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O limite estático da aplicação da posse de estado de filho – o

4 POSSE DE ESTADO DE FILHO: LIMITES DE

4.6 LIMITES DE APLICAÇÃO DA POSSE DE ESTADO NA

4.6.3 O limite estático da aplicação da posse de estado de filho – o

entre pai e filho afetivos

Por limite estático, entenda-se aquele levantado pela nova posição que o indivíduo passa a ocupar em face da aplicação da posse de estado de filho em sua função constitutiva.

O limite estático aqui indicado é o do incesto, termo aqui usado num sentido mais largo.

A verdade é que a nossa sociedade já transpôs o imobilismo platônico do arquétipo familiar típico herdado do nosso passado judaico-cristão. Não se pode, por óbvio, olvidar o forte papel que estes arquétipos continuam tendo em nosso imaginário coletivo. Porém como fonte de conduta imperativa, tais padrões deixaram gradativamente de sê-lo no Ocidente por diversas razões e causas históricas já tangenciadas ao longo deste trabalho, com especial destaque para a separação entre a religião e o Estado, e mais recentemente, a revolução sexual, como principais marcos desta mudança.

A família moderna (concebida como eudemonista. 208) no entanto, não pode olvidar de uma ética laica mínima, sob pena de submergir perante degenerações comportamentais que sempre existiram em maior ou menor grau em todas as eras e que, na nossa civilização, tem um efeito claramente nocivo à convivência coletiva e ao desenvolvimento do indivíduo, razão básica da ética ocidental moderna, calcada, aliás, como sempre convém lembrar, na garantia da proteção da dignidade da pessoa humana.

Tais degenerações estão relacionadas ao desenvolvimento da psique do indivíduo em formação (à tão polêmica natureza humana), como, por exemplo, as seqüelas do abuso infantil, notadamente de índole sexual; as conseqüências da carência ou ausência de convivência familiar nos anos de formação da personalidade e identidade do sujeito; seqüelas de uma má condução pedagógica ou mesmo alimentar do infante ou até mesmo, de modo bem específico, ausência ou deficiência de freios morais por negligência consciente ou não dos componentes do núcleo familiar.

Fora deste contexto ético, seriam hodiernamente inadmissíveis quaisquer outros fundamentos para tolher a liberdade do indivíduo de estabelecer laços afetivos e vínculos familiares, ainda que destoantes dos paradigmas patriarcais, ou mais especificamente judaico- cristãos. Com a morte de Deus, profetizada por Nietzche, e a queda do príncipe em 1789, outra alternativa não nos restou senão eleger o princípio para governar os homens.

208

A família eudemonista guarda pouca identidade com a instituição que a precedeu: “É possível enxergar a familia, sempre numa perspectiva constitucional abandonando caráter de instituição jurídica e passando a merecer tutela como verdadeiro instrumento de afirmação da realização pessoal do ser humano, valorizados os seus aspectos espirituais e o desenvolvimento de sua personalidade, em combate a feição patrimonial, até então predominante. A família deixou de ser fim e passou a ser meio, instrumento. Descobriu-se que as pessoas não nascem com o fim específico de constituir família, mas, ao revés, nascem voltadas para a busca de sua felicidade e realização pessoal, como conseqüência lógica da afirmação da dignidade do homem. Daí a necessidade de uma visão essencialmente funcionalizada da família, como o locus privilegiado para o desenvolvimento da personalidade e afirmação da dignidade de seus membros. A família, forjada na dignidade da pessoa humana, passa a atender uma necessidade vital: ser feliz” [FARIAS, Cristiano Chaves de. A proclamação da liberdade de não permanecer casado In: Revista de Direito Privado. N. 20. Out/Dez. São Paulo: RT, 2004, pp. 83-102.]

Neste sentido, alguns tabus multimilenares permaneceram de pé, não por subsistir em sua matriz judaico-cristã, mas por se coadunarem com esta ética mínima que no Ocidente se admite como razoável e que justifica algumas limitações básicas nas relações íntimas.

Originalmente uma expressão relacionada ao ato sexual entre parentes próximos, a relação incestuosa bem pode ser evocada à imagem analogamente para qualificar, por exemplo, a tentativa de adoção entre irmãos ou ascendente e descendente, vedada, no direito brasileiro, expressamente pela legislação atinente à matéria (art. 42 § 1º da Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e adolescente).

Mas, da maneira como a doutrina e a jurisprudência têm encarado a matéria, e ante a total ausência de regulamentação legislativa quanto ao poder constitutivo da posse de estado de filho, é de se perguntar, honestamente, se o sistema, implicitamente, inadmite que a relação paterno-filial oriunda desta fonte possa ser estabelecida com violação a esta espécie de barreira.

A constituição de relações paterno ou materno-filiais sócio-afetivas, à parte de qualquer regulamentação limitadora pode causar espécie se for estabelecida entre parentes próximos. Afinal, a ordem ou constelação de parentesco tem por função principal atribuir, “a cada um o que é devido”, no rol parental, tanto no que pertine a alimentos e herança, quanto aos impedimentos matrimoniais209.

Exemplificadamente, caso um irmão ou meio-irmão registre como sendo seu próprio filho, o irmão com muitos anos de diferença, e crie-o como filho, mesmo que consciente do fato, teria o filho ou o genitor biológico interesse na declaração de nulidade do referido registro?

209

Assim, “a contagem de parentesco e a percepção das linhas é importante para armar uma estrutura parental na direção de diversos efeitos, como por exemplo, para estabelecer impedimentos matrimoniais. (..) É ad infinitum a relevância jurídica do parentesco em linha reta, mas o parentesco transversal alcança o quarto grau para efeito sucessório, o terceiro em termos de impedimentos matrimoniais, e tradicionalmente não vai além do segundo para efeitos pessoais e de alimentos (...)” [FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família: curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 197-198.]

Seja qual for a opção do legislador210, é certo que precisamos de alguma, e antes que a posse de estado se torne tão popular na constituição do vínculo paterno-filial como hoje o é o usucapião. Felizmente no Brasil algumas soluções jurídicas, quando em consonância com os valores sociais, são rapidamente compreendidas e absorvidas em suas linhas gerais pela população em geral, mesmo pelas pessoas mais simples e de menor nível cultural.

O que, em regra, é um fator positivo, pode se tornar, no caso da posse de estado de filho, um problema para se lidar depois, quando já estiver na cultura popular a idéia de que a justiça está reconhecendo paternidade ao registro complacente (que já é um fato) e ao “filho de criação” (que já desponta no horizonte jurisprudencial).

Não foi objeto desta pesquisa fazer uma opção por um limite ou estabelecer um parâmetro, além do qual se consideraria juridicamente impossível o estabelecimento da paternidade sócio-afetiva por qualquer meio. O objetivo foi apenas provar a incompatibilidade do instrumento, da maneira como está sendo defendido na doutrina, sem uma reflexão dialética de suas próprias limitações e consequentemente suas aporias perante o sistema jurídico.

Entretanto, por uma opção de alinhamento com o atual limite do sistema, a solução proposta no próximo capítulo procurará compatibilizar ambas as situações apresentadas.

210

Problema análogo – incesto lato sensu sem fundamento biológico – tem sido enfrentado em vários estados norte-americanos: “All but a dozen states recognize marriage between a stepparent and his or her stepchild after the marriage between stepparent ana the child’s parente has been legally dissolved and the relationship becomes former steprelatives. (…) Because biomedical concerns are not relevant, the United States uses community norms and stability of the family as potential reasons to prohibit steprelative marriages.” [ENGEL, Margorie. Stepfamily tribunations under United States laws and social policies In: The International Survey of Family Law. Bristol: Jordan Publishing, 2005, pp. 529-554.]