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FUNÇÕES PROBATÓRIA E CONSTITUTIVA DA POSSE DE

4 POSSE DE ESTADO DE FILHO: LIMITES DE

4.4 FUNÇÕES PROBATÓRIA E CONSTITUTIVA DA POSSE DE

Duas funções têm sido atribuídas à posse de estado: probatória e constitutiva.

4.4.1 – Função probatória

A primeira função aludida à posse de estado é comprobatória da origem nas justas núpcias. Esta a utilidade clássica do instituto.

Num contexto em que a paternidade biológica estava encerrada a sete chaves no contexto das justas núpcias, a ausência ou deficiência de registro de nascimento de uma pessoa poderia ser suprida, com certo grau de segurança, através de informações públicas a respeito da reputação do indivíduo e de sua família no contexto social em que vivia.

A figura da posse de estado não foi certamente criada num contexto urbano pós- moderno, em que a maioria das pessoas sequer conhece o seu vizinho, cuja mobilidade geográfica das famílias diminui a possibilidade de uma convivência comunitária sólida e prolongada.

Para que elementos como o tractactus e a fama façam sólido sentido, o julgador há de subsumir-se ao papel de um investigador, um detetive a averiguar indícios de que ali vive ou viveu uma família legítima, convalidada pelas justas núpcias e causa da geração do titular da alegação da posse de estado.

Como visto supra, é nesse contexto que o legislador francês e português visualizam a posse de estado. O primeiro inclusive após a reforma de 1982. Convêm lembrar o pressuposto básico da filiação no direito francês, o de que a verdade sobre a filiação ainda é a verdade biológica171.

Portanto a posse de estado, neste contexto, tem papel coadjuvante de dar uma aparência da existência do liame biológico, o que satisfaz ao legislador e, de reboque, ao julgador, criando uma verdadeira presunção. Não passou em branco a sua fragilidade intrínseca, que já se visualizava172.

171

Com a reforma de 2005, a filiação estabelecida pela posse de estado, a partir da reforma francesa da 1982 pode ser atacada pelos pais biológicos: “Can the filiation be challenged on the ground that the man os woman who has given the child possession d’etat, recorded in a declaration os notoriety, is not the father or mother of the child? It is not a matter of disputing the existence of the possession d’etat, but of denying the truth of the filiation. Even if the texts are ambiguous, such an action seems to be possible within the time-limited art 333. [FULCHIRON, Hugues. Egalité, verité, stabilité: the new French filiation law after the ordonnance of 4 july 2005 In: International Survey of Family Law. Bristol: Jordan Publishing, 2006, pp. 203-216.]

172

“A posse de estado estabelece uma presunção de filiação, mas tal presunção é induzida de factos que é preciso provar. É certo que a prova desses factos pode ser feita por todos os meios, mas os testemunhos da família e do meio social desempenham um papel predominamte. É claro que a prova por todos os meios não é necessariamente uma prova fácilmente praticável, numa sociedade burocrática, como a nossa; bem pelo

Convém visualizar claramente esta função probatória (a presunção, enceta a processualística, também é um meio de prova), porque, para efeito do nosso estudo, tal aplicação ou função da posse de estado terá papel completamente diverso do propugnado pela moderna dogmática, em face da qual o presente trabalho aponta seus limites.

4.4.2 - Função constitutiva

Neste segundo caso, como sabido, crescente na doutrina e jurisprudência173, trata-se de partir da relação fática e dela tirar, não a presunção de uma realidade de filiação legítima ou mesmo biológica, num faz-de-conta paterno-filial justificado pelo respeito à sistemática valorativa do direito civil clássico, mas uma autêntica função constitutiva, à qual o provimento jurisdicional terá mero papel declaratório.

Trata-se de outorgar, por força de uma particular interpretação extraída do sistema jurídico174, força constitutiva de vínculo paterno-filial entre os partícipes da posse de estado, com os conseqüentes efeitos esperados na constelação familiar de ambas as partes, algumas das quais ainda estão por se construir:

Uma das mais relevantes conseqüências do Princípio da Afetividade encontra-se na jurisdicização da paternidade socioafetiva, que abrange os filhos de criação. Isso porque o que garante o cumprimento das funções parentais não é a similitude genética ou a derivação sanguínea, mas sim, o cuidado e o desvelo dedicados aos filhos. (...) A paternidade sócio-afetiva está alicerçada na posse de estado de filho. (...) Não é mais possível ao Direito ignorar a existência da paternidade socioafetiva, embora ela ainda não esteja em regramento expresso, não obstante a incidência do art. 1.593 CCB/02. Daí a importância e suma relevância da interpretação através

contrário, o declínio do papel da posse de estado, sublinhado pela doutrina, está directamente ligado à dificuldade material de fazer a sua prova.” [ PIMENTA, José da Costa. Filiação. Coimbra: Coimbra Editora, 1986, p. 167.]

173

Assim estatui o enunciado 256 da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal e aprovado em 05/01/2003: “256 – Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.” [http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf. Acesso em 21/04/2007.]

174

E enfatize-se, do sistema, e não da lei, stricto sensu: “Desse modo, a legislação não considera o laço afetivo constituinte de parentesco, salvo por adoção (...)” [VENCELAU, Rose Melo. Status de filho e direito ao conhecimento da origem biológica. In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 387.]

dos princípios, mormente o princípio da afetividade, que é o veículo propulsor do reconhecimento jurídico de tal instituto. 175

Maria Berenice Dias, ao mesmo tempo escritora em direito de família e ela própria aplicadora do direito do Tribunal de Justiça no Rio Grande do Sul, também ratifica a necessidade do reconhecimento da função constitutiva à posse de estado de filho, acrescentando ainda um fundamento aparentemente inovador e pouco comentado, a estabilidade social:

A filiação sócioafetiva corresponde à realidade que existe, e juridicizar a verdade aparente garante a estabilidade social. A posse do estado de filho revela a constância social da relação entre pais e filhos, caracterizando uma paternidade que existe, não pelo simples fato biológico ou por força de presunção legal, mas em decorrência de elementos que somente estão presentes, frutos de uma convivência afetiva. 176

A posse de estado em novo papel vem carreada de novos elementos de natureza meta- jurídica, sofrendo clara contribuição do avanço das ciências da alma humana, demandando, por parte da doutrina, interdisciplinaridade, e do aplicador do direito, humildade177.

Infelizmente, já se vê um tom escatológico e avesso ao espírito científico na literatura especializada178, notadamente no uso da lamentável expressão ‘verdadeira filiação’, como se a experiência de um conceito jurídico mutável ao longo dos séculos não tivesse o poder de ensinar ao jurista a natureza dinâmica do próprio fenômeno:

175

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, pp. 184-185.

176

DIAS, Maria Berenice. Investigando a parentalidade. In: Revista CEJ/Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários. N. 27. out./dez. Brasília: CEJ, 2004, pp. 64-68.

177

“A enormidade da tarefa judicante, em tais circunstâncias, leva o magistrado a buscar apoio em outras áreas do conhecimento. Ordenamento jurídico mesclado à ciência da alma humana e dos efeitos no núcleo social é o que se propõe. Psicologia e sociologia, informando a aplicação do direito, com tratamento multidisciplinar abrangendo, no aparelho judiciário, os laudos técnicos de psicólogo e de assistente social.” [OLIVEIRA, Euclides de. Os operadores do direito frente às questões da parentalidade. In: Revista Brasileira de Direito de Família. V. 5. n. 20. Out./Nov. Porto Alegre: Síntese, 2003, pp. 150-161.]

178

É grande a tentação por um critério unívoco e definitivo de paternidade, tentação esta que se reflete na linguagem com que a literatura especializada se expressa ao tratar da sócio-afetividade: “A par da presunção originada do casamento (pater ist est) e também da chamada “verdade biológica”, proveniente do resultado do exame pericial de DNA, a paternidade só pode ser vista como uma relação psicoafetiva existente e resultante de uma convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas, sobretudo, afeto, amor, dedicação, e abrigo assistencial, que são reveladores de uma convivência paterno-filial. Essa convivência por si só é capaz de justificar e identificar a verdadeira paternidade e é a única relação capaz de garantir a estabilidade emocional, pois um filho, reconhecido como tal, no relacionamento diário e afetuoso, certamente formará uma base emocional capaz de lhe assegurar um pleno e diferenciado desenvolvimento como ser humano.” [NICOLAU JÚNIOR, Mauro. Paternidade e coisa julgada. Curitiba: Juruá, 2006, p. 206.]

Com a evolução da sociedade e da família, modificou-se o conceito de filiação, que atualmente se estabelece independentemente da origem genética dos filhos, mas a partir da relação de afetividade e querer externado (posse de estado de filho) entre pais e filhos de qualquer origem. A verdadeira filiação depende tão-somente da construção dos vínculos entre os pais e filho desejado. 179

Note-se que, por fundamento, como se verá mais adiante, parte-se do pressuposto da família eudemonista, cópula necessária do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, para desembocar no laço afetivo e fazer depender o vínculo jurídico tão-somente desse pressuposto fático. Lido desta forma, a posse de estado ressuscitada aparentemente tem por finalidade apenas e tão somente a busca de indícios de afetividade paterno-filial180.

Mas não é apenas na seara do direito civil que a posse de estado já foi abraçada como meio constitutivo de relação paterno-filial. A doutrina processualística, inclusive, já instrumentalizou o reconhecimento de paternidade tendo como base a posse de estado:

Em contrapartida, tratando-se de filiação sócioafetiva, a causa de pedir desta ação de investigação de paternidade recai apenas sobre o estado de filho afetivo (que, no Código Civil de 1916, recebia o nome de posse de estado de filho e era admitida, tão-somente, para fins de prova e suprimento do registro civil, se os pais convivessem em família constituída pelo casamento, para a filiação considerada legítima; art. 349). 181

Poder-se-ía, num exercício indutivo, inferir da assertiva acima, bem como de larga opinião doutrinária que o acompanha (aqui apenas sucintamente exemplificada), uma regra implícita que de modo bem preciso claramente expressaria o sentimento e a visão que o papel constitutivo da posse de estado alcançou na doutrina e jurisprudência nacionais: “a filiação se

constitui pela posse de estado de filho, sendo, na sua ausência, determinada pelo vínculo biológico ou registral”.

179

ALDROVANDI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. O direito de família no contexto das organizações sócioafetivas: dinâmica, instabilidade e polifamiliaridade. In: Revista Brasileira de Direito de Família. V. 7. n. 34. Fev/Mar. Porto Alegre: Síntese, 2006, pp. 5-30.

180

A doutrina chega a ser repetitiva no argumento em prol do valor da afetividade na constituição da paternidade sócio-afetiva: “O critério afetivo, portanto, adquire relevância para a identificação da filiação, uma vez que a paternidade biológica não consegue substituir a convivência necessária para a construção permanente dos laços afetivos. A filiação, vista nesse enfoque, passa a assumir nova feição diferenciada daquela oriunda do critério jurídico e/ou biológico. A filiação chamada sociológica, que responde pelo critério afetivo, é marcada por um conjunto de atos de afeição e solidariedade que demonstram claramente a existência de um vínculo de filiação entre filho-pai-mãe.” [DONIZETI, Leila. Filiação sócioafetiva e direito à identidade genética. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 38.]

181

CAMBI, Eduardo. Prova e coisa julgada na ação de investigação de paternidade: apontamentos críticos. In: Revista de Processo. Ano 30. n. 122. Abr. São Paulo: RT, 2005, pp. 63-80.

Aparentemente, e não ignorando o papel que os dados biológico e registral têm de estabelecer a paternidade, a doutrina tem elevado a posse de estado de filho a categoria suprema no estabelecimento jurídico da filiação. Desta forma, se uma norma hipotética fosse escrita para estabelecer a inter-relação entre estes três elementos formadores da relação paterno-filial, possivelmente esta regra teria uma conformação igual ou semelhante à proposta acima, dada a posição de proeminência que a posse de estado desempenha em relação aos outros dois critérios.

4.5 - FUNDAMENTOS ADOTADOS PARA A ADOÇÃO DA POSSE DE ESTADO – DA