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O reconhecimento da participação por omissão na jurisprudência brasileira

Atualmente, na jurisprudência brasileira, a imputação do resultado típico ao garante omisso é bastante corriqueira. Assim, verifica-se que em casos em que a vítima vulnerável sofre violação à dignidade sexual, com a ciência de quem possui o dever garantir sua segurança, proteção e bem-estar, este responderá como se autor fosse desta violação.

Neste sentido, é entendimento consolidado do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (RIO GRANDE DO SUL, 2017, grifo nosso):

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA SEXUAL. ESTUPROS PRATICADOS CONTRA VULNERÁVEIS. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. CONDENAÇÃO CONFIRMADA. PENAS REVISADAS. CONTINUIDADE DELITIVA AFASTADA. CONCURSO MATERIAL DE CRIMES. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. PALAVRA DA

VÍTIMA. Não há discussão na jurisprudência deste Egrégio Tribunal de Justiça acerca do valor probatório outorgado à palavra da vítima, que assume especial dimensão em crimes sexuais, geralmente praticados sem a presença de testemunhas. Alteração no segundo depoimento prestado por uma das vítimas que não interfere na segurança de seu relato, especialmente quando o próprio Conselho Tutelar afirma que a infante estava nervosa e apresentava sinais de ter sido influenciada por terceiros para isentar seu padrasto. CONDUTA COMISSIVA POR OMISSÃO. Em

face da falta do dever legal de agir manifestada pela acusada, que permaneceu silente, mesmo após ser cientificada por seu próprio filho dos abusos sexuais praticados por seu então companheiro, resta inafastável a condenação da genitora das vítimas, garante legal destas, que contribuiu sobremaneira para que o codenunciado prosseguisse abusando sexualmente das vítimas. [...]

Verifica-se que o garante não deve se abster de tutelar pelo bem-estar de seu garantido, no intuito de não permitir, ou pelo menos tentar evitar que ocorram violações sexuais em face de seu garantido, tendo em vista que, conforme Ementa acima, caso tal não ocorra, é evidente que sua omissão venha a contribuir para a ocorrência e resultado dos delitos, sendo inafastável a imputação a este dos atos consumados.

Desta forma, resta clara a importância da responsabilização pelos crimes omissivos impróprios, pois a inércia de quem possui o dever de garantia é crucial para os sujeitos em situação de vulnerabilidade, tendo em vista que somente o garantidor, sabendo dos fatos que ocorrem, como no caso supracitado, pelo padrasto, tem o poder do “basta” nas violações ocorridas, e, quando esta, mesmo tendo a plena ciência dos fatos, se omite, a violência e o sofrimento se tornam silenciosos, passando por despercebidos aos olhos da sociedade.

Neste diapasão, decidiu o TJRS (RIO GRANDE DO SUL, 2016, grifo nosso):

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL EM CONTINUIDADE DELITIVA. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. CONDENAÇÃO MANTIDA. CONTINUIDADE DELITIVA MANTIDA. PENAS MANTIDAS. [...] O envolvimento da apelante nos fatos é classificado como

omissão, pois tinha conhecimento de tudo o que estava acontecendo e não tomou nenhuma atitude, abstendo-se de cumprir seu papel de garante dos filhos menores. Cabe o registro de que J. e M.C demonstraram ter raiva e sentirem repulsa da genitora, pois contaram os fatos para A., mas ela se limitava a dar de ombros e dizer que não tinha nada com isso. A alegação de que confiava em seu companheiro não afasta sua responsabilidade sua omissão

[...].

Ademais, tendo em vista a presunção ABSOLUTA da vulnerabilidade em razão da idade, de sujeitos menores de 14 anos, é tipificado como crime mesmo o fato se tratando de um relacionamento consentido:

EMENTA: APELAÇÃO CRIME. ESTUPROS. CONTINUIDADE DELITIVA. 1. ÉDITO CONDENATÓRIO. MANUTENÇÃO. Materialidade dos crimes e autoria suficientemente demonstradas pela prova produzida. Relatos da vítima confirmando que convivia maritalmente com o réu, há cerca já de 4 meses, com o consentimento

de sua genitora, a qual, inclusive, recebia auxílio financeiro do réu, por residir em

sua casa, plenamente corroborados pelas demais testemunhas, vizinhos seus, e pelos milicianos que efetivaram a prisão em flagrante do imputado, dormindo, nu, com a ofendida, menina de apenas 12 anos de idade.[...] Relevância da omissão da

genitora, que, sendo a responsável legal, permitiu que o acusado não só mantivesse relacionamento amoroso com a menor, como que morasse em sua casa, como companheiro da menina, não impedindo, embora o pudesse, que os crimes ocorressem no local e forma como ocorreram. [...] Descabimento da

pretendida relativização, desimportando eventual relacionamento sexual anterior da vítima, menina de apenas 12 anos de idade, ainda no limiar da adolescência. [...]. (RIO GRANDE DO SUL, 2014, grifo nosso.

Neste caso, verifica-se que na prática, há crime mesmo tratando-se de um relacionamento amoroso entre determinado sujeito e menor de 14 anos, respondendo pelo fato – estupro de vulnerável – tanto a pessoa com que a vítima mantinha a relação, quanto a genitora, garante da vítima, que, ao invés de impedir, consentia com os fatos.

No mesmo sentido, julgou o Superior Tribunal Federal (BRASIL, 2016, grifo nosso):

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. CONTINUIDADE NORMATIVO-TÍPICA. PRECEDENTES. DESPROVIMENTO DO AGRAVO. [...]. A decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios está em harmonia com a jurisprudência do Supremo. Confiram com as seguintes ementas: [...] EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. ESTUPRO. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. ART. 213 C.C. ART. 224, AL. A, DO CÓDIGO PENAL ANTES DA ALTERAÇÃO DA LEI 12.015/2009. CONSENTIMENTO DA OFENDIDA. IRRELEVÂNCIA. NATUREZA DA VIOLÊNCIA PRESUMIDA. ABSOLVIÇÃO. NECESSIDADE DE REEXAME DE FATOS E PROVAS IMPRÓPRIO NA VIA ELEITA. ORDEM DENEGADA. 1. Eventual

consentimento da ofendida, menor de 14 anos, para a conjunção carnal ou a sua experiência anterior não elidem a presunção de violência caracterizadora do crime de estupro[...] (Habeas Corpus nº 119091/SP, relatado na Segunda Turma

pela ministra Cármen Lúcia, publicado no Diário da Justiça do dia 18 de dezembro de 2013). 2. Ante o quadro, conheço do agravo e o desprovejo. 3. Publiquem. Brasília, 14 de dezembro de 2015. Ministro MARCO AURÉLIO Relator.

Ainda, em que pese seja maior a incidência de crimes omissivos impróprios envolvendo violência à liberdade sexual em face de genitoras, há também na jurisprudência o envolvimento de pais, abstendo-se de seu dever de guardião e permitindo a ocorrência de crimes ante à sua prole, como no caso de pai que “agenciava” a filha menor, permitindo que com esta se praticasse conjunção carnal no intuito de receber vantagens – dinheiro – em troca.

APELAÇÕES. DELITOS DE ESTUPROS DE VULNERÁVEIS E FORNECIMENTO DE DROGAS, SEM OBJETIVO DE LUCRO, A PESSOAS DE SEU RELACIONAMENTO PARA JUNTOS CONSUMIREM. CORREÇÃO DE ERRO MATERIAL. [...] ESTUPRO DE VULNERÁVEL. OMISSÃO IMPRÓPRIA. Mantida a condenação do acusado Éverson pelo delito de estupro

de vulnerável por omissão imprópria, na medida em que o acusado agenciava sua filha para manter relações sexuais com o corréu (João) com o fim de obter dinheiro. Além de ser partícipe, o inculpado Éverson, na condição de genitor da ofendida, tinha a o dever legal de impedir que o resultado se produzisse (garantidor), de forma que a sua omissão (classificada como imprópria, dado que o crime foi materialmente praticado por terceiro) faz com que o réu seja condenado pelo delito de estupro de vulnerável, eis que presente o nexo de evitação entre a omissão do agente e o resultado produzido. [...] (RIO GRANDE

DO SUL, 2017, grifo nosso).

Por sua vez, nestes casos, decidiu o Tribunal de Justiça Gaúcho que tal garante deverá responder pelo crime de estupro de vulnerável (que apresenta pena de 08 a 15 anos), e não pelo delito de favorecimento da prostituição (pena de 04 a 10 anos), que apresenta pena mais branda, tendo em vista a sua especial posição de garante, possuindo o dever legal de cuidado, proteção e vigilância.

2.4 A conveniência da responsabilização do garantidor nos crimes contra a dignidade