• Nenhum resultado encontrado

O caso de Artur e a mutabilidade do vínculo afetivo paterno-

4 POSSE DE ESTADO DE FILHO: LIMITES DE

4.6 LIMITES DE APLICAÇÃO DA POSSE DE ESTADO NA

4.6.2 O caso de Artur e a mutabilidade do vínculo afetivo paterno-

Do ponto de vista psicológico, sabe-se que a identidade paterna, durante parte da vida da criança, está sujeita às intempéries dos vaivens dos seus responsáveis legais, sejam ou não genitores biológicos.

O caso a seguir evidencia, se não demonstra, a fragilidade do pressuposto sobre o qual se construiu todo um edifício de constituição de paternidade jurídica. Trata-se de uma relação paterno-filial afetiva (fática, vale ressaltar) que a olhos vistos, foi desconstruída pela influência da genitora biológica, em desfavor do “pai afetivo primitivo” e igualmente registral, para o pai biológico, o qual posteriormente passou a conviver maritalmente com a mãe da criança.

Nesse cadinho instável das relações afetivas entre três adultos, pode-se visualizar que o afeto naturalmente construído pela convivência entre “pai” e “filho”, está claramente sujeito à influência de outras variáveis relacionadas à liberdade do pai ou mãe em estabelecer ou romper seus próprios relacionamentos afetivos, no contexto do fenômeno familiar dinâmico, “tentacular”, exposto alhures, e que contribui para a multiplicidade de experiências afetivas paterno ou materno-filiais dos infantes durante os seus anos de formação.

Segundo a missivista, Artur nasceu dentro do casamento entre Ana e Gustavo, mas fruto de relações sexuais durante o noivado, biologicamente gerado por terceira pessoa, Tales, ex-namorado da noiva. Após o nascimento, as semelhanças anatômicas que foram se

evidenciando, e começaram a causar constrangimentos familiares e brigas conjugais, tendo o pai registral até chegado a agredir fisicamente a mãe da criança, num acesso de ciúmes202.

Ana então deixa a convivência do marido com o filho, impedindo-o também de qualquer visita. Gustavo ingressa em juízo com pedido de regulamentação de visita, mas Ana contesta, alegando que este não é “pai”, elencando como “prova” o exame de DNA. O pai “sócio-afetivo” insiste em visitar o filho, alegando que os laços de afeto justificam o reconhecimento judicial da paternidade. Nesse ínterim, o pai biológico, Tales, ingressa com pedido de reconhecimento de paternidade em seu favor, requerendo também exame de DNA.

203

O juiz encaminha o caso para a psicóloga, que constata um misto de raiva e saudade da criança com o “pai social” (e ocasionalmente também registral), opinando pela concessão do direito de visita a este. Mas a forte interferência da mãe muda toda a situação:

O laudo da psicóloga foi no sentido de regulamentar as visitas paternas ao filho. Depois de um ano e meio, o caso retorna. O pai não conseguira realizar as visitas, pois a mãe dera o endereço errado e se mudara, sem autorizar que lhe fosse dado o novo endereço. 204

Após este lapso temporal, a relação do filho com o “pai do coração” já não é a mesma. Já apresenta resistência ao pai-Gustavo. Programado pelo ininterrupto discurso da mãe, vê o pai Gustavo como mau, que batia na mãe, que queria separar os dois, resistia a sair com este, apresentando indícios de síndrome de alienação parental205.

Esta situação somente foi sendo contornada paulatinamente, com o restabelecimento da convivência da criança ao “pai do coração” 206. Mas agora também Tales passara a ocupar lugar no imaginário da criança:

202

BARROS, Fernando Otoni. Do direito ao pai. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, pp. 86-87. 203

BARROS, Fernando Otoni. Do direito ao pai. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 87. 204

BARROS, Fernando Otoni. Do direito ao pai. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, pp. 89. 205

“A denominada alienação parental se expressa, no âmbito jurídico, como uma forma de violência praticada pelo guardião, parente ou não, de uma pessoa menor de 18 anos de idade, consistente no ato ou na omissão de impedir, de forma injustificada, a convivência daquela com o genitor não guardião.” [GOLDRAJCH, Danielle; MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade; VALENTE, Maria Luiza Campos da Silva. A alienação parental e a reconstrução dos vínculos parentais: uma abordagem interdisciplinar. In: Revista Brasileira de Direito de Família. V. 8. n. 37. Ago./Set. Porto Alegre: Síntese, 2006, pp. 5-26. ]

206

Na outra visita, a psicóloga chamou a mãe para uma entrevista e esta expressou sua aflição em ter de lidar com tal situação. Era muito complicado que uma criança tivesse dois pais, isso era uma aberração. Como a criança ia lidar com isso? A psicóloga fez uma intervenção lembrando à mãe que ela mesma apresentara essa situação à criança. Fora ela quem dissera à criança que ela tinha outro pai, fora ela que apresentara o pai-Gustavo como sendo seu pai, mesmo tendo dúvidas. Ela era responsável por isso, e esta era a história da criança e não havia como escrevê-la de outra forma. A mãe chorou muito e disse que fez o que fez pensando que estava fazendo o melhor, mas que, na realidade, Artur tinha dois pais. 207

O paradigma familiar nuclear, por uma manobra do destino, está severamente afetado no inconsciente deste menor, e a possibilidade de se contornar tal situação é, como se vê, mínima, uma vez que a personalidade da criança foi assim construída pelo triângulo de amor e ódio entre uma mãe e dois pais.

Como se vê, este é apenas um exemplo da miríade de possibilidades sobre as quais o afeto pode construir vínculos, vínculos paterno-filiais fáticos que, se reconhecidos e trazidos para a ordem jurídica sem critério algum, sem filtragem alguma, sem limite algum, poderiam, como no caso concreto supra (com o perdão da redundância), criar situações jurídicas, para dizer o mínimo, bizarras, como uma pessoa ter, em seu assento de nascimento, dois pais.

Indo mais além, entende este missivista que, o acúmulo de casos como esses vai terminar por flexibilizar a constelação familiar. Embora não seja propriamente objeto do presente trabalho o fenômeno familiar, aqui tocado apenas como contexto da relação paterno- filial, vale a reflexão paralela de que a constelação do parentesco está mais e mais sendo forçada pela avalanche de fatos que desafiam a organização tradicional.

Apenas a título de exemplo e desafio à imaginação do jurista: como situar, na constelação do parentesco (ou seja, na qualidade de filho, sobrinho, neto, primo, etc.), o indivíduo gerado por clonagem humana? Da mesma forma, como posicionar um indivíduo que, por mais absurdo que possa soar, obtém reconhecimento jurídico de paternidade sócio- afetiva por posse de estado de dois pais? Tais situações e o problema por elas posto, de per se,

207

já justificariam elas próprias, a construção de uma robusta pesquisa digna de uma tese, razão pela qual em muito foge dos limitados objetivos do presente trabalho.

Conclui-se, portanto, pela assertiva inicial, de que tão frágil pode ser a relação afetiva entre pais (ou mães) e filhos, quanto entre pessoas adultas, sujeita que está às intempéries da própria vida afetiva dos responsáveis legais da criança, à morosidade e ineficácia da tutela judicial, etc., logrando grave risco se estabelecer, como fundamento único de uma identidade que vai, como classicamente se tem concebido, acompanhar o indivíduo por toda a vida, um elemento fático tão volátil e frágil como demonstrado.