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Em entrevista, João deixa entrever a maneira como o alcoolismo atinge o “homem alcoólico”, afetando seus laços sociais, sobretudo, na família e no trabalho:

O alcoolismo me afetou principalmente na família e no trabalho. Primeiro com a família, porque eu passei a ser aquele homem

descompromissado; aquele homem com quem não se pode contar.

Isso me criou um problema muito sério, pois a própria família não acreditava mais em mim, e eu também não. O alcoolismo me atrapalhava. A bebida passou a ser dona da minha vontade. Eu não tinha mais vontade própria. Embora eu não quisesse, mas ela me levava a beber. Aí eu perdia completamente a noção daquilo que eu queria fazer. Na fábrica foi a mesma coisa: eu tinha minhas atribuições junto aos demais companheiros mas, de acordo com minha bebedeira, ninguém podia contar comigo. Eu passei a ser um homem inútil na equipe. E aí eu sinto que eu mesmo perdi o domínio,

perdi a credibilidade, eu perdi o interesse, eu perdi a força de

vontade, eu perdi a força física (João, entrevistado em 24 ago. 2002).

Na fala acima o alcoolismo é representado, notadamente, como a falência da “força física” e da “responsabilidade”, constrangendo a vontade do alcoólico (“A bebida

passou a ser dona da minha vontade. Eu não tinha mais vontade própria”), impedindo-

o de assumir os papéis sociais de “pai”, “esposo” e “trabalhador”.

Grande parte da tematização sobre o alcoolismo, particularmente entre os homens das camadas populares, passa, ao mesmo tempo, pelas questões da

"responsabilidade" e da "força física", de maneira que o uso álcool ocupa um papel

qualificados, ora como um problema que compromete a responsabilidade no cumprimento do dever.

Boltanski (2004) enfatiza que, entre os homens nos meios populares, o uso do álcool aparece freqüentemente associado à idéia de “força”, e é normal seu consumo, particularmente, antes das refeições, como forma de “abrir o apetite”. A representação do álcool como fortificante liga-se a uma representação do corpo como “instrumento” básico para o exercício de trabalhos pesados e menos qualificados. De acordo com esse autor (2004: 142): “a experiência que os membros das classes populares têm do corpo tende a se concentrar na experiência que têm de sua força física, ou seja, de sua maior ou menor aptidão a fazer funcionar o corpo e a utilizá-lo o mais intensamente e o mais longo tempo possível”.

Duarte (1986), por sua vez, aponta que o par força/fraqueza é “um referencial básico para a definição de qualidades diferenciais da pessoa e, neste caso, primordialmente do homem, que como trabalhador, tem na força ‘muscular’ um de seus atributos ideais básicos” (1986: 145 – grifos do original). A qualidade da força física é um atributo diferencial na definição das qualidades da pessoa, sobretudo, entre os homens das camadas populares. Um homem forte — no sentido de sua força física — é aquele apto para exercer as duras tarefas impostas pelo mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que pode prover o sustento de sua família. Em contraposição:

Um homem fraco (neste sentido muscular) encontra-se em uma situação virtualmente desprivilegiada, não só pelo que virá a enfrentar objetivamente em sua luta pelo trabalho, como pelo que isso sempre envolverá de uma avaliação diminuidora pelos seus próprios pares ou pelas mulheres, entre as quais se medirá sua conveniência como cônjuge potencial. Essa fraqueza muscular poderá, além do mais, ser encarada como um sinal dessa outra fraqueza mais abrangente, que consiste numa virtualidade da exposição à doença (Duarte, 1986: 145- 146 - grifos do original).

Um “homem forte” é aquele considerado apto para trabalhar, de maneira que a “força física” passa a ser concebida como um sinônimo de “saúde”, adquirindo, assim, um “valor moral”:

O trabalho vale não só por seu rendimento econômico, mas por seu rendimento moral, a afirmação para o homem, de sua identidade masculina de homem forte para trabalhar [...] Essa disposição é vivida como o fundamento de sua autonomia. Para tê-la, no entanto, é

preciso saúde, um valor relacionado ao trabalho. O corpo é o instrumento, não apenas para sobreviver, mas para mostrar-se forte. Também a saúde tem um valor moral81 (Sarti, 2005b: 90-91 - grifos do original).

A idéia de força física ocupa uma posição central no conjunto das representações que os AAs formulam sobre o alcoolismo, repercutindo diretamente sobre a construção da pessoa, relacionando-se à “substância” do corpo doente. A doença alcoólica conduz justamente à “perda da força física”, e é sentida pelo alcoólico como um entrave à utilização de seu corpo, notadamente como “instrumento de trabalho”. Como conseqüência, o alcoólico sente-se “enfraquecido” e impedido de cumprir seus deveres de “trabalhador”.

Deixar de trabalhar significa, sobretudo, não cumprir seu papel moral de “homem provedor”. Pois, como lembra Sarti (2005b: 95 - grifos do original), “na moral do homem, ser homem forte para trabalhar é condição necessária, mas não suficiente para a afirmação de sua virilidade. Um homem, para ser homem, precisa também de uma família”. Ou seja, ele precisa assumir a condição de “chefe de família”, isto é, a condição daquele que tem a obrigação moral de provê-la através de seu trabalho82. Dessa maneira, a “moral do homem forte” articula-se à “moral do provedor”, definindo de um modo particular os contornos da identidade e da pessoa relacionada ao “homem alcoólico”, entendido como aquele que é responsável tanto pelo cuidado de si como pelo provimento de sua família.

As relações entre as chamadas “ética do trabalho” e a “ética do provedor” de membros das camadas populares foram analisadas por Zaluar (1994), para quem as representações construídas em torno do trabalho oscilam entre uma “visão escravista com sinal negativo”, disseminada, sobretudo, pelos mais jovens, e a “concepção do trabalho como valor moral, sustentada pelos pais de família e suas mulheres”. Nessa

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Sarti (2005b: 95) ressalta o “valor moral” que o trabalho tem, sobretudo, entre os homens das camadas populares: “O valor moral do trabalho, com o benefício que dele decorre, não se inscreve, então, apenas dentro da lógica do cálculo econômico do mercado. Através do trabalho, os pobres constroem uma idéia de autonomia moral, atualizando valores masculinos como a disposição e a força (não só física, mas moral), que fazem do homem homem”.

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É importante frisar que a “família” é entendida aqui nos moldes de Sarti (2005b: 85 – grifos do original), isto é, como uma totalidade definida “em torno de um eixo moral. Suas fronteiras sociológicas são traçadas a partir de um princípio da obrigação moral, que fundamenta a família, estruturando suas relações. Dispor-se às obrigações morais é o que define a pertinência ao grupo familiar”.

medida, e apesar dessa ambigüidade, o que levaria os trabalhares urbanos a aceitarem as condições muitas vezes degradantes a que são submetidos no mundo do trabalho é a preponderância da figura moral do “provedor”, que passa a um signo de auto- identificação positiva, possibilitando ao trabalhador pobre alcançar sua “redenção moral e, portanto, a dignidade pessoal” (1994: 120-121).

Sarti, diferentemente, enfatiza a equivalência existente entre a “ética do provedor” e a “ética do trabalho”, de maneira que é no entrelaçamento entre as lógicas que regem essas duas éticas que se constrói a identidade do homem das camadas populares. Para a autora:

A ética do trabalho constitui-se em “ética do provedor”, pelo modo particular como é formulada essa ética pelos trabalhadores pobres, a partir, precisamente, de uma concepção do trabalho e das relações de trabalho em que fatores econômicos se articulam aos elementos morais para atribuir valor a essa atividade, que, assim, resulta de um entrelaçamento de lógicas distintas (2005b: 97).

É seguindo a linha traçada por Sarti que podemos entender o elo tecido pelos AAs entre os planos “físico” e “moral” do alcoolismo, que relaciona a valorização da “força física” ao exercício da responsabilidade no cumprimento do dever. Enfraquecido pelo “uso compulsivo do álcool”, o alcoólico não pode mais fazer um uso instrumental de seu corpo ficando, assim, impedido de cumprir com sua responsabilidade em relação à família e ao local de trabalho. O dependente do álcool vive, portanto, uma espécie de “falência da responsabilidade no cumprimento do dever” (Duarte, 1986: 259), de modo que o alcoolismo faz brotar a irresponsabilidade nos territórios por excelência da responsabilidade, isto é, na família e no trabalho 83.

Nesse quadro, o alcoolismo entendido como uma “doença da família” aponta para uma dupla conexão: a do “efeito físico”, representado pela deterioração e pelo enfraquecimento do organismo (“eu perdi a força física”), e a do “efeito moral”, visível na forma como esse enfraquecimento repercute sobre a totalidade da pessoa, fazendo brotar a irresponsabilidade nos territórios onde deve reinar a responsabilidade, notadamente a “família” e o “trabalho” (“eu passei a ser aquele homem

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As representações sobre o alcoolismo construídas pelos AAs, relacionadas, particularmente, à articulação entre os planos físico e moral da doença alcoólica, foram analisadas por mim em artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública. Ver Campos, 2004 .

descompromissado”;“a própria família não acreditava mais em mim”; “eu perdi a credibilidade”; “eu passei a ser um homem inútil na equipe”; “ninguém podia contar comigo”). Para os AAs, “perder a força física” significa, sobretudo, a perda da

qualidade moral de “homem provedor”, isto é, daquele que tem a responsabilidade moral de cuidar de si mesmo e de sua família através do trabalho.

A perda da condição de “chefe de família” provocada pelo alcoolismo abala, então, a autoridade moral do homem, levando à perda de sua “força moral”. É exatamente isso o que encontramos na fala de João, ao se referir aos efeitos do uso do álcool sobre sua relação com seus filhos:

Na minha família, meu filho menor me dizia: “tá bêbado” e o outro: “já bebeu sua pinga”, quer dizer, desmoraliza a gente. A gente fica

sem força moral. A minha filha também já não acreditava mais em

mim. Eu prejudicava, porque eu bebia e falava coisas que devia e coisas que não devia, porque o álcool desarma o cérebro (João,

entrevistado em 24 ago. 2002).

O álcool age diretamente sobre o “cérebro”, órgão vital responsável pelo controle de si mesmo. Desarmado pela ação do álcool, o cérebro não comanda mais as reações do alcoólico, que deixa, então, de agir de modo responsável, introduzindo um elemento de “desordem” na esfera familiar, alterando os elos de obrigação e as relações hierárquicas entre seus membros. Dessa maneira, o uso do álcool retira a “força moral” do alcoólico perante seus familiares, de modo que ele não pode mais exercer a autoridade moral de “pai” perante seus filhos.

O consumo do álcool marca uma oposição instauradora e fundamental expressa nos pares “homem/mulher” e “rua/casa”, que norteia as visões sobre os efeitos do alcoolismo sobre a rede de relações familiares na qual o alcoólico está inserido. Assim, a lógica que associa o homem à rua é também ameaçadora da ordem do espaço familiar, podendo comprometer seu papel de “chefe da família” no interior da casa.

Todavia, quando o alcoólico não cumpre mais seu papel de provedor, isso leva a um rearranjo das relações entre o homem e a mulher no interior da casa. É comum, nesse caso, que a mulher exerça sua autoridade na família e passe a controlar o dinheiro recebido pelo marido: “Eu estava no fundo do poço, mas a firma, através da assistente

entregava para minha mulher, que cuidava de tudo” (João, entrevistado em 24 ago.

2002)84.

O alcoolismo ou, como dizem os AAs, a “doença da família”, afeta diretamente a construção da identidade do homem alcoólico e, por essa via, fere sua noção de pessoa. Guedes aponta a relação entre o uso do álcool e a construção tanto da identidade social como da noção de pessoa entre os homens trabalhadores. Para a autora, dentro desse grupo social:

São as implicações do alcoolismo crônico que são consideradas problemáticas [...] O limite, na verdade, do consumo do álcool situa-se num outro lugar. Enquanto o desempenho dos papéis de homem/trabalhador não é afetado, não há vergonha ou demérito público nesta situação. O bêbado, o alcoólatra é aquele que está, por isso, impedido de trabalhar e, conseqüentemente, impedido de fazer-se

respeitar dentro da família [...] É a impossibilidade de manutenção do

trabalho e do sustento da família que faz a diferença entre o comportamento masculino esperado e reprovado (Guedes, 1997: 149- 150 – grifos meus).

Sarti, por sua vez, mostra que o retrato do “bom marido”, na visão das mulheres, freqüentemente está associado àquele que não faz uso do álcool e cumpre seu papel de provedor:

No caso do homem, o “bom trabalhador”, além de ser aquele que tem disposição para trabalhar, é sobretudo o “bom provedor”. Importa que ele traga dinheiro para dentro de casa [...] Assim, o “bom marido” é sempre descrito como aquele que trabalha, não joga e não bebe. Embora o jogo e a bebida sejam definidos como a transgressão exemplar às regras familiares, incansavelmente reiterados como tal, sua condenação recai sobre o fato de que essas atividades significam o desvio do dinheiro, rompendo os preceitos de seu papel de provedor (Sarti, 2005b: 96 – grifos meus).

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O exercício da autoridade “dentro de casa” pela mulher pode ocorrer no momento em que o homem não cumpre com seus “deveres” em relação à sua família. Sarti (2005b: 55-56) relata em sua pesquisa um episódio no qual a autoridade do homem perante sua família foi “destituída”, de maneira que sua mulher e suas filhas se aliaram, reagindo à violência doméstica: “O pai pegou um facão [...] e veio na direção de uma das filhas. A mãe interferiu e, junto com as filhas, conseguiu dominá-lo e tirar-lhe o facão, que passou para a mão das mulheres da casa, simbolizando o momento de inversão na vida desta família.

Quem manda aqui agora somos nós, diz a mãe. Com as filhas já crescidas e trabalhando, não precisamos mais dele” (2005b: 56 – grifos do original). O exercício da “autoridade” do homem dentro da família

depende, assim, de sua legitimidade, de modo a garantir a “obediência” da mulher e dos filhos. Com isso, “o episódio revela que o pai, ao longo da vida familiar, abusou das prerrogativas de sua posição de autoridade em relação à família, sem cumprir com os deveres que correspondem a essa posição. O dinheiro que ganhava não era suficiente para manter sua família e ele sempre bebeu” (2005b: 57).

João confirma esse retrato do “bom marido” quando se refere ao modo como sua esposa falava com ele, nos tempos de seu alcoolismo ativo:

Um dia, minha esposa se virou para mim e disse: “Onde está aquele homem com quem eu me casei, de terno, gravata e colete? Aquele trabalhador? Olha que traste você virou. Olha o que a bebida está fazendo com você”. Isso me doeu bastante. E ela encerrou dizendo: “Você se transformou numa sucata humana”. E o homem ser chamado de sucata humana é terrível. Aí me doeu bastante. Aí eu percebi que precisava de ajuda (João, entrevistado em 24 ago. 2002).

O ato de beber é considerado um problema a partir do momento em que afeta as relações sociais nas quais o alcoólico está inserido, impedindo-o de trabalhar e, conseqüentemente, de prover teto e alimento à sua família. A “dor” sofrida por João reflete o reconhecimento da perda de sua “autoridade moral” de prover sua família através do trabalho, exatamente no momento em que sua esposa lhe pergunta onde está

“aquele trabalhador” com quem havia casado, comparando-o a uma “sucata humana”.

O “homem alcoólico” vê, assim, comprometida sua vida “física” e “moral”, representada, particularmente, pela perda de suas qualidades morais, notadamente como “pai”, “esposo” e “trabalhador”.