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A apreensão do modelo de A.A. como um sistema remete ao elo existente entre o plano simbólico e as práticas individuais, de modo que o consumo compulsivo de álcool pode ser entendido nos moldes de uma totalidade ou daquilo que, para Mauss, compõe o “fato social total”. Como sublinha Lévi-Strauss (2001: XXV): “o fato social total não chega a ser total pela simples integração dos aspectos descontínuos [...] é preciso também que ele se encarne em uma experiência individual”71. Para aprendermos o modo como os significados sobre o alcoolismo são elaborados, orientando as ações dos AAs no sentido da recuperação, é necessário voltar nosso olhar para as experiências trocadas entre os membros do grupo durante as reuniões de reuniões de recuperação.

Nas reuniões, os AAs trocam suas experiências dos tempos do alcoolismo ativo, bem como as conquistas vividas com manutenção da sobriedade:

Meu nome é Aurélio, um doente alcoólico em recuperação que freqüenta as reuniões para deixar de ser bêbedo. Para deixar de ser

cachaceiro [...] O Aurélio era compulsivo por cachaça. O álcool

estava me dominando. Eu já tava completamente dominado pelo

álcool. Na ativa, eu fui agressivo com minha saúde. Desenvolvi uma hipertensão. Quando bebia perdia tudo, deixava de lado a família, os amigos, o trabalho. Com A.A. consegui manter minha família, meus

amigos. Agora tenho tudo [...] É preciso ter consciência da doença, do que ela causa (Aurélio, reunião de recuperação aberta, 14 fev.

2002).

71

Ainda segundo Lévi-Strauss (2001: XXVI): “a única garantia que podemos ter de que um fato total corresponde à realidade [...] é que ele seja apreensível de uma experiência concreta: primeiro, de uma sociedade localizada no espaço e no tempo, mas, também, de um indivíduo qualquer de uma dessas sociedades”.

Uma análise das partilhas feitas durante as reuniões de recuperação revela que, embora fundadas na experiência intransferível da dor e do sofrimento, elas utilizam um

código comum e específico para expressar os dilemas e embaraços da prática social e o

confronto cotidiano entre as situações vividas e os valores próprios do contexto sócio- cultural em que vivem. Em outras palavras: os AAs elaboram uma linguagem própria para significar a experiência do alcoolismo, que possibilita, ao mesmo tempo, uma compreensão de seu estado de saúde e uma interpretação para seu mal.

Byron Good (1994) chama a atenção, a partir dos resultados de pesquisa etnográfica feita em pequenas vilas no Irã, com o objetivo de interpretar o “sofrimento cardíaco” (heart distress) entre seus habitantes e suas relações com a medicina hipocrática, para o fato de que os significados da doença, presentes na fala do doente, são construídos no interior de uma “rede semântica” (semantic network). Ou seja, os contornos da doença são delineados a partir do “ponto de vista nativo”, através de um conjunto de símbolos-chave que compõem uma rede de significações72.

No grupo de A.A., a experiência do alcoolismo é interpretada a partir de uma linguagem própria a uma ordem de sentido, dentro da qual seus conteúdos significativos são construídos, ao mesmo tempo em que se fabrica a identidade do “doente alcoólico em recuperação”. Nessa medida, o alcoolismo é entendido dentro de um quadro cultural diferencial, de maneira que o modelo terapêutico da irmandade compõe um “sistema simbólico” que possibilita aos AAs edificarem uma rede de significados em torno da experiência da doença, na qual constroem uma representação específica de si mesmos.

Busca-se neste trabalho justamente mapear as categorias, expressões e metáforas constitutivas da linguagem própria ao sistema de A.A., visando esclarecer os significados elaborados em torno do álcool e do alcoolismo que informam sobre a construção da noção de pessoa no interior da irmandade. Na partilha feita por Aurélio, reproduzida acima, encontram-se grifadas algumas das categorias e expressões que compõem um quadro amplo de referências, que será apresentado aqui de um modo propositadamente formal, o que implicará, em larga medida, agrupá-las e recontextualizá-las segundo nossos princípios de classificação formal.

72

Para Good (1994: 54), “a análise de uma rede semântica permite registrar sistematicamente os domínios de sentidos associados aos símbolos-chave e aos sintomas em um léxico médico, domínios que refletem e provocam os modos de vida e as relações sociais, e faz da doença uma ‘síndrome de significação e experiência’”.

O primeiro indício para elaboração desse quadro encontra-se no leque variado de expressões e metáforas — espaciais, orgânicas — de que o grupo lança mão para se referir ao indivíduo portador da doença alcoólica e ao alcoolismo. Trata-se, em um primeiro momento, de expressões que se referem ao chamado tempo do “alcoolismo ativo” e que indicam tanto um modo particular de significar a experiência do beber considerado excessivo — a saber: “bebedeira” e “embriaguez” — como reforçam a situação de marginalidade em que os AAs se encontravam antes de entrarem para a irmandade, traduzida nas imagens do “bêbado”, do “cachaceiro” e do “pinguço”.

Essas expressões estão diretamente ligadas ao espaço do bar, local onde ocorre o consumo de álcool, aqui representado, fundamentalmente, pela cachaça; bebida de alto teor alcoólico e baixo custo, acessível à maioria dos membros do grupo e aos moradores do distrito de Sapopemba. Do consumo considerado abusivo da cachaça, ou pinga, como é comumente conhecida, derivam um leque de categorias de forte apelo estigmatizante, indicando a ruptura com as regras do “bem-beber”.

As figuras do “bêbado”, do “cachaceiro” e do “pinguço” apontam, então, para a força do estigma, nos moldes assinalados por Goffman (1975: 13), isto é, “um atributo que lança um profundo descrédito” sobre aquele que é discriminado. Para o autor (1975: 11-12):

a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontrados.

Dessa maneira, o estigma refere-se à “[...] situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena” (1975: 7). Aquele que bebe de um modo considerado excessivo e rompe com as regras de reciprocidade que definem o “bem- beber” passa a sofrer e incorpora o estigma que o condena à marginalização.

Em um segundo momento, encontra-se um conjunto de expressões ligadas ao chamado “tempo da recuperação”, que indicam uma percepção do ato de beber considerado excessivo, na qual este passa a ser entendido nos moldes objetivados pelo modelo biomédico, isto é, como a “doença do alcoolismo”, uma “doença crônica e fatal”, de base física e mental, traduzida nas expressões: “compulsividade pelo álcool”, “obsessão pelo álcool” e “dependência do álcool”. Associado a essas expressões,

encontra-se também um conjunto de categorias que definem os contornos de si mesmo como um “doente alcoólico”: “alcoólatra”, “compulsivo pelo álcool”, “dependente do álcool”. Ao lado destas, registra-se também a utilização da categoria “bêbado seco”, para indicar uma compreensão de si mesmo segundo a qual o alcoólico, embora não faça mais o uso do álcool, ainda não mudou seu comportamento, continuando a agir como nos tempos do alcoolismo ativo. Ela traduz a dimensão do alcoolismo que os AAs chamam de “espiritual”, ligada às atitudes e comportamentos que devem ser modificados para se atingir a sobriedade.

O quadro formal se completa com um outro leque de expressões intermediárias que indicam a passagem do “tempo do alcoolismo ativo” para o “tempo da recuperação”, forjando, assim, uma representação específica de si mesmo, como podemos ver a seguir:

Quadro 4 –

Expressões que designam a passagem de alcoólico ativo para alcoólico em recuperação Tempo de

alcoolismo ativo

Fase intermediária Tempo de

recuperação

Bêbado Dominado pelo álcool

Impotente diante do álcool

Bêbado seco Cachaceiro Louco pelo álcool Derrotado pelo álcool Dependente do

álcool Pinguço Refém do álcool Aquele que sofre de

perda de controle perante o álcool Compulsivo pelo álcool Alcoólatra Doente alcoólico

Paralelamente a esse quadro — em que se percebe uma progressão da esquerda para a direita e de cima para baixo —, parece emergir um outro, em torno do ato de beber, que também indica a transição de uma visão estigmatizante para uma perspectiva própria à tradição do discurso biomédico, remodelando a experiência do beber considerado excessivo, que passa a ser entendido como “doença alcoólica crônica e fatal”:

Quadro 5 – Expressões que designam o ato de beber Visão

estigmatizante

Visão biomédica

Bebedeira Dependência do álcool Embriaguez Compulsividade pelo álcool

Obsessão pelo álcool

Doença alcoólica

Mas, como o sistema de A.A. se articula às experiências vividas pelos membros do grupo, definindo os significados do alcoolismo, ao mesmo tempo em que traça os contornos da “pessoa alcoólica”? A resposta depende de uma análise da “nosografia” que os AAs elaboram sobre o alcoolismo, a partir de seus “sintomas” físicos e morais.