campo.

Nesses encontros, os AAs compartilham suas experiências individuais — histórias de vida do tempo em que faziam uso do álcool e da recuperação —, falam de suas aflições, de suas dores, de seus conflitos e, sobretudo, de suas “perdas relacionais”, sofridas na família e no trabalho, em tempos do alcoolismo ativo. Eles falam também de suas alegrias e conquistas, notadamente da recuperação de seus vínculos familiares e de trabalho, após a entrada na irmandade. Trata-se de um momento no qual todos celebram e atualizam os princípios que presidem ao modelo de A.A..

É no interior dessa arquitetura que se define o contexto prático-discursivo no qual se desenrolam os rituais terapêuticos, em torno dos quais o modelo da irmandade constrói sua eficácia. As reuniões de recuperação constituem um poderoso mecanismo para a ritualização dos princípios da associação, por meio do qual comunicam e legitimam sua condição de “doentes alcoólicos em recuperação”, ao mesmo tempo em que garantem sua unidade.

Mas esses encontros podem ser entendidos como um ritual? Qual o lugar do ritual no modelo terapêutico da irmandade? Essas questões têm chamado a atenção dos pesquisadores que estudam as associações de ex-bebedores. Exemplo disso é o trabalho de Fainzang (1996: 97-99) que, ao delimitar os fundamentos que possibilitariam a edificação de uma cultura de abstinência no grupo Vie Libre, analisa a reunião dessa entidade como uma “prática ritualizada”, evitando tratá-la propriamente como um ritual:

Não é suficiente que uma palavra ou um gesto desempenhem um papel específico para constituir um ritual. É necessário que estes elementos sejam a tal ponto portadores de sentido que sua supressão retire o sentido da cerimônia ou do ato praticado. O fato de eles se repetirem e que tenham uma função não é suficiente para os fazer entrar na categoria dos ritos. É, portanto, mais exato falar de prática ritualizada, que de um ritual no sentido estrito, na medida em que a repetitividade dos gestos e dos elementos que as compõem não são suficientes para dar um sentido específico e unívoco ao conjunto da seqüência. (1996: 97 – trad. minha).

Seguindo esse raciocínio, Garcia (2004: 80) também evita tratar as reuniões de recuperação de A.A. como rituais, ressaltando sua maleabilidade e mutabilidade:

Apesar de seguirem uma ordem padronizada e conter elementos portadores de significados como em um ritual, estas reuniões, previstas na programação terapêutica da instituição, sofrem alterações e retematizações, de acordo com o contexto e os elementos que a compõem, a cada ato.

Embora seja certo que as reuniões das associações de ex-bebedores possam ser retematizadas e sofrer variações que, no caso específico de A.A., obedecem à autonomia dos grupos, as interpretações acima avaliam as práticas terapêuticas das respectivas entidades a partir de seus aspectos formais, definindo seus ritos e rituais no contexto de uma análise morfológica de seus elementos constitutivos. Acredito, porém, ser necessário uma avaliação mais precisa das práticas terapêuticas presentes em A.A. para se compreender o lugar que o ritual ocupa dentro de seu modelo terapêutico.

Para tanto, é fundamental um retorno a Mauss e seu livro La Prière, publicado em 1909, no qual busca definir “qual espécie de atos os ritos constituem” (Mauss, 2002: 35 – trad. minha). Embora interessado, particularmente, no âmbito religioso, Mauss reconhece que os atos, mesmo quando individualizados, também podem ser entendidos como rituais, na condição que “existam neles alguma coisa de regulamentado, regrado”60 (2002: 36 – trad. minha). O que distingue os atos cotidianos, as festas e os jogos dos ritos é que os primeiros não são eficazes por si mesmos, dependendo das circunstâncias em que são praticados; não possuem, segundo Mauss (2002: 36 – trad. minha), uma “verdadeira eficácia material”61. Já os ritos são eficazes por si mesmos e são capazes de “exercer uma ação sobre certas coisas”, de maneira que “um rito é uma ação tradicional eficaz”.

60

“Os usos da polidez, aqueles da vida moral, têm formas tão fixas como os ritos religiosos os mais caracterizados. E, de fato, tem-se freqüentemente os confundidos com estes últimos. Esta confusão não é, aliás, sem fundamento, em certa medida. É certo que o rito se religa ao simples uso por uma série ininterrompida de fenômenos intermediários. Freqüentemente, aquilo que é uso cotidiano aqui é um rito alhures; aquilo que foi um rito torna-se um uso etc.” (2002: 36 – trad. minha).

61

Mauss delimita a especificidade dos ritos, comparando-os com os atos cotidianos de polidez: “Mas, o fato que os diferencia, é que no caso dos atos de polidez, de costumes etc, o ato não é eficaz por si mesmo. Isso não quer dizer que ele seja estéril em conseqüências. Somente seus efeitos importam, principalmente ou exclusivamente, não devido a suas qualidades próprias, mas àquilo que ele prescreve. Ao contrário, os ritos agrários, por exemplo, têm, para aqueles que o praticam, efeitos provocados pela natureza mesma de sua prática. Graças ao rito as plantas crescem. Sua virtude deriva não apenas do fato dele estar em conformidade com certas regras dadas, ela deriva ainda, e sobretudo, dele próprio. Um rito tem, portanto, uma verdeira eficácia material” (Mauss, 2002: 36 – trad. minha).

Percebe-se que esse autor não se interessa apenas pelos aspectos morfológicos do rito, mas por sua eficácia, não apenas real, mas sim pela maneira como ela é concebida:

Portanto, é considerando não apenas a eficácia ela mesma, mas a maneira pela qual esta eficácia é concebida que nós poderemos encontrar a diferença específica [do rito] (...) A eficácia emprestada ao rito não tem nada de comum com a eficácia própria dos atos que são materialmente realizados. Ela é representada nos espíritos como inteiramente sui generis, porque se considera que ela vem inteiramente de forças especiais que o rito teria a propriedade de movimentar. Ainda que o efeito realmente produzido resultasse dos movimentos executados, haveria rito se o fiel o atribuísse a outras causas. Assim, a absorção de substâncias tóxicas que produz fisiologicamente um estado de êxtase é um rito para aqueles que imputam este estado não a suas causas reais, mas às influências especiais (2002: 37 – grifos do original – trad. minha).

Nesse sentido, o rito não se caracteriza apenas pelos seus aspectos formais, mas sobretudo, por sua capacidade de suscitar a crença em seus efeitos, assumindo, assim, um caráter simbólico. Os ritos têm sua eficácia ligada diretamente a certas práticas simbólicas capazes de reafirmar a crença daqueles que os vivenciam.

Aprofundando a linha seguida por Mauss, a obra de Mary Douglas também é uma referência segura para se pensar o rito como uma “ação simbólica eficaz”, capaz de provocar uma “mudança na experiência vivida” (apud Segalen, 1998: 17 – trad. minha). Em seus estudos sobre os rituais de pureza e impureza, a autora mostra que o rito também não pode ser analisado exclusivamente dentro do domínio religioso: “Para se estudar os rituais de poluição, é necessário buscar compreender as idéias que uma população pode ter da pureza como uma parte de uma totalidade mais vasta” (Douglas, 2001: 22).

Nessa perspectiva, os ritos visam proporcionar uma unidade à experiência vivida, cujo sentido é eminentemente simbólico:

Os ritos de pureza e de impureza dão uma certa unidade à nossa experiência. Longe de serem aberrações que desviam os fiéis do objetivo central da religião, eles são atos essencialmente religiosos. Por meio deles, as estruturas simbólicas são elaboradas e exibidas à luz do dia. No quadro dessas estruturas, os elementos díspares são relacionados e as experiências díspares adquirem um sentido (2001: 24).

Aqui também o rito não é definido apenas a partir de seus aspectos morfológicos, mas sim como um elemento simbólico, capaz de classificar e ordenar o cotidiano, integrando as práticas sociais dentro de uma ordem de sentido. Como sublinha Segalen: “existe rito aqui onde se produz um sentido” (1998: 18 – trad. minha). Essa é, aliás, segundo Douglas (2001: 81), a característica demasiadamente humana:

Animal social, o homem é um animal ritual. Suprima uma certa forma de rito, e ele reaparecerá sob outra forma com tanto mais vigor quanto mais intensa for a interação social. Sem cartas de condolências ou de felicitações, sem cartas postais ocasionais, a amizade de um amigo distante não tem uma realidade social. Não existe amizade sem ritos de amizade. Os ritos sociais criam uma realidade que, sem eles, nada seria. Pode-se dizer sem exagero que o rito é mais importante para a sociedade que as palavras para o pensamento. Porque, pode-se sempre saber alguma coisa e só depois encontrar as palavras para exprimir aquilo que se sabe. Mas, não há relações sociais sem atos simbólicos.

Ora, as reuniões praticadas pelos AAs parecem se enquadrar perfeitamente na definição do rito e dos rituais feitas tanto por Mauss como por Douglas. Nas reuniões, os alcoólicos dramatizam suas experiências, revivendo através de suas narrativas o “mito” de origem da irmandade expresso em seus doze passos e nas suas doze tradições. Os AAs assumem para si mesmos e perante os demais companheiros que são “doentes alcoólicos em recuperação”, isto é, “impotentes perante o álcool” e incapazes de administrar suas vidas, devido os problemas provocados pelo uso compulsivo de bebidas alcoólicas. Eles também reconhecem que foram “derrotados pelo álcool” e que necessitam da ajuda de um Poder Superior para a sua recuperação; fazem ainda um inventário moral dos danos causados a outrem no tempo do alcoolismo ativo e assumem a necessidade do ressarcimento das pessoas lesadas e, enfim, transmitem a mensagem da irmandade a outros “doentes alcoólicos” que se encontram na mesma situação.

Como conseqüência, os membros do grupo reafirmam seu pertencimento a A.A., introjetando seu modelo terapêutico, revivendo-o a cada narrativa. As reuniões de recuperação são, portanto, verdadeiros rituais terapêuticos, capazes de permitir aos AAs resignificar suas experiências, dentro de uma ordem simbólica, no interior da qual elas adquirem um sentido62.

62

Mais adiante no capítulo 7 (tópico 7.2), analisaremos a questão da entrada do bebedor no grupo de A.A. e a construção da identidade do “doente alcoólico em recuperação” como um “ritual de passagem”, nos moldes definidos por Van Gennep e retomados por Turner (1974).

Assim, estamos próximos da definição dos ritos e dos rituais feita por Douglas (2001: 82,83), que os entende como uma unidade espaço-temporal que

desempenham um papel criador ao nível dos atos. O ritual permite concentrar a atenção na medida em que ele fornece um quadro, estimula a memória e liga o presente a um passado pertinente. [...] Não basta, portanto, dizer que os rituais nos ajudam a viver com mais intensidade uma experiência que teríamos vivido de qualquer maneira. O rito não é comparável as ilustrações que acompanham as instruções escritas para se abrir uma lata de conserva. Se não fosse mais do que isto, se não fosse mais que um mapa ou um diagrama, num estilo dramático, daquilo que já sabemos, ele viria sempre após a experiência. [...] Os ritos não desempenham esse papel secundário. Pode bem ser que se antecipem e nos permitam formular a nossa experiência, ou ainda que nos dêem a consciência de fenômenos que, sem eles, nunca conheceríamos. O rito não só exterioriza a experiência, não só a ilumina, como a modifica pela própria maneira como a exprime. [...] Sem rito, certas coisas não seriam jamais experimentadas. Os acontecimentos que ocorrem em série adquirem um sentido a partir da relação que tem com outros acontecimentos da mesma série.

As reuniões de A.A. são rituais, nos quais o espaço e o tempo atuam como categorias coletivamente construídas, delimitando uma ordem de sentido na qual cada atitude, gesto e palavra desempenha um papel significativo para a concretização de uma efetiva “cultura de recuperação”. Nessa medida, o relato etnográfico permite entrever uma configuração espaço-temporal que garante a unidade da reunião de recuperação, capaz de possibilitar aos AAs atribuir um sentido às suas experiências etílicas.

A seguir, vejamos como se organiza essa configuração espaço-temporal, bem como se constrói a linguagem através dos quais o ritual terapêutico da irmandade se expressa e garante sua eficácia.