• Nenhum resultado encontrado

3 O MOMENTO SOCIOLOGISTA DA PATERNIDADE

3.1 A FAMÍLIA NA PÓS-MODERNIDADE

Militar em defesa de um conceito unificante de família, a princípio, parece ser como remar contra a maré. Não se tenha aqui em mente a família como instituição tradicional concebida como ideologia de uma época e com caráter nitidamente estático, atemporal, mas como fenômeno sociológico, dinâmico e mutante, embora conservando certos traços que a individualizam.

Se, num primeiro momento, a família se tornou um fenômeno plural, visualiza-se que hoje esta parece esgarçar diante das forças centrífugas da modernidade líquida, em que o mote do movimento torna cada vez mais fluidas as instituições107 e identidades estáticas. Mas apenas parece108.

107

“As afiliações sociais – mais ou menos herdadas – que são tradicionalmente atribuídas aos indivíduos como definição de identidade: raça...gênero, país ou local de nascimento, família e classe social agora estão...se

Há espaço ainda para a defesa desta perspectiva unificadora da família, partindo de um centro ou princípio comum? A postura atemporal e estática da família, provam os fatos, parece não passar de uma mera ideologia fadada à dissolução, começando dos centros propulsores das ondas de choque da globalização, causando estragos mais ou menos intensos na periferia do Ocidente, conforme o grau de influência cultural destes centros.

A realidade brasileira, ambígua por natureza, tem sido pródiga em demonstrar vasto grau de sensibilidade às tendências globalizantes nos campos da economia, cultura, comportamento e mesmo de moda oriundas dos epicentros globais. Paradoxalmente, tem demonstrado vigor em certos aspectos que afloram na contramão do fatalismo histórico, tendo inclusive mesclado, mestiçado, por assim dizer, o universo simbólico oriundo daquelas paragens.

A família, ou melhor dizendo, as entidades familiares, num contexto do comportamento privado dos indivíduos, com maior ou menor grau, manifestam aqui no Brasil mais ou menos os mesmos padrões do fenômeno europeu de alguns anos atrás, o que nos faz pensar, indutivamente, que em alguns anos estaremos vivenciando perfis sociológicos da família que são hoje realidade em partes no velho continente, tais como o reconhecimento jurídico pleno ou parcial das uniões homossexuais.

Por isso mesmo que exurge como inovadora a temática da filiação sociológica, seu reconhecimento jurídico e sua regulamentação, que navegam justamente numa direção oposta à desconstrução pura e simples do fenômeno familiar. Não sem, ela mesma, atentar contra os

tornando menos importantes, diluídas e alteradas nos países mais avançados do ponto de vista tecnológico e econômico. Ao mesmo tempo, há a ânsia e as tentativas de encontrar ou criar novos grupos com os quais se vivencie o pertencimento e que possam facilitar a construção da identidade. Segue-se a isso um crescente sentimento de insegurança...” [DENCIK, Lars, Apud BAUMAN, Zigmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2005, pp. 30-31.]

108

O fenômeno familiar acompanha a existência humana desde tempos imemoriais. Não vai ser um momento de transição cultural que terá o condão de eliminá-lo: “por isso haverá sempre, de uma forma ou de outra, algum tipo de núcleo familiar que fará a passagem da criança do mundo biológico, instintual, para o mundo social.” [CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 196.]

paradigmas tradicionais de família109, no bojo da moderna concepção de entidade familiar como gênero totalizante das diversas manifestações hodiernas desta figura, a um tempo sociológica e jurídica.

Propõe destruir para construir, desmontar para manter viva na sociedade ocidental moderna uma entidade quase tão antiga quanto o próprio gênero humano.

A paternidade sociológica exurge mais ou menos no mesmo contexto ascendente de um paradigma familiar secularizado e informal.

Convergentes são os estudos que demonstram que, ao longo dos últimos decênios do século vinte, as legislações européias, abandonando os paradigmas judaico-cristãos no direito de família, tornaram as relações jurídicas por elas juridicizadas, gradativamente mais voltadas para o indivíduo que para a instituição, com a conseqüente flexibilização do estabelecimento de casamentos e de divórcios.

Aliás, tais mudanças se fizeram sentir primeiro em ordens jurídicas que, tanto sob o influxo de rompimentos abruptos da ordem estabelecida (Portugal, Rússia) quanto como fruto de uma gradativa evolução e amadurecimento da sociedade (Escandinávia), evoluíram na direção de um secularismo que tivesse claros reflexos na legislação familiar, aliás, como é fácil demonstrar, são conseqüência direta da aplicação do ideário liberal na orbis privada familiar110.

109

“No modelo tradicional , família era a união de um homem e uma mulher pelos sagrados laços do matrimônio e com fim precípuo de perpetuar a espécie. Nesse universo, todos dispõem de um nome que identifica o lugar de cada um na constelação familiar.” [DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre o direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 21.]

110

Assim, “The process of gradually abandoning the concepts of canon law was essentially the same in all European countries, and took place under the influence of the same liberal ideas. The general trend can be described as the gradual change from a transpersonal to a personal approach. This process, however, did (and still does) not take place simultaneously. The major differences in the history and current state of the family law of the European countries can be considered differences in the timing and in the extent of this process. In countries with a persisting strong religious influence, such as Greece, Italy and Ireland, this process has plodded along wearily and slowly. In Scandinavia and Eastern Europe, where secularisation took place at an earlier stage and canonical concepts did not obstruct reform, the process was speedier and more radical. But the general direction of the changes was and is undoubtedly the same everywhere.” [ANTOKOLSKAIA, M. The Process of Modernisation of Family Law in Eastern and Western Europe: Difference in Timing, Resemblance in Substance, vol 4.2 ELECTRONIC JOURNAL OF COMPARATIVE LAW, (September 2000), http://www.ejcl.org/42/art42-1.html. Disponível em 15/11/2006.]

Paradoxalmente, indicam estes estudos, a família pós-moderna desinstitucionalizada e feita gradativamente mais informal, mais se assemelha ao passado romano e bárbaro pré- cristão e mais se distancia dos arquétipos cristãos que moldaram a legislação familiar dos últimos séculos, realizando a metáfora de um círculo ou espiral.

Tal desinstitucionalização do direito de família de modo global tem reflexo prático na filiação sociológica, especificamente por justificar o ressurgimento da posse de estado de filho, uma situação de fato que, em várias legislações, notadamente a francesa e portuguesa, vem ganhando espaço e valor como instrumento de papel central na relação jurídica paterno- filial.

Isto porque, na esteira desta família voltada para o indivíduo, funcionalizada para este, de inspiração liberal mas análoga ao passado pré-cristão, a paternidade sociológica de matriz afetiva111 depende de um ato de liberdade, de adesão consciente, até mesmo informal.

Não por acaso, e já deste o Código de Napoleão e o posterior desenvolvimento da teoria da autonomia da vontade que ambas – informalidade e liberdade – na esfera obrigacional, foram grandes aliadas. Claro está que estes atos e relações informais, por tocarem interesses aos quais a ordem jurídica em vigor elegeu conceder especial proteção, ao serem juridicamente reconhecidas112 passam a trazer conseqüências à esfera de interesses dos interessados e da coletividade.

111

Quando a pressão social sobre a família para que esta se adequasse a um determinado modelo feneceu, o fenômeno familiar ao invés de desaparecer, continuou existindo, em outros parâmetros. Desconstruída a instituição abstrata, permitiu-se ao fenômeno continuar a existir em bases mais adequadas à sua natureza: “In days gone by, the family was the domain of duties, not of feelings. Affection was desirable but not necessary. (…) This conflict raged for 150 years until only in the 1960s, with the acceptance of consensual divorce, love became the true basis for the family.” [ANTOKOLSKAIA, M. The Process of Modernisation of Family Law in Eastern and Western Europe: Difference in Timing, Resemblance in Substance, vol 4.2 ELECTRONIC

JOURNAL OF COMPARATIVE LAW, (September 2000), http://www.ejcl.org/42/art42-1.html. Disponível em

15/11/2006.] 112

Notória e secular a lentidão para que o nosso sistema jurídico voltado para a elite econômica e cultural perceba o que acontece nas relações pessoais das maiorias. De longa data vem a cegueira seletiva da legislação ante a realidade da parentalidade “achada nas ruas”. Numa pesquisa histórica sobre a incidência de casamentos no Estado de São Paulo durante o Século XIX, outra não foi a constatação do gigantesco descompasso da lei com a realidade: “Pelo que pudemos perceber, a ausência de casamentos foi uma constante em São Paulo durante o século XIX, atigindo indivíduos de ambos os sexos e de qualquer condição social. Ficou claro também que o quadro de valores anteriormente mencionado interferiu na dinâmica do processo, servindo para explicar a