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3 MUTAÇÕES FÍSICAS DA MÁQUINA UNIVERSITÁRIA

3.1 O FANTASMA DA INUNDAÇÃO

Em 17 de julho de 1975, naquela exata noite, precipitaram-se todas as nascentes de Pernambuco, arrombando as fissuras do firmamento na última grande cheia da região. A enxurrada do Rio Capibaribe e Beberibe inundou dezenas de cidades, especialmente a região metropolitana do Recife. De quase todos os lugares se via a maré arrastando automóveis, casas, troncos, pessoas, animais, numa versão apocalíptica da “Evocação” do poeta Manuel Bandeira: “Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinhos sumiu” (1993, p. 135).

Ao longo de quarenta e oito horas de angústia e morte, os flagelados se espalhavam ou, simplesmente, petrificavam, em meio à água, à lama e às ruínas. Os jornais anunciavam

108 naqueles dias: “A maior tragédia do século” com mais de 350 mil desabrigados e 107 mortos. A desolação era total. Multidões famintas, sobretudo crianças, se avolumavam sobre os monturos à procura de alimentos. Protegido em seu palácio, o governador biônico indicado pelo General Médici, Moura Cavalcanti1, decretou calamidade pública na capital e em mais nove municípios. Se por um lado faltaram vias para circular, por outro boiavam veículos de todas as marcas: Volkswagen, Renault, Simca, DKW, Jeep, etc.

A fúria fluvial devorara a rede de tráfego que crescia ano a ano, no embalo do desenvolvimento da indústria da construção e automobilística. Os automóveis foram ao longo do século XX conquistando as ruas e as praças outrora ocupadas pelos transeuntes, animais de montaria, bicicletas, carroças, bondes, etc. Apenas entre 1964 e 1976 o número de veículos licenciados saltou em Pernambuco de 47.384 para 223.203, dos quais 120.114 circulavam no Recife2 (IBGE, 1966, p. 245; IBGE, 1977, p. 575 ). Diante disso, era como se a natureza se vingasse da ocupação e do crescimento desordenado que, ao longo das três últimas décadas, elevara o custo do metro quadrado e multiplicara a rede rodoviária3, empurrando a população

mais pobre para os morros e periferias da cidade (NASCIMENTO, 2004). Aliás, morros que sempre ameaçavam desabar sobre as cabeças dos trabalhadores, pincipalmente, em meados de junho, quando chega o inverno.

Se durante a tempestade todos madrugaram ou cochilaram no escuro, de outra parte, o consumo de energia elétrica no Brasil mais do que dobrara nos últimos vinte anos (IBGE, 1966; 1974; 1977; 1980). Para além da nostalgia da luz de velas, algo dizia que a cidade crescera, a despeito da perpetuação de agudos problemas sociais, como a cheia, que reaparecia a cada inverno (NASCIMENTO, 2004; TEIXEIRA, 2007; BERNARDES, 2013).

O Estado ditatorial operou um processo acelerado e centralizado de urbanização e de industrialização, através da reprodução do capital estatal, nacional e multinacional (REIS FILHO, 2014b). O Recife, enquanto sede da principal agência de desenvolvimento regional, a igualmente inundada Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), foi também o centro de operação deste desenvolvimento desigual e autoritário (NASCIMENTO,

1 1925 – 1994. Advogado e político pernambucano formado pela FDR (1954). Exerceu diversas funções públicas

durante a ditadura: presidente do Incra (1970), ministro da Agricultura (1973 – 1974) e governador do estado de Pernambuco (1975-1979)

2 No Brasil o número de veículos saltou de 1.814.889 para 7.313.498 (IBGE, 1966, p. 245; IBGE, 1977, p. 575). 3 A rede rodoviária municipal, estadual e federal pavimentada ou não contava com 548.510 km em 1964 (16.033

km em Pernambuco - IBGE, 1966, p. 239) e 1.428.602 em 1975 (37.802 km em Pernambuco –IBGE, 1977, p. 573 - 574).

109 2004). De tal modo que a capital consumia o equivalente a toda energia sorvida pelas demais metrópoles da região: São Luís, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Maceió e Aracajú4.

Esta política econômica se articulava, de maneira mais ampla, à política externa de “desenvolvimento associado”, que condicionou por uma década as intensas relações com os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria (DA SILVA, 2014). Assim, da indústria à universidade, esta parceria consolidou um mapa de controle e de crescimento amparado no papel do Estado e do Empresariado multinacional e associado, na repressão política, no aumento da exploração do trabalho, no investimento internacional e no crescente endividamento público (SINGER, 2014; NASCIMENTO, 2004).

Por este ângulo, a ditadura no Brasil se afirmou gradativamente a partir de um programa econômico desenvolvimentista, em algum aspecto, oposto à plataforma neoliberal implantada por outras ditaduras latino-americanas, como na Argentina e no Chile. No geral se observa uma expansão significativa da participação do sistema financeiro, da indústria e do agronegócio, tendo em vista a ampliação monopolista da economia e da riqueza do país (SINGER, 2014, KLEIN; LUNA, 2014a; 2014c). Este panorama econômico financeiro impulsionou a reordenação utilitarista e funcional dos espaços urbanos (NASCIMENTO, 2004) e, por conseguinte, das cidades e campi universitários (NOGUEIRA, 2008; SOUZA, 2013a).

A ênfase no planejamento técnico e nos programas de desenvolvimento ditatorial não impediu que as águas do Capibaribe avançassem sobre a metrópole e sobre os campi suburbanos da UFPE e da UFRPE. Esta falha se dava, sobretudo, por uma política concentrada nos interesses das classes dirigentes e alheia aos problemas populares, entre os quais, moradia, saneamento, mobilidade, abastecimento de água, dentre outros. O milagre militar e empresarial dissolvia-se no murmúrio da grande cheia e seus desdobramentos.

Aliás, há décadas que a UFPE estava de mudança para o Engenho do Meio. Em contrapartida, articulações de gabinete entre autoridades acadêmicas, militares, políticas, religiosas e empresariais, pretendiam transferir a UFRPE para Garanhuns, que ficava a 230 km do Recife, na região agreste do estado. Mas, naquele contexto, aulas, provas e matrículas foram interrompidas, bem como salários antecipados e linhas de créditos disponibilizadas para os funcionários reconstruírem suas casas5. Os bairros que abrigavam os campi eram reconhecidos

4Respectivamente, em MWH: 857.433, 77.559, 49.854, 379.636, 101.396, 104.901 e 91.651 (IBGE, 1974, p. 605). 5Sobre as enchentes: Diário de Pernambuco, 19/07/1975, p. 10; 24/07/1975, p. 6; 25/07/1975, pp. 3 e 4;

110 pontos de devastação em decorrência das enchentes do rio Capibaribe (Diário de Pernambuco, 12/03/67, p. 13).

O reitor da UFPE em exercício, o vice-reitor Rômulo Maciel, tentou chegar, inutilmente, à Cidade Universitária (CDU). Os edifícios da UFPE lembravam, naqueles fatídicos dias, arrecifes de concreto em meio à antiga Várzea do Capibaribe. As edificações mais afetadas foram a Faculdade de Medicina, o Instituto de Antibióticos e a Faculdade de Enfermagem. Curiosamente os primeiros edifícios da antiga CDU. A fúria do Capibaribe e do Beberibe evidenciara o quanto era limitado o acesso à UFPE e à UFRPE. Na época apenas a Avenida Caxangá ligava os bairros centrais (Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista) aos bairros da Várzea e de Dois irmãos. Os jornais anunciavam: os prejuízos chegam a 20 milhões de cruzeiros e os reparos levarão meses para conclusão.

O regime militar acentuou as transformações do espaço urbano através de grandes obras de infraestrutura e deslocamentos populacionais. Estes programas de modernização se justificavam nos planos econômicos e urbanísticos construídos monoliticamente por técnicos vinculados às elites políticas e econômicas. Entre os anos 1960 e 1970, o regime conduziu ao extremo a lógica desenvolvimentista do final da Quarta República, implicando em inúmeras tensões entre os poderes públicos e os estratos populares. Os historiadores Denis Bernardes e José Luís do Nascimento analisaram as tensões políticas e socioculturais que emergem desta “reurbanização tecnocrática” (NASCIMENTO, 2004; BERNARDES, 2013).

No Recife, esta prática se constituiu através de programas públicos e privados de reurbanização, edificação e controle populacional. As primeiras medidas visavam redesenhar a cidade como espaço social higienizado e hierarquizado por vias (automobilísticas e passantes) e por equipamentos urbanos, daí as reformas do Cais da Rua da Aurora (1969), a abertura da Avenida Canal ou Agamenon Magalhães (1969), da Avenida Dantas Barreto e as grandes obras, como o Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães (1970), o Estádio José do Rego Maciel (o Arruda – 1972), a sede da prefeitura do Recife e inúmeras avenidas, pontes e viadutos.

O historiador José Luís do Nascimento grifaria que entre 1969 e 1975, na gestão dos prefeitos Geraldo Magalhães e Augusto Lucena, “o que mais se construíram no Recife foram avenidas, pontes, estacionamentos, jardins, praças, ruas e tantas outras obras destinadas a um tipo de habitante que tinha como principal meio de transporte o automóvel” (2004, p. 234-235).

Todas estas obras resultaram em desapropriações e assentamentos de grande contingente de pessoas e consequente descontentamento e resistência popular. Em uma das fases de construção da Avenida arterial Agamenon Magalhães foram demolidos pelo menos 109 mocambos (BERNARDES, 2013). Esta luta se expressou pela resistência aos programas

111 de reurbanização dos bairros populares, principalmente Mustardinha, Brasília Teimosa e Coque (Joana Bezerra). Somaram-se a estes os protestos de ambulantes contra operação homônima, que visava “higienizar” os bairros centrais do comércio popular e transformar camelôs em feirantes. A insatisfação popular impulsionou uma das maiores derrotas do partido do regime, a Aliança Renovadora nacional (ARENA) nas eleições parlamentares de 1974.

As populações mais pobres conviviam com as unidades urbanas da universidade que foram, igualmente, sacudidas pela grande cheia. Dentre os edifícios históricos mais afetados estavam a Faculdade de Odontologia e a Escola de Artes de Pernambuco que ficavam em sobrados em margens antípodas do Capibaribe, na rua Benfica e Henrique Dias. Os danos foram igualmente terríveis para o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e a Escola Técnica Federal de Pernambuco (ETFPE), na zona norte da cidade.

O Ministro da Educação e Cultura, Ney Braga6, e o professor Edson Machado7, do

Departamento de Assuntos Universitários (DAU), verificaram em companhia do sociólogo Gilberto Freyre (IJNPS), do reitor Humberto Carneiro (UFRPE) e do reitor Marcionilo Lins (UFPE), o impacto da enchente nos edifícios institucionais. Quase 90% do acervo da biblioteca do IJNPS estava perdido e o campus de Dois Irmãos, da UFRPE, foi totalmente arruinado. Os recursos prometidos deveriam ser aplicados nas despesas com imóveis, equipamentos e auxílio a funcionários e estudantes prejudicados pelo desastre.

As cheias não eram uma novidade para as metrópoles brasileiras e, sobretudo, para o Recife, onde as narrativas de alagamento datam do período colonial (MELLO, 1978; CARVALHO, 1998)8. Apenas a Faculdade de Odontologia foi destruída pelo menos três vezes, até sua definitiva mudança para o Engenho do Meio, ao passo que ocasionalmente a enchente comprometia ou arrastava umas das pontes cartão-postal da cidade com as pontes da Caxangá, da Madalena, da Torre, do Miúdo, do Beberibe e da Capunga9. Uma matéria de março de 1967

6 1917 – 2000. Militar e político paranaense que ocupou diversas funções na política no governo militar. Os cargos

mais importantes foram o de ministro da agricultura (1965-1966) do General Castelo Branco e ministro da educação do General Geisel (1974-1978). Elegeu-se indiretamente governador do Paraná entre 1979 e 1982. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/nei-amintas-de-barros-braga; Acesso em 24 mai. 2017.

7 Durante o período estudado, lecionou na Universidade Católica do Paraná (1974), na Universidade de Brasília

(UNB - 1964-1966; 1967), na Universidade Federal do Ceará (UFCE – 1966-1967) e UFRJ (1970). Ocupou também diversos cargos públicos no MEC entre 1970 e 2000, como o Departamento de Assuntos Universitários durante toda a gestão do ministro da educação e cultura, Ney Braga (1974-1979).

8 Os jornais citam as grandes cheias de 1842, 1854, 1866, 1869, 1917, 1920, 1924, 1961, 1966 e 1970. Diário de

Pernambuco, 30/04/1971, p. 4. Ver também Ata do Conselho Universitário da UFPE, 3ª Sessão extraordinária,

21/06/1966.

112 evocava em seu título: “Cheias de 1914, 1920 e 1924 quase acabaram com o Recife” (Diário de Pernambuco, 12/03/67, p. 13). Por certo, o crescimento vertiginoso da região metropolitana e de sua população, com todo processo de devastação ambiental, ocupação do espaço urbano e ausência de política de habitação e saneamento, transformaram o Recife numa distópica Veneza brasileira.

As classes populares e médias do Recife eram as mais atingidas pelas enchentes. Estas pessoas moravam nas áreas ribeirinhas e na zona rural da cidade, também conhecida como subúrbio. As enchentes sempre causavam transtornos aos seguintes bairros: Coelhos, Joana Bezerra, Ilha do Leite, Benfica, Torre, Madalena, Prado, Afogados, Zumbi, Cordeiro, Caxangá, Várzea, Iputinga, Dois irmãos e Apipucos.

Nos anos 1970 o governo construiu barragens que contivessem estas catástrofes. A Barragem de Tapacurá, iniciada em 1970, e inaugurada em 1973, foi uma iniciativa neste sentido, mas, pelo visto, não logrou êxito por si só. Estas obras de infraestrutura, com seus eventos cívicos de inauguração, foram uma marca publicitária e política do governo (BERNARDES, 2013). A participação das empresas nacionais de construção pesada no golpe e no bloco político que deu sustentação ao Regime é tamanha que o historiador Pedro Campos categorizou como uma “ditadura dos empreiteiros” (CAMPOS, 2012; BRASIL, 2014b).

No geral estas obras causaram grande impacto socioambiental e tiveram resultados variados entre o satisfatório e o completo fracasso. Dentre as construções de maior destaque evidenciam-se a Ponte Rio-Niterói, a Hidroelétrica de Itaipu e Tucuruí, a Transamazônica, a Usina Nuclear de Angra dos Reis e parte expressiva dos campi universitários brasileiros. Como já foi sublinhado, esta intervenção tecnocrática no território e nas populações urbanas se deu através de obras monumentais e da construção de ruas, avenidas, estradas, viadutos e pontes. Este agenciamento reordenava e ressignificava os corpos da cidade, de acordo com princípios urbanístico e econômicos modernos capitalistas.

Tal qual as ilhas de concreto que compunham os campi universitários, o tecido urbano das metrópoles brasileiras se tornou, ao longo dos anos 1970, predominantemente composto por edifícios de alvenaria, em detrimento da composição de madeira, barro e taipa dos anos 196010. Nada obstante, estas construções permaneciam em sua maioria sem iluminação elétrica,

10 Os números de domicílios ocupados no Brasil entre 1960 e 1970 é de 13.475.472 e 17.628.699. Estes últimos

classificados como duráveis, rústicos e improvisado com valores respectivos de: 13.007.920, 4.620.779 e 14.688. Em Pernambuco as cifras são de 811.405 e 972.528 (subdivididos em duráveis, rústicos e improvisados: 696.606, 275.476 e 446). No Recife o número absoluto de domicílios era de 326.094 (IBGE, 1966, p. 309-311; IBGE, 1977, p. 266-268). Os dados ignoram possivelmente as numerosas ocupações populares no campo e na cidade.

113 abastecimento de água e instalações sanitárias em todo Brasil11 (IBGE, 1966; 1977). Os próprios campi da UFPE e da UFRPE vivenciaram problema de abastecimento elétrico, água e saneamento por todo este período, muitas vezes resultando em greves e protestos estudantis.

Ao longo da década de 1960 e 1970, a paisagem de sobrados e mocambos fora inundada por arranha-céus, avenidas, viadutos, estádios, estacionamentos e outros equipamentos, em detrimento da parcela da sociedade. Em alguns casos, como nos bairros do Engenho do Meio, Dois Irmãos e Santo Amaro, o horizonte se tornava ainda mais surreal, haja vista a composição paradoxal formada pela arquitetura tradicional e popular e a modernidade dos edifícios universitários.

O Recife era, portanto, uma sinédoque12 de como o “milagre” dos anos 1970 rapidamente se transformava em distopia social. Neste intervalo, sua população saltara de quase 800 mil para 1 milhão de habitantes (IBGE, 1977), agravando, como em todo o Brasil, os problemas de trabalho, habitação e saneamento (KLEIN; LUNA, 2014a; 2014b). Em suas devidas proporções, o mesmo se dava na comunidade universitária brasileira, cuja população e atividades se expandiram e se diversificaram num corpo erigido, em detrimento da participação e do desejo de seus habitantes. Mas, passada a cheia, um novo rumor assolaria a cidade, “Tapacurá estourou”, virando-a mais uma vez de pernas para o ar.