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O fenômeno da violência sexual no Brasil e a tutela penal da dignidade sexual: a

Após uma breve análise sobre do que se tratam os crimes de violência sexual praticados em face de sujeitos vulneráveis, verifica-se que atualmente, no Brasil, tais crimes ainda possuem índices significativos.

Segundo dados do SINAN16 (2011, apud WAISEL, 2012, grifo nosso) as modalidades de violência sexual que ocorrem com maior são, ou, pelo menos são mais notificadas são:

Em primeiro lugar, os estupros, que concentram 59% dos atendimentos de crianças e adolescentes na área de violências sexuais. A grande maioria das vítimas pertence ao sexo feminino: entre 74,4% e 85,4% segundo o caso, com picos de incidência feminina a partir dos 10 anos de idade. No assédio sexual a elevada participação do sexo é semelhante à anterior: 83,1%. Só no atentado violento ao pudor que a participação feminina cai levemente, mas ainda preponderante: vai para 74,4%.

Assim, “pelos registros do SINAN foi atendido, em 2011, um total de 10.425 crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. A maior incidência de atendimentos registra-se na

faixa de 10 a 14 anos, com uma taxa de 23,8 notificações para cada 100 mil adolescentes.” (SINAN, 2011, apud WAISEL, 2012).

Além disso, a partir de análise realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF BRASIL, 2016, grifo nosso), “[...] em 2015, segundo dados do Disque 100, foram registradas 17.588 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, equivalentes

a duas denúncias por hora. Foram 22.851 vítimas, sendo 70% delas meninas.”

Ademais, não obstante as alarmantes estatísticas, a grande maioria dos crimes envolvendo violência à dignidade sexual de sujeitos vulneráveis não são divulgados, visto que geralmente ocorrem no âmbito familiar, dentro das próprias casas das vítimas, ante a omissão de quem tem o dever de amparo e proteção, fazendo por silenciar a existência de tais delitos, o que resulta no fato de tais dados acabarem ficando “por fora” das estatísticas.

Conforme Santos (2011, p. 13) “[...] em 90% das ocorrências de abuso sexual, o autor é alguém com quem a vítima convive – o pai biológico, o padrasto, o tio, o avô, o irmão ou o vizinho –, o que, muitas vezes, impede que o crime venha a ser denunciado.”

O pior fator é que, segundo Gabel (apud BRAUN, 2002) as marcas deixadas pela violência sexual na infância são profundas e extremamente marcantes, seja pelo fato da situação de vulnerabilidade em que se encontra a vítima, seja pelo fato da repetição de tais atos no âmbito doméstico, ou ainda devido ao silêncio em torno da vítima.

Nessa senda, tais crimes “[...] estão cercados de preconceitos, tabus e silêncios, o que dificulta sua denúncia às autoridades, contribuindo para o subdimensionamento do problema e o alto índice de impunidade dos autores desse tipo de violência.” (SANTOS, 2011, p. 13).

Posto isto, quando de fato ocorre a denúncia, começa um processo de busca pela verdade, no qual, por muitas vezes, a vítima volta a sofrer novas formas de violência, vindo a passar por um processo de revitimização, seja pelo fato de muitas vezes não ser levada a sério pelas autoridades, seja pelo processo desgastante e prolongado, com muitas audiências e perguntas repetitivas, fazendo-a a novamente vivenciar as cenas de horror sofridas.

Além disso, quando a vítima é pessoa em fase de formação - criança e adolescente -, a situação piora, pois no entender destes, durante a instrução processual, acabam “em jogo” muitas coisas. Na prática, a vítima fica em uma situação, por vezes, muito pior do que a posição tida pelo violador e também pelo garante omisso, posto que está “contra” os sujeitos que, na maioria das vezes, a criaram, sua família, e o transtorno psicológico sofrido durante esse processo é muito significativo. Não por outra razão que se verificam repentinas mudanças de ideias durante o correr do processo no depoimento das vítimas infantes.

Por tais razões, o acompanhamento das vítimas por especialista capacitado é extremamente importante para o processo de apuração do crime. Estas precisam estar amparadas e psicologicamente fortes para enfrentar audiências, depoimentos, e a pressão por parte dos agressores, que acabam por utilizar do amor que “sentem” para obter um “perdão” (leia-se: negar os fatos e silenciar o crime, no intuito de inocentar os agressores e passar por mentirosa).

Tal fato é extremamente corriqueiro, conforme exemplifica jurisprudência do E. Tribunal de Justiça Gaúcho (RIO GRANDE DO SUL, 2013, grifo nosso):

EMENTA: AC Nº. 70.054.189.857 AC/M 4.763 - S 19.09.2013 - P 19 S 14.11.2013 - P 18 APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA A DIGNIDADADE SEXUAL. ESTUPROS DE VULNERÁVEL MAJORADOS EM CONTINUIDADE DELITIVA. 1.Materialidade e autoria. Comprovadas. A retratação da vítima, feita

em juízo, negando a existência de abuso sexual praticado por seu pai não se sustenta. Isto por que seus relatos anteriores, tanto aqueles prestados perante a

autoridade policial, quanto os prestados perante o Conselho Tutelar, Diretora da escola, Professora, Psicóloga, afirmando a prática criminosa, são coerentes, trazem riqueza de detalhes e não contêm contradições entre si. Estivesse a vítima mentido, naquelas ocasiões, certamente seus relatos não seriam tão semelhantes e a presença de uma contradição, ainda que mínima, far-se-ia presente. Ao depois, de observar que a vítima, ao tempo da retratação, não esclarece com a mesma riqueza de detalhes a sua relação sexual, onde restou desvirginada, limitando-se a dizer tê-la praticado uma única vez com terceiro que não o réu.[...] Então, importa a manutenção do decreto condenatório no que diz com o crime de estupro de vulnerável. [...] POR MAIORIA, APELO DEFENSIVO PARCIALMENTE PROVIDO. À UNANIMIDADE, APELO MINISTERIAL IMPROVIDO.

Entretanto, atualmente, está se avançando muito nesse sentido por meio do denominado “depoimento sem dano”. Criou-se assim, uma forma de ouvir vítimas de crimes de cunho sexual envolvendo vulneráveis sem causar ainda maiores danos psicológicos a esta, que teve início em nosso Estado, a partir de um projeto piloto instituído pelo juiz, atualmente

Desembargador, José Antônio Daltoé Cezar, e que no ano de 2017 passou a ser Lei, sendo obrigatória sua aplicação em todo o país.

Segundo o artigo 1º, da Lei 13.431 (BRASIL, 2017), o objetivo específico da criação do depoimento sem dano é normatizar e organizar o sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, criando mecanismos para prevenir e coibir a violência, bem como estabelecer medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência.

De acordo com Ortega (2017), dentre os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente, insertas na Lei 13.431 (BRASIL, 2017), merecem evidência:

a) prioridade absoluta; b) recebimento de informação adequada; c) manifestação de desejos e opiniões de maneira confidencial (sem afetar a troca de informações para fins de assistência à saúde e persecução penal), ou permanência em silêncio; d) assistência jurídica e psicossocial; e) ouvida em horário que lhe for mais adequado e conveniente, sempre que possível; f) segurança.

Desta forma, possui um sistema diferenciado do tradicional a ser realizado, seja na fase inquisitória, durante a elaboração do Inquérito Policial, seja durante a fase instrutória, com o fim de evitar a revitimização do ofendido. Nesse sistema, há a escuta especializada da vítima e o depoimento especial.

A escuta especializada, trata-se, conforme art. 7º, da Lei 13.437 (BRASIL, 2017), de “procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.” Assim, a vítima não será forçada a ficar relatando os fatos de modo exaustivo, devendo ser perguntado a esta apenas o necessário à instrução do processo.

No tocante ao depoimento especial, previsto no art. 8º, da Lei 13.431 (BRASIL, 2017), refere-se a “procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.” Não obstante, conforme a nova Lei, este será realizado em sala especial, evitando-se a formalidade trazida pela sala de audiência, no intuito de deixar a criança ou o adolescente “a vontade”, sem receios ou nervosismos.

Nesse sentido, “a escuta especializada e o depoimento especial serão realizados em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência”, conforme disciplina o art. 10, da referida Lei (BRASIL, 2017),

Ademais, o depoimento especial observará o seguinte procedimento, trazido pelo art. 12, da Lei 13.431 (BRASIL, 2017):

I - os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;

II - é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;

III - no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;

IV - findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco;

V - o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente;

VI - o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.

Da mesma forma, verifica-se que o ECA (BRASIL, 1990), em seu art. 28, parágrafo 1º, já determinava que “sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada.”

Outro importante aspecto trazido pela Lei (BRASIL, 2017), inserido no art. 9º, é a garantia de que “a criança ou o adolescente será resguardado de qualquer contato, ainda que visual, com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento”, sendo tal aspecto fundamental, a fim de evitar pressões psicológicas, angústias, medo, constrangimento, e, principalmente, o sofrimento de quem já sofreu tanto.

Além disso, a Lei do Depoimento sem Dano, também prevê um capítulo sobre a integração das políticas de atendimento, ressaltando o quão importante é denunciar a prática de violência sexual, principalmente quando a vítima se trata de sujeito vulnerável, a fim de cessar com os abusos e buscar punir os culpados.

Nessa senda, refere o art. 13 da Lei 13.431 (BRASIL, 2017, grifei) que “qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que constitua violência contra criança ou adolescente tem o dever de comunicar o fato [...]”, seja através do serviço de recebimento de denúncias (190), seja através do Conselho Tutelar da cidade, da Delegacia ou do Ministério Público, o que não se pode é deixar silenciar a prática da violência sexual, pois, como dito na letra da lei, é um DEVER como cidadão e, especialmente, como pessoa humana possuidora de direitos e deveres.

De toda sorte, a Lei incentiva também a criação de estabelecimentos, com profissionais capacitados e especializados, para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência contra a dignidade sexual, a fim de ampará-los no pior momento de suas vidas. Dispõe o art. 16º da Lei 13.431 (BRASIL, 2017) que incumbe ao Poder Público criar “programas, serviços ou equipamentos que proporcionem atenção e atendimento integral e interinstitucional às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, compostos por equipes multidisciplinares especializadas.”

Portanto, verifica-se que tanto qualquer cidadão, quanto o Poder Público têm o dever de colaborar para que juntos, seja possível acabar com a violência sexual contra crianças e adolescentes, e também ajudar a melhorar o sistema existente a fim de acabar com o processo de revitimização, com o silêncio, e, consequentemente com a impunidade dos violadores.