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Enquanto, para o “homem alcoólico”, o alcoolismo provoca a deterioração “física” e “moral”, traduzida na perda da responsabilidade moral no cuidado de si e de sua família, expressa na sua condição de “homem provedor”, as implicações do alcoolismo para a “mulher alcoólica” assumem um aspecto particular, traduzindo, em larga medida, os efeitos do uso do álcool sobre sua posição no interior da esfera familiar. Garcia aponta que, na visão dos integrantes do grupo Doze Tradições, em geral, “beber de forma abusiva e em botequim” é uma característica tipicamente masculina, compondo um discurso cuja lógica obedece ao “modelo do provedor, que tem a seu lado um modelo de mulher ilibada e filhos” (Garcia, 2004: 155). Com isso, reforça-se entre os AAs a imagem da mulher cujo lugar por excelência é a casa, zelando pela ordem do lar e cuidando dos filhos. Segundo a autora:

A mulher que bebe abusivamente não aparece como alcoólatra no discurso dos homens e no seu próprio. Para eles, beber é um comportamento esperado no homem. Para a mulher, o ato de beber em ambiente público, não importando a modalidade, constitui transgressão, reconhecida pela categorização mulheres que bebem (2004: 155 – grifos do original).

Na fala dos membros do grupo Sapopemba também se encontra um leque de representações que reforçam a idéia de que “lugar de mulher é em casa”. Exemplo disso é a fala de Sônia, na qual discorre sobre o tempo de seu alcoolismo ativo:

Boa noite a todos, sou Sônia, alcoólatra, e venho a essas reuniões para não voltar a beber cachaça; e, graças ao Poder Superior, não bebi hoje e não tive vontade de beber. E eu estou aqui, gente, para agradecer ao Poder Superior que me tirou da lama, me tirou do sufoco que eu vivia; não sei se eu vivia ou vegetava. Até então, eu não sabia que o alcoolismo era uma doença; nunca ninguém me falou que era uma doença. Eu era taxada lá fora como pinguça, sem-vergonha. Eu tava até acreditando que eu era mesmo, porque eu não conseguia

viver sem a cachaça. E, não conseguindo viver sem cachaça, eu já

não trabalhava mais, e eu não fazia mais nada, eu vivia em função de beber. E eu não sabia que tinha um lugar para a gente estacionar o alcoolismo e fui bebendo a minha juventude, não pensei em casar, não pensava em nada, só pensava em beber (Sônia, reunião de

recuperação aberta em 16 mar. 2002).

Além de revelar a força do estigma associado à “mulher que bebe”, essa fala também é emblemática na medida em que deixa entrever uma representação da mulher que faz um uso considerado abusivo do álcool como uma mulher “sem vergonha”. Ou seja, a mulher que bebe compulsivamente comporta-se de maneira oposta à mulher considerada “honesta”, isto é, aquela que cumpre seu papel social de “esposa” e “mãe”, zelando pela ordem da casa, de maneira a que tudo permaneça em seu lugar. Como lembra Sarti (2005b), a mulher desempenha na família um papel diferencial e complementar em relação ao homem, de maneira que é justamente de sua condição de “dona de casa” ou de “chefe da casa” que se irradiam as marcas fundamentais de sua autoridade no espaço da casa. Para a autora, a autoridade da mulher “vincula-se à valorização da mãe, num universo simbólico em que a maternidade faz da mulher, mulher, tornando-a reconhecida como tal, senão ela será uma potencialidade, algo que não se completou” (2005b: 64).

Fonseca (2004), em seu estudo sobre as relações de gênero e violência em grupos populares, aponta que, entre as mulheres, associada ao papel de “esposa” e

“mãe”, também se encontra a possibilidade de construção da própria idéia de “honra”, aqui “entendida como o esforço em enobrecer a própria imagem segundo as normas socialmente estabelecidas” (2004: 15). Ou seja, uma mulher “honrada” deve ser uma “mãe devotada” e uma “dona de casa” que zela pelos filhos e pelo marido. Não é por acaso, então, que Sônia, durante seu alcoolismo ativo, diz não ter pensado em se “casar” e constituir uma família, o que aprofunda ainda mais o seu estigma como uma mulher que não cumpriu com seu papel social de “esposa” e “mãe”85.

Em seguida, ela fala sobre o modo como o alcoolismo afetou suas relações com a família:

Meus irmãos todos casaram e eu fiquei com minha mãe e já comecei a beber. Comecei a beber uma... comecei a beber uma cuba, uma coisinha leve. Quando eu me vi, eu já tava na cachaça; mas até então

eu ainda trabalhava, cuidava da minha mãe, cuidava de mim; mas quando eu quis parar, não deu mais (Sônia, reunião de recuperação

aberta, 16 mar. 2002).

O alcoolismo deteriora a responsabilidade, traduzida na incapacidade de trabalhar, de cuidar de si mesma e de sua mãe. Como conseqüência, a doença alcoólica se traduz numa “doença da família”, afetando todos aqueles que convivem com a “mulher alcoólica”:

Em 1974, a minha mãe faleceu. Aí é que o bicho pegou: eu tive que morar com meu irmão e minha cunhada; eu, no auge da cachaça, naquele auge mais alto mesmo. Aí ninguém me suportava, porque eu tinha que beber, eu já bebia de manhã e a qualquer hora. Eu tirava o

prazer da família. Então, se uma irmã não me queria na casa dela,

me mandava para a casa da outra, um cunhado não me queria e me mandava para a casa do outro. E foi assim a minha vida (Sônia,

reunião de recuperação aberta, 22 mar. 2002).

O alcoolismo tornou a presença de Sônia indesejada por seus irmãos, de maneira que ela foi “mandada” de uma casa para outra, quebrando-se, assim, os laços de solidariedade existentes entre irmãos consangüíneos, já que ela “tirava o prazer da família” e ninguém mais a “suportava”. Como lembra Fonseca (2004: 75), nesse

85

Segundo Fonseca (2004: 32): “O motivo do casamento vai muito além da ordem material. Ao casar, a mulher tem esperança de alcançar não só uma certa satisfação afetiva, mas também um status respeitável. Imagina-se sempre que, se uma mulher está só, é porque não consegue arranjar um homem”.

contexto “os laços consangüíneos são privilegiados, porque são considerados os únicos que permanecem”, suplantando os laços entre parentes afins.

O alcoolismo afeta, portanto, o papel que se espera que a mulher cumpra na esfera familiar. Ao falar sobre seu alcoolismo, Joana, 50 anos, viúva, 11 anos de A.A., funcionária pública aponta que, no “início”, bebia com o marido, mas, depois, perdeu o controle sobre o álcool, o que afetou sua vida profissional:

Eu fui uma pessoa que sofreu muito em perdas e fez a família sofrer. Porque, no meu início eu só bebia nos finais de semana, junto com meu marido, mas jamais pensei que eu fosse uma doente alcoólatra. Bebi durante um bom tempo, mas quis o Poder Superior que eu passasse por tudo que eu passei, porque eu tentei, muitas vezes, parar

de beber sozinha. Mas, nessas tentativas, nunca consegui. Eu sempre

trabalhei na área hospitalar. Eu cheguei a um ponto que eu já estava levando bebida alcoólica no serviço. Eu costumo dizer que esse foi meu sofrimento maior. A minha filha sempre falava que eu estava bebendo demais. Eu sempre tinha a resposta clássica de toda bêbada: “bebo com meu dinheiro, não bebo às custas de ninguém. Se vocês estiverem achando ruim, a porta da rua é serventia da casa. Afinal de contas vocês moram na minha casa” (Joana, reunião de recuperação

aberta, 22 maio 2005).

O problema do alcoolismo, então, começou a aparecer no momento em que ela não conseguia mais “parar de beber sozinha”. A identidade da “doente alcoólatra” liga- se, assim, à identidade social da mulher que, não conseguindo controlar as doses ingeridas, não ocupa mais seu papel no âmbito da família, isto é, não age mais como uma “trabalhadora” e “dona de casa”, que deve cuidar dos filhos.