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5 APORIAS E PROPOSTAS DE SUPERAÇÃO

5.4 POR UMA PROPOSTA LEGISLATIVA

Já que aqui se criticou a ausência de qualquer regulamentação legislativa, o presente trabalho não poderia deixar de trazer, ele mesmo, sua própria proposta, sintetizando toda a construção doutrinária – nacional e estrangeira – sobre a posse de estado como instrumento constitutivo da filiação, acrescentando a contribuição pessoal para enfrentar os problemas propostos e constatados no decorrer do presente trabalho.

Primeiramente, estabelece-se o centro – a filiação sócio-afetiva, instrumentalizada no campo dos fatos pela figura clássica da posse de estado de filho – evidentemente com distinta finalidade do antigo uso do instituto: “a filiação se estabelece pela posse de estado...”.

Ao redor, canalizando os fatos para o novo centro promotor da filiação, surgem o critério biológico e a presunção nupcialista: “... porém a ascendência biológica ou o registro

de nascimento, na forma da lei, fazem presumir tal estado.”.

É importante entender o sentido e alcance do final da expressão por nós proposta. Num sistema em que a posse do estado de filho se torne central no estabelecimento da paternidade jurídica, a ausência de posse de estado de filho não deixaria o investigando sem pai ou mãe, o que lhe causaria sério dano aos seus interesses.

Bastaria para isso que o vínculo jurídico se estabelecesse a partir de uma presunção oriunda do fato biológico, presunção esta (e não o fato biológico – que depende de um mero exame técnico) que, por óbvio, não admite prova em contrário.

Desta forma concilia-se, tanto o instrumental já existente para o estabelecimento da filiação, quanto a mais moderna técnica de juridicização dos estados de fato familiares.

Do ponto de vista das possíveis pretensões processuais daí advindas, é mister reconhecer agora que, em sede de investigação de paternidade, a relação paterno-filial afetiva vem primeiro como causa de pedir, e na falta desta (o pretenso pai ou mãe podem não querer reconhecer o investigando, daí a lide), a posse estaria presumida pela mesma hipótese que hoje admite a referida ação – paternidade biológica.

Num eventual conflito entre o vínculo biológico ou mesmo registral (fundado ou não em laços biológicos, oriundo da janela nupcialista, ou ainda de fecundação heteróloga consentida), a priori já se resolveria o conflito, favorecendo a posse de estado.

Num conflito entre o biológico e o registral (como é o caso do filho adulterino à

matre), a posse de estado figuraria como instrumento de desempate e critério de atribuição do

ônus jurídico da paternidade.

Seja como critério de atribuição ou de desempate, a evocação da posse de estado de filho permite a funcionalização dos critérios biológico e nupcialista de paternidade em favor do critério sócio-afetivo, harmonizando o sistema à nova conformação valorativa realizada pela paternidade jurídica sem destruir radicalmente o arcabouço jurídico da filiação construído pela civilização ocidental nos últimos três milênios.

Outrossim, a nova conformação legislativa proposta supera o ranço biologista que teima em manter-se sozinho de pé no conjunto de regras que tratam da filiação pela Lei 10.406. Sou daqueles que entendem que, tomadas em seus conjuntos, as normas também mandam mensagens.

Um cotejo jurídico que desconheça qualquer mecanismo de estabelecimento de filiação jurídica a partir das relações de fato, herdeiro do falecido nupcialismo radical, só pode ser baseado na relação biológica, ainda que admitindo exceções não-biológicas.

Uma mudança meramente teórico-valorativa estaria incompleta se não se refletisse, por isto mesmo, numa mudança “de ponta cabeça” no sistema de atribuição da filiação pela legislação vigente.

Uma das conseqüências mais eloqüentes desta mudança seria a flexibilização da mudança de parentesco em primeiro grau para além da hipótese da adoção. É o que se deduz da simples leitura do enunciado.

A posse de estado de filho pode ser, em tese, estabelecida em momentos diferentes, com pais diferentes, bastando, para isso, a anuência da dupla de interessados, através de atos reiterados que configurem o suporte fático da posse de estado.

Trata-se de uma filiação mais fluida, é bem verdade, mas o que não é ainda fluido nas relações de família? Mais do que em qualquer outra área da experiência humana, as relações familiares deixaram de ser estáticas – até que a morte os separe – para permitir a busca da felicidade dos indivíduos concretos para além da existência das instituições abstratas.

Que mal há então em se permitir, dentro de parâmetros de razoabilidade e dentro de um contexto histórico, científico e jurídico, a fluidez igualmente das relações paterno ou materno-filiais, quando a própria experiência das famílias já consolidou, na prática, esta mesma fluidez?

O enunciado desburocratiza o estabelecimento de novas relações paterno-filiais outrora à margem da lei, tais como as crianças e adolescentes criados como filhos, tratados privada e publicamente como filhos, mas que não carregam, por ignorância ou desprezo pelo formalismo jurídico elitista, caro e complexo, o nome de seus genitores do coração?

Não poucos casos de injustiça real acobertam a aplicação fria da lei sucessória em casos de, por exemplo, “filhos de criação” (fazendo-se a ressalva que nem todo f.c. pode ser considerado filho sócio-afetivo, mas apenas aquele que demonstrar a respectiva posse de estado)?

O direito daí oriundo, por sua natureza, seria imprescritível, o que propicia sua alteração pelo próprio filho sociológico ao alcançar a maioridade/capacidade plena ou, sob a fiscalização do Ministério Público quanto aos seus interesses, representado ou assistido, conforme sua idade.

O pleito pode ainda ser formulado contra quem presentemente não deseja reconhecer como filho o investigante, bastando para isso que a posse de estado de filho, mesmo pretérita, seja demonstrada ou que a forma presumida seja estabelecida pela prova pericial.

Uma aparente assimetria emerge da possibilidade (aparente, a meu ver) da disponibilidade do estado de filiação pelo seu titular, sem a correspondente do lado do pai. Isto se deve ao fato de que, embora se possa reconhecer um interesse personalíssimo do pai em se ver reconhecido no filho, deve-se levar em consideração também que a escolha da paternidade, seja em que modalidade for, é preponderantemente dos pais, raramente participando os filhos desta decisão.

Crianças não escolhem nascer ou ser criadas com denodo e amor por quem quer que seja. Por isso, no melhor interesse destas personalidades faticamente submetidas à realidade familiar em que se originaram, permanece o direito de paternidade indisponível em relação aos pais.

Já no pólo filial, ao lado do reconhecimento ao direito de ter pai jurídico (seja pela via da posse real ou presumida de estado de filho), urge também reconhecer a possibilidade de mudança na atribuição da paternidade, seja à criança e ao adolescente pela força da adoção de direito ou de fato (i.e., pela posse de estado), seja, para os capazes, a possibilidade de se “adotar” outros pais ou até pleitear-se em juízo o reconhecimento jurídico do pai ou mãe “afetivos”.

Não se pode entretanto esquecer de atrair a incidência do art. 42 § 1º do ECA à posse de estado constitutiva de relação paterno-filial, pelas razões já expostas: “Aplicam-se à

paternidade oriunda da posse de estado as disposições do art. 42 § 1º da Lei 8.069/90.”

E bem assim, não olvidar da preocupação solidarista: “À paternidade ou maternidade

estabelecida por segunda posse de estado, não se atribui o efeito desconstitutivo do dever alimentar à paternidade ou maternidade anterior, para efeito de assistência a que se refere o art. 1.694 da Lei 10.406/2002, exceto se o vínculo foi comprovadamente estabelecido na menoridade.”.

O critério da menoridade aí, por óbvio, é francamente arbitrário, visa apenas evitar-se a instrumentalização, por adultos, da posse de estado com vistas à fraude ao dever de alimentos, sem, entretanto vedar-lhe o reconhecimento judicial, em tese, de posse de estado.

Claramente embute-se aqui a filiação alimentar construída anteriormente e de modo sucinto, em que pese o efetivo desligamento jurídico-parental possibilitado pela posse de estado entre pai/mãe e filho/a.