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Fenomenalidade do corpo e renovação da tradição

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 67-70)

Ainda que, em Michel Henry, a fenomenalidade do corpo e envie a uma corporeidade originária, a prova dessa fenomenalidade coincide com a prova que, nela e com ela, cada um de nós faz de si próprio. Do contrário, como poderia o filósofo afirmar, como fez na conferência de Nice, As ciências e a ética, em 1992, que “o humano começa onde começa esse viver definido como experiência de si e termina onde termina esse provar-se”, para concluir que “esse domínio de fenomenalidade é o domínio da ética” (1992, p. 3)? Pode fazê-lo, pois mostra como a atenção à fenomenalidade dessa prova da vida em nosso viver implica, quer a sua corporeidade originária que vivenciamos como possibilidade, quer a dimensão ética de nosso atos e experiências porquanto a possibilidade é pulsão que instiga, sem determinar, o nosso agir. Assim, quer uma, quer outra, fazem prova de sino enredo do nosso viver na vida ou na fenomenalidade do vínculo que originariamente as une e cuja materialidade ou espessura fenomenológica a palavra pathos tão eloquentemente expressa. Também, assim, compreendemos que antecedência absoluta da vida em relação ao nosso viver não indica só a impossibilidade de a ela nos anteciparmos em seu devir afetivo, mas, ainda, como é que esse devir nela nos notifica da qualidade de nosso viver. Podemos então dizer que pathos é fruto gerado do abraço entre corpo originário e o nosso viver ou nosso agir: pathos; co-pathos; é fenômeno nascido da relação entre dois. E, dizer que o corpo em sua corporeidade originária é pathos ou paixão, é dizer que o corpo é o lugar ou topos da verdade: verdade da vida que se anuncia como afeto, verdade de nós mesmos, porquanto, na vida, os nossos atos são pelo afeto qualificados.

Narrar esse pathos é narrar a verdade que eu sou; é narrar a verdade que somos. Essa verdade que legitima o título, para muitos, controverso, da obra Eu sou a verdade: para uma fenomenologia do cristianismo

(HENRY, 1996) – título que poderíamos ainda traduzir e com justeza por A verdade sou eu.

A verdade que eu sou é-me revelada como pathos: uma verdade cuja expressão escrita, tal como a pintura e a música ou qualquer outra modalidade de arte, enraizando no corpo, nele encontra seu espaço. Uma verdade que “inaugura uma outra época da escrita”16 e na qual “a

fenomenologia da vida encontra o seu respirar”17.

Esta outra época da escrita é exigida pelo próprio modo de revelação da vida. Nele, o estatuto fenomenológico do corpo – corpo como lugar da verdade – irá permitir a Michel Henry fazer o juízo da tradição filosófica: o juízo de uma tradição filosófica que esquecendo o corpo como lugar da verdade, o subjugou a uma verdade que ele não comportava e que, por isso, conhece, hoje, dificuldades até na definição do seu lugar e do seu estatuto. O que é a filosofia? Qual o seu lugar na cultura? São questões que fazem já parte do que resta de grandes tradições e de edifícios alicerçados em convicções cuja clareza se faz à custa do fechamento à graça daquilo que generosa e gratuitamente nos antecede e, assim, nos assegura de seu amor ao mesmo tempo que a ele nos convoca.

A fenomenalidade do juízo final do corpo é explicitamente abordada por Michel Henry na referência, ainda que breve, a Rimbaud. A expressão os corpos serão julgados, no final da obra Filosofia e Fenomenologia do corpo (1965), ecoa sem sombra de dúvida o intento de Rimbaud em Uma estação no inferno (1949) e que é, segundo Michel Henry o juízo da tradição (1965, p.)

Do juízo dessa tradição, Marion (2007) lembra que já Descartes punha em questão a dualidade que ele próprio estabelecera entre corpo e mente, ao interrogar a (im) possibilidade de um viver sem ser em um corpo dotado de sentidos. Michel Henry traz ao debate a saída para esta questão encontrada

16DEPRAZ, N. Écrire en phénoménologie: ‘une autre époque de l’écriture, Encre Marine: 1999. 17HENRY, M. Narrer le pathos. In Phénoménologie de la vie, T. III, PUF: 2004, p. 323.

já, por Descartes, nas Paixões da alma (HENRY, 1985). E eu lembro ainda a exigência de revisão da filosofia antiga pela filosofia medieval, sobretudo no que diz respeito à necessidade de pensar a encarnação cristã, tal como o testemunha a obra Encarnação (HENRY, 2000).

Mas será já a partir da obra Filosofia e fenomenologia do corpo (HENRY, 1965) que, tanto o acantoamento da encarnação à teologia, quanto a interrogação filosófica de Descartes, colhem em Michel Henry a estrutural fenomenalidade dessa tão almejada renovação. E isso, porque a prova originária de nosso viver pelo sentir dos sentidos apela à fenomenalidade do vínculo do vivo à vida – a fenomenalidade do vínculo deste corpo dotado de sentidos à vida do corpo e do sentir, apela à fenomenalidade daquilo que no corpo vivemos como passibilidade absoluta: aquilo que resiste ao nosso querer e configura a nossa vontade de viver. A prova de nosso viver apela à passagem do meu querer pelo que, a ele lhe resistindo, o revela em suas possibilidades e limites, como mostrará Henry (1965), reavaliando a fenomenalidade do sentimento de esforço e de resistência ao esforço, em Maine de Biran.

Um vínculo que é vivenciado como pathos: pulsão que impulsiona o nosso agir! E essa é a novidade da fenomenalidade da vida: o nosso agir conhece a sua possibilidade principal na pulsão ou no impulso para agir vivenciados em nossa corporeidade, mas também nessa mesma corporeidade conhece o término desse impulso ou a possibilidade efetiva desse mesmo agir. Princípio e término de uma força que circunscreve e configura os nossos atos: circunscreve e configura o nosso agir. Vínculo, pathos, pulsão, força, agir, sentimento de poder e sentimento de limite – limite que conhecemos como pathos sempre configurador do agir – são modalidades afetivas de nosso experienciar ou de nosso viver. Pelo que a fenomenalidade do agir implica a fenomenalidade do corpo, o corpo dotado de sentidos que vivenciamos como lugar ou topos de verdade: verdade do corpo que é, também, verdade de nosso viver e por conseguinte lugar de sua qualificação (HENRY, 1965, p. 281).

Fenomenalidade que, em Michel Henry, recupera uma parte de nós que ficou esquecida ou perdida pela fenomenologia tradicional e cuja importância será incontornável para se poder superar qualquer crise – crise do sujeito, crise da fenomenologia, crise cultural. E assim, se o corpo pode ser visto como a instância primeira de uma derrocada civilizacional, será também o corpo a instância primordial de criação de valores, tradições, culturas e civilizações.

Vejamos, então, como é que a fenomenalidade do corpo é lugar de renovação e de superação de uma crise que é já considerada por muitos, filósofos, médicos, psiquiatras, investigadores18, entre os quais Michel Henry, Lobo Antunes, André Green, António Damásio, uma crise civilizacional.

Da fenomenalidade do corpo tomemos a fenomenalidade dos sentidos do corpo: 1-) começaremos pela fenomenalidade da visão e sua importância na reformulação da tradição fenomenológica, Husserl e Heidegger; 2-) passaremos depois à fenomenalidade do som e da voz como paradigma da edificação da vida em cada um de nós; 3-) do som e da voz passaremos à dança; 4-) terminaremos mostrando como se implica a fenomenalidade dos sentidos na renovação da tradição da qual os processos educativos são parte integrante.

Fenomenalidade do corpo e fenomenalidade dos sentidos

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 67-70)