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Merleau-Ponty e a infância

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 108-111)

Pesquisar a criança inspirada em uma perspectiva fenomenológica exige a retirada dos “calçados” teóricos e pré-conceitos que rotulam e minimizam a experiência de todas as crianças, transformando-a em um modelo padrão. Assim, estar “descalça” possibilita o encontro com uma infância que se (des) vela apenas aos olhares atentos. O des-velar aqui repousa na perspectiva da verdade ou da a-lethéia grega, ou seja, o fenômeno se guarda de um único e definitivo mostrar-se, pois há sempre algo a ser visto, invisível, não revelado na existência do mesmo. Tudo que venhamos a descrever, afirmar ou explicar sob os fenômenos estará sempre aquém do mesmo. Por fim, não há representação conceitual última, universal, a histórica.

Ao propor a discussão a respeito do tema infância, não temos a pretensão de explicar esse fenômeno, mas sim compreendê-lo tal qual ele se mostra. Para isso, Merleau-Ponty (1990a, 1990b) ajuda nessa compreensão do que é o “ser criança” em sua totalidade, tanto nos aspectos corporais quanto culturais, bem como em sua relação com o mundo que a cerca, ou seja, compreender a infância a partir do ponto de vista da criança e não do adulto. Desse modo, a escolha do autor se justifica pela riqueza de sua obra e adequação de sua proposta aos interesses dessa pesquisa.

Para o filósofo, o acesso à infância deve acontecer pelo encontro com a fala da criança, uma fala originária, ou “fala falante”, “[...] em que a intenção significativa se encontra em estado nascente” (MERLEAU- PONTY, 2006, p. 266). Isso implica voltar à infância mesma, ou seja, realizar a posição reduzida, de “retorno às coisas mesmas” (zudensachenselbst) para compreendê-la. É importante nesse processo de conhecer melhor a infância, ouvir e respeitar as crianças em seus pontos de vista, acolhê-las em seu “saber efetivo” como mencionou nosso autor em

seus Cursos na Sorbonne. Com esse acolhimento, é possível compreender melhor a criança e conhecê-la em sua manifestação própria; decidir-se a aceitar o convite à reflexão a respeito da experiência do ser criança sem conceitos, ideias ou comportamentos pré-estabelecidos. Há muitas críticas do filósofo francês com respeito às teorias do desenvolvimento humano e às formas engessadas de educar a criança. Segundo o autor, esse engessamento provoca o afastamento do adulto da experiência de conhecer a criança mesma em suas expressões singulares.

Portanto, ao buscar a compreensão de como é a constituição do ser criança, segundo Merleau-Ponty (1990a, 1990b), precisamos considerá-la em suas relações com o outro, com a linguisticidade, com a corporeidade, com a temporalidade, com a espacialidade e com a mundaneidade. Utilizando esses conceitos, Machado (2010) exemplifica essa relação com o outro como uma “flor da vida”, composta por cinco pétalas que representam a parte existencial da vida da criança. A primeira pétala, refere-se à outricidade ou à relação da criança com o Outro. A segunda, é a da corporeidade (embora a autora faça uso da expressão corporalidade) que foca a relação da criança com o corpo. A terceira, é relação da criança com a língua ou linguisticidade em que se comunica com o mundo. A quarta pétala, é a da temporalidade ou sobre a relação da criança com o tempo; e, por fim, a quinta pétala é da espacialidade que considera a relação da criança com o espaço. O cabo dessa flor que se enraíza no solo representa a relação da criança com o mundo, ou, mundaneidade. O adulto é considerado nessa relação, a mão que rega a “flor da vida” e que em um gesto de cuidado e responsividade contribui para a inserção da criança no meio social e cultural.

Considerando tal descrição de Machado e voltando-nos para a questão do modo de interpretação das crianças dessas relações do eu com o outro, podemos dizer que a experiência de cada criança é única, por isso é mais razoável se falar em infância como pluralidade. Razão

que nos leva a não esperar que as crianças se comportem do mesmo jeito, desenvolvam a fala na mesma idade, aprendam a andar no mesmo tempo; enfim, o respeito dessas e outras características próprias da constituição das crianças como ser no mundo.

Nessa vertente discutida é que acessamos o conceito de “polimorfismo”, afastando de vez as possíveis generalizações acerca da infância. Considerar a criança como um ser polimorfo é pensá-la em suas múltiplas possibilidades e potencialidades de constituição e de vivências. Para tanto, é preciso concebê-la “[...] não como um ‘outro’ absoluto nem como ‘o mesmo’ que nós, mas como polimorfa [...]” (MERLEAU- PONTY, 1990b, p. 220), sujeita a variar de formas ao longo de sua vida. Para nosso autor essa característica de “polimorfismo” está acompanhada de uma prematuração, pois:

[...] a criança leva, já de início, uma vida cultural; ela entra muito cedo em relação com seus semelhantes. Ela manifesta interesse pelos fenômenos mais complexos que a envolvem; por exemplo, pelos rostos para os quais ela adquire uma verdadeira ciência de decifração, numa época em que se poderia pensar que ela só tem uma vida sensorial (MERLEAU-PONTY, 1990b, p. 221).

As crianças, com essa possibilidade de experimentar as vivências culturais expressas pelos adultos que as rodeiam e as suas próprias, expressam de maneira polimorfa suas aprendizagens. Os adultos, por sua vez, nem sempre estão preparados para essa vivência, pois explicam essas mudanças contínuas como bagunça, distração, dispersão ou, até mesmo, como perda de tempo. Para alguns adultos não é fácil lidar com essas dimensões ou alterações. Todavia, se faz necessário um tal aprendizado por parte de educadores, pais e demais responsáveis pela educação na infância, pois que se abrem outras possibilidades para uma recíproca aprendizagem e, especialmente, oferecer condições efetivas para um aprendizado mais significativo para a criança como ser no mundo e para o mundo.

Outra característica importante para se observar nas manifestações do ser das crianças é a sua capacidade de imitação (mimesis). É por meio dela que a criança interpreta o mundo à sua volta. Para exemplificar essa condição Merleau-Ponty (1990b) utiliza o simples ato de sorrir como uma maneira de imitação e de apreensão do mundo e do outro, pois

A criança executa um gesto à imagem do que vê ser feito por outro: sorri porque se sorri para ela. É preciso que traduza a imagem percebida em linguagem motora; ora, ela não tem uma imagem de si mesma sorrindo nem o sentimento motor do outro. A transferência do outro para ela não é possível por analogia (MERLEAU-PONTY, 1990b, p. 70).

Imitar é um ato de aprendizagem que requer da criança um esforço corporal, motor, que ajude-a na tradução ou interpretação daquilo que vê ou vivencia. Nesse viés, é preciso estar sempre com o olhar atento e voltado para as crianças para perceber em suas ações, como elas estão interpretando e incorporando a realidade vivida.

Dadas estas pistas a respeito de como Merleau-Ponty percebe a infância em suas características singulares, permitindo às crianças serem o que elas são, ou, se apresentarem do seu modo, em suas manifestações polimorfas de outridade, corporalidade, linguisticidade, temporalidade e espacialidade, pode-se considerar que pesquisar a infância – em uma perspectiva merleau-pontiana – é ir ao encontro das diversas manifestações de como é ser criança aqui e agora, sem querer encontrar um único modelo para ela. É dando voz às crianças que se pode conhecê-las em suas vivências.

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 108-111)