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Técnicas de reprodução assistida e paternidade legal

3 O MOMENTO SOCIOLOGISTA DA PATERNIDADE

3.4 O ARQUIPÉLAGO DA PATERNIDADE SOCIOLÓGICA

3.4.1 Técnicas de reprodução assistida e paternidade legal

A pesquisa científica muito avançou nas últimas décadas em matéria de manipulação genética. E as demandas mercadológicas124, como usual, são o leitmotiv deste desenvolvimento quase que em sua totalidade. Do desenvolvimento de variedades de vegetais economicamente úteis e mais resistentes às intempéries climáticas ou biológicas à clonagem da ovelha Dolly, a pesquisa genética promete ser no século XXI um dos pilares da economia mundial, como foi e ainda é no século XX e início deste século o petróleo.

Sérias questões éticas125 têm sido levantadas amiúde quanto à interferência do desenvolvimento científico nesta área, notadamente no campo de manipulação da espécie humana126.

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Com razão: “A filiação sócioafetiva está presente nos casos de adoção judicial, filho de criação, “adoção à brasileira” e reprodução humana assistida.” [ALDROVANDI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. O direito de família no contexto das organizações sócioafetivas: dinâmica, instabilidade e polifamiliaridade. In: Revista Brasileira de Direito de Família. V. 7. n. 34. Fev/Mar. Porto Alegre: Síntese, 2006, pp. 5-30.]

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“Por trás de tudo, intenções mercantis. A possibilidade de adquirir um bebê tal qual um produto no supermercado é cada vez mais concreta.” [PUCCINELLI JÚNIOR, André. O biodireito e a redescoberta do ser humano In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 13. n. 52. Jul/Set. São Paulo: RT, 2005, pp. 68-90.]

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“A interferência do direito neste âmbito da ciência justifica-se, visto que os avanços tecnológicos alcançados nas áreas do conhecimento citadas se traduzem, em última análise, em aumento do poder de dominação do homem sobe o próprio homem e sobre a natureza, domínio este que deve estar sob a égide do ordenamento jurídico.” [ROCHA, Renata. O biodireito constitucional. Limite e fim da atividade científica. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 12. N. 49. Out./Dez. São Paulo: RT, 2004, pp. 191-210.]

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“Compete ao biodireito permitir condutas que tragam benefícios atuais e futuros, impedindo os malefícios e proibindo o mercado humano, atribuindo a todos o dever de respeitar a dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, mister mediar a tensão dialética entre liberdade científica e dignidade da pessoa humana, fixando

A década de setenta do século XX logrou a humanidade a possibilidade de transcender a barreira até então absoluta da infertilidade natural. Através de uma técnica científica foi possível fertilizar-se, in vitro, o óvulo feminino com o gameta masculino, devolvendo-o para o útero e possibilitando a continuidade da gestação. Nascia o bebê de proveta127. Com ele, o acirramento de uma larga discussão ética e jurídica sobre a manipulação genética do ser humano, notadamente nos países do chamado primeiro mundo128.

De modo genérico, há duas formas de reprodução artificial: a inseminação artificial ou assistida – IA e a fecundação in vitro – FIV. No primeiro caso, há a introdução do espermatozóide masculino diretamente no órgão reprodutor feminino, possibilitando a fecundação do óvulo in loco. No segundo, ambos, espermatozóide e óvulo, extraídos dos doadores, são postos juntos em ambiente externo, controlado, para que a fecundação ocorra fora do útero, sendo posteriormente inseridos na cavidade uterina para que o processo de desenvolvimento do feto possa prosseguir.

A inseminação artificial abre-se em duas possibilidades: homóloga, quando o gameta masculino tem origem biológica no companheiro/cônjuge da inseminada, e heteróloga, quando a origem do material genético em tela está dissociada do vínculo fático-jurídico entre o doador do gameta e a inseminada.

O primeiro caso não apresenta maiores problemas de clivagem com a sistemática tradicional de determinação da paternidade, posto que se encaixa bem no critério biologista.

pautas éticas, visando harmonizar os valores assegurados a cada indivíduo e que devem ser respeitados, com a necessidade humana e buscar novos conhecimentos.” [ARAÚJO, Ana Laura Vallarelli Gutierres. Biodireito: o direito da vida In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 13. n. 51. Abr./Jun. São Paulo: RT, 2005, pp. 111-119.]

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“O mundo assistiu, no dia 25.07.1978, ao nascimento – no Oldham and General District Hospital, situado no norte da Inglaterra – do bebê Louise Joy Brown (pesando 2 kilos e 600 gramas), primeiro bebê de proveta que se teve notícia na história. Os responsáveis pelo êxito foram o obstetra Patrick Steptoe e o médico Robert Edwards. [GOMES, José Jairo. Reprodução assistida e filiação na perspectiva dos direitos da personalidade In: Revista de Direito Privado. N. 22. Abr-Jun. São Paulo: Ltr, 2005, pp. 136-152.]

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Com razão a assertiva que pontifica: “As sociedades, sobretudo a dos países desenvolvidos, que já superaram probleas estruturais como a pobreza, a desnutrição, o analfabetismo, a violência, entre outros, vem sendo chamada a questionar que tipo de desenvolvimento biotecnológico é desejável, e o que realmente fará diferença no destino da humanidade.” [OLIVEIRA, Cybele. A bioética sob a perspectiva do direito da criança e do adolescente In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 14. N. 55. Abr./Jun. São Paulo: RT, 2006, pp. 176-193.]

Entretanto, quando terceiro, não ligado juridicamente à inseminada, e portanto não sujeito à presunção jurídica de paternidade fosse biologicamente o genitor, qual seria o critério de paternidade a ser aplicado?

A prevalecer o biológico, estar-se-ía interditando a própria razão de ser da inseminação artificial heteróloga, que é o de propiciar os casais que, por qualquer razão, não podem naturalmente gerar filhos, lançarem mão deste artifício para, livremente e em comum acordo, realizarem a paternidade sem laços biológicos absolutos dos dois lados.

Por mais inovador que possa parecer, tal critério “sociológico” de paternidade não é historicamente tão incomum como se possa pensar. Entre os antigos hebreus, por exemplo, a prática da viúva casar-se com o cunhado para que este desse continuidade ao nome e à posteridade do falecido, conhecida como levirato, era norma prevista na Torá. O cunhado, sob pena de ostracismo e desprezo social, não poderia furtar-se a gerar filhos ao irmão, ainda que biologicamente seus, em face da importância que se dava naquela cultura à continuidade do nome do ascendente na existência do seu povo.

Também não se pode informar tal paternidade sob o pálio da presunção nupcialista, posto que esta seja, por definição, relativa, e o fato da inseminação artificial heteróloga, de

per se, comprova a diversa origem biológica do ser em formação, afastando a paternidade.

Não se pode esquecer que a presunção do pater ist est, como já apontado alhures, tinha uma relação simbiótica com a origem biológica da paternidade, somente fazendo sentido se vista em conjunto com aquela. E, embora em momentos-limite se pudesse delinear sua autonomia em relação ao critério biologista, penso que tal separação sustenta-se mais no plano teórico-dogmático do que propriamente histórico.

Desta forma, o critério jurídico de paternidade que ora exsurge desta relação, amiúde regulada em diversos países, entre eles o Brasil, sob o preciso olhar de Guilherme de Oliveira,

mereceu o status de nova categoria, a saber, paternidade sociológica, como terminologia de ocasião para denominar essa dissociação entre a paternidade e a biologia:

Julgo indispensável dizer que o fundamento de um tal regime é o reconhecimento da dimensão cultural da paternidade. Excepcionalmente, o sistema jurídico omite o vínculo biológico como suporte da definição de paternidade; é o que se passa quando a tecnologia genética encontra o caminho para o marido estéril contribuir com um nascimento dentro do casal. O fundamento da limitação do direito de impugnar encontra-se na atitude emocional e intelectual dos cônjuges perante a fecundação por facto de terceiro – na adesão voluntária a um estatuto familiar, na investidura social e familiar do marido no lugar do pater.129

O novo Código, em vigor desde 2003, já exsurge sob o pálio das críticas ante a incompletude de hipóteses. Trata, é certo, da presunção legal (e absoluta) de paternidade do marido que consentiu com a inseminação artificial heteróloga da esposa (art. 1.597, V), mas não enfrentou exaustivamente as múltiplas possibilidades de conflito de interesses oriundos do desenvolvimento destas técnicas, tais como a inseminação da esposa após a morte do marido, sem se aludir a algum substrato de concordância prévia deste, ignorando portanto o imbróglio familiar e hereditário que uma lacuna destas tem potencial para criar130.

Da gama de possibilidades de manipulação oriundas da fertilização in vitro e da “barriga de aluguel”, bem como a possível vedação da sua prática e as diretrizes mínimas para o estabelecimento da filiação do rebento oriundo da mesma, somente para elencar algumas hipóteses, é possível visualizar-se a gritante lacuna normativa.

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OLIVEIRA, Guilherme de. Critério jurídico de paternidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 358. 130

Exemplificadamente: “O filho concebido post mortem do pai, e, nascido após a abertura do inventário e, eventualmente, após a partilha de bens, é ou não é herdeiro? O estudo não é apoiado exclusivamente no direito privado, pois nos reporta diretamente à Constituição. (...) Silvio Venosa, doutrinador de direito civil, sustenta que pelo direito de saisine, o momento a ser considerado é o da abertura da sucessão: qualquer fecundação, após esse termo, não gera efeitos patrimoniais e sucessórios, apenas acarreta em direitos da personalidade. Essa é uma perspectiva que parte do direito civil, invertendo, todavia, a ordem correta, a partir da Constituição. Nada impede que o pai deixe, antes de morrer, por exemplo, sua vontade de que se realize a fecundação para resguardar sua prole eventual. Ademais, após a autorização o de cujus é responsável. A posição que prevalece no estudo da constitucionalização do direito civil é a que, por conta da isonomia dos filos, garante à dignidade da pessoa humana a impossibilidade de exclusão. O nosso tema é consubstanciado pela impossibilidade de redução do núcleo essencial do direito fundamental conteido no art. 5º, ou seja, exige-se a preservação do resíduo do direito sucessório. No caso, ao filho tem de ser preservado o direito a herdar, mesmo se concebido após o falecimento do pai.” [MOREIRA, Eduardo Ribeiro. O enfrentamento do biodireito pela Constituição In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 13. n. 53. Out/Dez. São Paulo: RT, 2005, pp. 134-147.]