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3 MUTAÇÕES FÍSICAS DA MÁQUINA UNIVERSITÁRIA

3.3 O CRIME DA CIDADE UNIVERSITÁRIA: SIGNOS E RITOS POLÍTICOS

Havia um burburinho na manhã de 27 de maio de 1969 no campus da Cidade Universitária da UFPE. Os boatos corriam entre os estudantes, professores e técnicos- administrativos ao longo das esparsas unidades acadêmicas e complementares: Faculdade de Medicina do Recife (FMR), Faculdade de Enfermagem e Faculdade de Farmácia; Faculdade de Ciências Econômicas; Institutos e Centros especializados; Faculdade de Filosofia e Instituo de Ciências do Homem (ICH); Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP); Imprensa Universitária; e Escola Superior de Química.

Pelos semblantes, o assunto do dia não era o atraso ou lotação do único ônibus que ligava o centro à Cidade Universitária, os engarrafamentos da Avenida Caxangá, os protestos estudantis, ou mesmo a solenidade de inauguração de novos blocos acadêmicos com festividades cívicas e militares. O murmúrio dos corredores dizia que um vigilante encontrara, por volta das seis horas, um corpo, em um terreno baldio, da Cidade Universitária. Pelo que falavam era o Padre Henrique, assessor de apenas 28 anos do Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara.

Na passagem dos dias, não faltou quem repetisse a versão “oficial” reproduzida pelos jornais: “Crime da Cidade Universitária” (CUNHA, 2007a). A impressa afirmava que os assassinos eram “toxicomaníacos”, como os que lotavam sessões policiais: “trata-se de viciados em psicotrópicos que podem ter implicações no crime da Cidade Universitária” (Diário de Pernambuco, 06/06/1969, p. 1).

Durante o funeral e o cortejo-protesto já se comentava que o Padre Henrique fora sequestrado, torturado e assassinado pela Ditadura. Seu corpo estava “de bruços” com “sinais de estrangulamento, arranhões, cortes e hematomas profundos, uma corda […] enlaçada ao pescoço e três disparos de arma de fogo em sua cabeça” (Cadernos da Memória e da Verdade,

128 2014, p. 11).

Figura 5 - Arredores da Cidade Universitária, local onde o corpo do Padre Antônio Henrique foi encontrado

Fonte: Cadernos da Memória e da Verdade, 2014, p. 9

As manchetes de jornais alertavam tacitamente aos opositores do regime, especialmente ao arcebispo de Olinda e de Recife, Dom Hélder Câmara, e ao movimento estudantil que a violência do AI-5 e do Decreto-lei 477, inaugurara um novo ciclo de repressão. Numa foto, o sacerdote é exibido com as mãos crispadas, o semblante lancinante e o corpo em decúbito dorsal. Ao lado do cadáver, um policial de capacete e cassetete e uma jovem de vestes simples e sandálias de dedo. Enquanto o primeiro encara o defunto, a segunda observa, melancólica, as faces curiosas e taciturnas de seis crianças descamisadas e alguns rapazes reunidos após um arame farpado. No fundo se vê um matagal e uma plantação de cana que se perde no horizonte

129 (Cadernos da Memória e da Verdade, 2014, p. 9)23.

A paisagem árida da monocultura lembrava o passado colonial de canaviais e moendas, quando se chamava “Engenho do Meio da Várzea” (MELLO, 1978; CABRAL, 2006). O ambiente silencioso, escuro e despovoado facilitou a velha política de Estado brasileira, praticada desde os tempos da escravidão contra as classes populares e minorias étnico-raciais: a tortura e a execução. Após o sinistro acontecimento, uma sombra de medo se espalhou sobre os universitários. Este espectro conviveu com a retomada das obras de construção e urbanização da antiga Cidade universitária de Pernambuco.

Entre o triste evento e o início dos anos 1970, esta paisagem foi rapidamente redesenhada pela expansão arquitetônica e urbanística da UFPE. Os eventos cívicos e as matérias jornalísticas passaram a divulgar diariamente a célere reconstrução daqueles espaços rurais à luz de técnicas sofisticadas de arquitetura, urbanismo e engenharia. O regime aparece como o promotor do desenvolvimento e os reitores como gerentes locais desta empreitada. A dinâmica deu novo contorno às construções dos anos 1950, invertendo a lógica pública de edificação das primeiras cidades universitárias pelos convênios de financiamento internacional. O acesso aos recursos não se dava sem adesão pública ao regime e suas fileiras.

As matérias jornalísticas destacavam o conjunto de obras como expressão de um governo supostamente democrático que promove o desenvolvimento científico, tecnológico e industrial. A ciência e a técnica são as bases deste trabalho dito sistemático, planejado e eficiente. Esta composição quase sempre obedece a uma lógica interna na qual a cidade universitária e o “campus” expressam a materialização do regime militar através dos valores numéricos e estéticos das construções acadêmicas24.

Assim, a cada notícia, são anunciadas novas expansões, planos, reformas e inaugurações de edifícios. Estes números estão sempre relacionados à capacidade do governo e da

23 Pesquisas sobre o tema e o relatório da Comissão Estadual de Memória e Verdade Dom Helder câmara

descrevem como a morte do Padre Henrique motivou-se nos trabalhos de educação de jovens do clérigo e nas denúncias da repressão pelo Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara. Por estas práticas o clérigo foi considerado “subversivo” e, por conseguinte, sequestrado, torturado e assassinado por agentes policiais, militares e paramilitares das forças de repressão. O relatório citado descreve, além do mais, o conluio de organismo e agentes estatais para produção de versão falaciosa sobre o crime e proteção de seus efetivos responsáveis (os policiais civis Rível Rocha e Humberto Cerrano de Souza; o promotor público José Bartolomeu Lemos Gibson e seu parente, Jerônimo Duarte Rodrigues Neto; o estudante universitário Rogério Matos Nascimento - Cadernos da Memória e

da Verdade, 2014). O relatório se encontra disponível em:

http://200.238.101.22/docreader/docreader.aspx?bib=RELHEN&pasta=RELAT%C3%93RIO%20Pe.%20HENR IQUE; Acesso em: 29 mai. 2017.

24 O uso da expressão “cidade universitária” e “campus” é muito comum nas mídias jornalísticas e no senso

130 universidade de abrigar e de integrar eficientemente a multidão de estudantes, técnicos e professores. Também afirma a Universidade como meio físico de realização da pesquisa científica e tecnológica para o desenvolvimento da indústria e do agronegócio brasileiro25.

No plano estético, as cidades universitárias e os campi são conjugados como meios aprazíveis de um futuro antecipado. Sua forma de expressão é arquitetura e a engenharia moderna, assim como os planejamentos com fins de vigilância e controle. Estes enunciados numéricos são normalmente simultâneos às descrições poéticas do aço, do concreto, do vidro e, por vezes, dos ambientes bucólicos da universidade. Este trecho sobre a UFPB é bastante ilustrativo:

Quando o repórter espalhou a vista pela paisagem da Cidade Universitária, a impressão que teve não foi a de que estava em João Pessoa, mas perlustrando algum bosque encantado da Suíça e, enquanto o olhar perdia-se como em êxtase, no deslumbramento da espessa folhagem e na poesia das veredas o cérebro interrogava-se: sonho ou miragem? Não poderia ser outra sensação a de quem visita a indescritível obra da UFPB. (Diário de Pernambuco, 05/03/1970, p. 5)

A exaltação poética do campus busca equilibrar no plano expressivo a violência que subjaz à expansão, ao deslocamento, ao reordenamento, enfim à captura do território universitário pelos vetores heterônimos do regime militar e do capitalismo. Nesta lógica, os eventos cívicos em torno das obras funcionam como espaços de acomodação e de compartilhamento de corpos e dos signos ditatoriais. Esta dupla articulação é fundamental para pensar a produção de legitimidade, consenso e consentimento entre as elites universitárias e o Estado autoritário. Os programas de expansão e melhoramento foram assim instrumentalizados pela publicidade política do regime, que vendia a imagem de um Estado forte e democrático promotor do desenvolvimento socioeconômico, científico e tecnológico.

Por exemplo, ainda em novembro de 1964, o general presidente Humberto de Alencar Castelo Branco elegeu o Recife e a sua universidade como um de seus primeiros destinos oficiais. Para além de sua agenda política, viera acompanhar de perto o desmonte do que dizia ser a “mais sutil e eficiente obra subversiva já realizada no Brasil”: o sistema Paulo Freire de educação (VERAS, 2012, p. 209). A posse do general coincidira com a revogação do Programa

25Diário de Pernambuco, 30/03/69, p. 29; 17/04/1969, p.2 ; 06/08/1968, p. 36; 05/03/1970, p. 5; 14/05/1970, p.

131 nacional de alfabetização (PNA), coordenado pelo educador (Decreto nº 53.886/64). A iniciativa surgira após os bons resultados do círculo de cultura de Angicos e previa a alfabetização de 1.834.200, através da criação de 60.870 novos círculos de cultura.

Angicos permanecia viva na mente do ditador: Paulo Freire, sua jovem equipe do SEC/UR e de estudantes universitários e secundaristas; a formatura de alfabetização de 380 adultos; o discurso de Paulo Freire e do presidente João Goulart; as duas batidas fúnebres no ombro do educador e o cumprimento do general: “Meu jovem, você está engordando cascavéis nesses sertões” (CARVALHO, 1997; VERAS, 2013, p. 23). De toda forma, ao chegar ao Recife, o então general presidente não encontrou o educador, que já se encontrava exilado na Bolívia, desde setembro de 1964.

A pauta da reunião entre o general presidente e os catedráticos se concentrou na Cidade Universitária. Além de Castelo Branco estavam presente o reitor Murilo Guimarães (FDR) e os professores catedráticos Gilberto Osório (FF), Nilo Pereira (Diretor da FF), Chaves Batista (Diretor do Instituto de Micologia - IMUR), Nelson Chaves (Instituto de Nutrição) e Arnaldo Caldas (Diretor da Faculdade de Odontologia). Em uma fotografia, os docentes superiores aparecem sentados, encerrados em seus ternos, em uma mesa retangular. O General repousa na cabeceira da mesa ao lado do Reitor (Diário de Pernambuco, 19/11/1964).

Nos discursos sobre as obras da cidade universitária repetiam-se os imperativos: integrar, concentrar e acelerar. Encontros como estes e seus ritos políticos foram um importante meio de legitimação da ditadura pela fusão de vozes e de corpos militares e civis, neste caso professores universitários. Estes círculos funcionavam como espaço privilegiado de adesão e de acomodação por meio de negociação, mobilização e doutrinação (BERNARDES, 2013; MOTTA, 2014a).

Figura 6 - Na reitoria, Castelo Branco ouviu professores e alunos

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Durante o encontro ficou estabelecido o repasse de recursos para conclusão do edifício da Faculdade de Filosofia e Institutos Centrais (o atual Centro de Filosofia e Ciências Humanas). Do projeto inicial, com 3 blocos, do arquiteto Felipo Mellia, apenas se construiu o bloco principal de 15 andares. O desenho inicial estava disposto horizontalmente, mas a pedido dos catedráticos foi verticalizado, tornando-se o edifício mais alto do campus. Mais tarde, o arranha céu se tornaria conhecido pelos recorrentes casos de suicídio. Ainda em 1964 estudantes protestaram pela abertura do “restaurante central” durante a visita do Ministro Pedro Aleixo e de Moniz Aragão, diretor do Departamento Nacional de Ensino Superior.

Castelo Branco retornou em 1966 para inaugurar, ao lado do reitor Murilo Guimarães e do Arcebispo Dom Helder Câmara, várias obras da Cidade Universitária, dentre elas a Faculdade de Filosofia e Instituto Ciências do Homem (ICH, depois Centro de Filosofia e Ciências Humanas- CFCH), a Escola Superior de Química, a Faculdade de Farmácia, o Centro de Ciências do Nordeste (CECINE) e a Escola de Enfermagem. Apesar da presença o sacerdote já se encontrava em franca oposição ao regime. O evento foi registrado em audiovisual pela Agência Nacional e compôs produto informativo e publicitário do regime: “Telejornal Informativo N. 38” (1966). Há um registro fotográfico da visita presidencial à UFPE.

Figura 7 - Castelo Branco, o reitor Murilo Guimarães e comitiva

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De terno preto, o general presidente Castelo Branco e o reitor Murilo Guimarães lançam na mesma cadência a perna esquerda para frente e a direita para trás. Parecem guiar a marcha de um pelotão, que veste passeio completo militar, e em que saltam ritmicamente os quepes verde oliva. Pela ausência destas indumentárias da cabeça, se percebe que os homens na quarta posição das filas são civis. O semblante lacônico dos militares contrasta com o sorriso esboçado no rosto do reitor. Não há mulheres na foto, apenas homens e grossas vigas de concreto.

Na Cerimônia, o reitor Murilo Guimarães saudou o presidente e a memória do reitor Joaquim Amazonas, “O artífice desse grande empreendimento, o templo”. Lembrou dos trabalhos do professor João Alfredo e do ETCU na pessoa do diretor Agerson Correa, sublinhando em seguida a necessidade de apoio do Governo Federal e dos órgãos de financiamento para conclusão do empreendimento (Diário de Pernambuco, 16/08/1966, p. 8). Após listar as 14 unidades em funcionamento na cidade universitária, o orador reafirmou suas expectativas quanto à expansão física através do Empréstimo do MEC/BID. Sua conclusão atinava para a construção do alojamento estudantil:

Tão relevante nos parece a ideia, que ousamos formular ao Exmo. Sr. Presidente da República, no momento em que ele nos traz o conforto da sua presença, a traduzir o seu interesse pela nossa Universidade, que ordene a destinação de uma ajuda financeira especial para moradia dos estudantes (Diário de Pernambuco, 16/08/1966, p. 8).

Duas observações são importantes sobre a solenidade. Uma primeira se refere aos usos midiáticos destes eventos cívicos, especialmente de inauguração de obras tal qual a cidade universitária, bem como à dinâmica de colaboração e de acomodação das elites universitárias cuja instituição concentrava grande parte dos opositores do regime. A segunda observação referente à ênfase do reitor nos convênios e nos empréstimos mediados pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste com a Agência Americana de Desenvolvimento Internacional (SUDENE/USAID), Banco da Alemanha Ocidental e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para conclusão e continuidade das obras (Diário de Pernambuco, 25/12/1964, p. 10; 15/04/1965, p. 8; 16/08/1966, p. 8). Esta modalidade de relação com o mercado financeiro seria estruturada nos anos seguintes como um dos principais eixos de

134 financiamento da reforma universitária conservadora26.

A apropriação publicitária das inaugurações de instalações físicas fica explicita numa série de reportagens, talvez compradas, sobre a UFPE e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a Universidade de Brasília (UNB), a UNICAP e a UFRPE publicadas em páginas inteiras do Diário de Pernambuco (31/03/1965, p. 10; 10/08/1967, p. 12; 06/08/1968, p. 36; 30/03/69, p. 29; 17/04/1969, p. 2; 15/06/29169, p. 4; 13/11/69, p. 10). As expressões cidade universitárias e campus são comumente utilizadas como sinônimos, embora as consultorias contratadas pelo MEC já comecem a opô-las em sua forma de conteúdo, isto é, edifícios monumentais (Faculdades e Escolas) e edifícios funcionais (blocos acadêmicos, administrativos e complementares).

Em outro evento, já em 1973, os estudantes adesistas Sebastião da Silva Cazé (presidente do DCE) e Ricardo Médicis de Albuquerque Maranhão (diretório acadêmico de biociências) entregam ao general presidente Médici, “um amigo dos estudantes”, um documento com elogios ao governo e reivindicações do corpo discente. As entidades estudantis eram naquele momento mantidas e montadas com apoio do regime através da Pró-reitoria de Assuntos Comunitários que funcionava, então, como organismo universitário de acomodação, de cooptação e de arrefecimento estudantil27. Assim, entre as inúmeras falas de aliança e de filiação ao governo mais brutal da ditadura, os estudantes apresentam uma pauta de reivindicações estritamente corporativa: “apressamento das obras do Hospital das Clínicas, recomendação dos diplomados em ciências biomédicas e instalação breve da Usina piloto do açúcar e álcool” (Diário de Pernambuco, 02/04/1973, p. 3).

Os estudantes, para reafirmar o pleito, também lembraram o título de doutor honoris causa concedido ao titular do MEC, Jarbas passarinho, declarado o “ministro da juventude”. Os dois casos citados são exemplos de como os ritos universitários se misturaram com as cerimônias cívicas do regime através das quais militares e lideranças acadêmicas compartilham interesses, apoio, valores e recursos.

Esta dinâmica dos campi participava das grandes obras de infraestrutura, que ao custo de grande impacto ambiental e endividamento externo promoveram o signo de um Brasil grande.

26 A reforma universitária conservadora remete à vigilância e à repressão permanente da universidade, à escolha e

à tomada de decisões monocromáticas por dirigentes universitários vinculados ao regime, ao sentido fundamentalmente técnico da reforma, à defesa do status quo e à preservação de prática e formações socioculturais tradicionais.

135 Estas obras, especialmente as de expansão da malha viária e do setor energético, possuíam também uma força publicitária e doutrinária. O principal agente desta empreitada foram os aliados do governo da indústria de construção pesada e do mercado financeiro (CAMPOS, 2012). Os empreiteiros saíram fortalecidos dos anos 1970 como monopólio atuante em diversos setores da construção civil mundial. Dentre eles, especialmente, a Camargo Correa, a Andrade Gutierrez, a Mendes Junior e a Odebrecht. Por outro ângulo, a efetivação deste consórcio se dava, também, através dos fluxos de capitais operados por organizações financeiras como o BID, o FMI e bancos europeus28 (CAMPOS, 2012).