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Florinda Martins Introdução

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 62-67)

Neste texto mostro como é que a fenomenalidade da voz e do som é paradigma da fenomenalidade de nosso corpo, tomada no âmbito de fenomenalidade de nosso viver que, em linguagem de Descartes, se anunciaria como viver em um corpo dotado de sentidos. E como para Michel Henry esse corpo dotado de sentidos apela à fenomenalidade daquilo que ele denomina de corporeidade originária. Mostrarei pela fenomenalidade da recepção do som e pelo ato de fonação como é que a ela acedemos. Veremos que, sendo embora do âmbito de uma fenomenalidade não intencional, o ato de fonação é vivenciado como um ato de repetição e reforço do som recebido, reenviando assim um e outro a esse fundo comum que é a corporeidade originária em seu devir afetivo. É nesse movimento impressivo da vida que compreenderemos a fenomenalidade da dança. Será nesse âmbito de fenomenalidade que, em Michel Henry, a recepção e a renovação da tradição, nas várias vertentes da cultura – filosófica, religiosa, educacional – se podem compreender. Concluo mostrando como é também esse âmbito de fenomenalidade que opera no processo educativo; processo cujas linhas orientadoras esbocei com Michel Henry, em 1997.

A questão

Quando comecei a esboçar este capítulo deparei-me com uma primeira dificuldade: como falar da fenomenalidade de um ver que se diz ver o invisível?

Esta questão é incontornável na obra de Michel Henry: “ver o invisível” é um de entre os muitos oxímoros estruturantes da obra do fenomenólogo da vida. E ainda que me tivesse sentido positivamente desafiada a tratar na pintura a fenomenalidade desse paradoxo –ver o invisível numa arte que apela sobretudo à visão. Vi-me também desafiada no processo educativo a abordar alguns aspectos, a saber: 1-) a possibilidade de falar de um projeto educativo ao qual, com Michel Henry em 1997, dei início, mas não continuidade, denominado Afetividade e Afirmação; 2-) apresentá-lo em articulação com a obra Ver o invisível: sobre Kandinsky e com os campos de pesquisa rasgados pela fenomenologia da vida, no tocante à educação e à cultura. Ora, articular o projeto educativo Afetividade e Afirmação com a citada obra de Michel Henry sobre a pintura de Kandinsky implica atender primeiro à fenomenalidade da articulação entre fenomenologia e estética. A pergunta seria então: em Michel Henry como se processa a relação entre fenomenologia e estética, ou mais especificamente, com a pintura de Kandinsky?

A resposta, colhemo-la de Michel Henry e este colhe-a na própria obra teórica de Kandinsky e que passo a resumir: 1-)a afinidade entre as cores entre si ou entre as cores e o grafismo produz-se necessariamente fora da espacialidade, fora da exterioridade; ela produz-se no âmbito da vida invisível; 2-) é para esse invisível que a pintura, a pintura abstrata de Kandinsky reenvia; 3-)mas esse campo de fenomenalidade invisível nada tem de negativo porquanto manifesta positivamente as ressonâncias interiores da vida que as cores e formas operam no artista; 4-)e a pintura é a expressão pictórica dessa ressonância (HENRY, 1988, p.122 e 228).

Ora, é pela fenomenalidade da ressonância da vida que Henry (2004) faz a passagem da afinidade entre cores para a afinidade entre pintura e música. E por isso nos adverte para o fundo comum no qual a afinidade se faz corpo: “a música, como a pintura, é a reprodução de uma

realidade anterior que constitui o fundo do ser e de todas as coisas e que se chama Vontade” (p. 244), diz o fenomenólogo em seu artigo Desenhar a música: teoria da arte de Briesen12.

Desse modo, o que, em Ver o invisível, torna possível uma arte como a ópera, a arte monumental, o que torna possível a unidade da música, canto, dança, é esse fundo comum do qual emergem vários registros da sensibilidade. E assim também, se a pintura se reporta à música, pintura e música reportam-se ao cosmo que conhecemos a partir da escuta de suas ressonâncias em nossa corporalidade originária. Qualquer que seja o elemento do cosmo – estrelas, lua, floresta, flores, bituca abandonada no cinzeiro a até mesmo toda a coisa “morta” freme, mostra nessa ressonância seu rosto, seu interior, seu ser, sua vida. (HENRY, 1988, p. 228-229).

As palavras da obra teórica de Kandinsky cruzam-se de tal forma com as de Michel Henry que, em algumas passagens do romance O Filho do Rei13 – romance no qual o corpo vivo é a autêntica obra de arte –não teríamos como distingui-los. Todavia, a advertência de Michel Henry (1981) para a fenomenalidade da ressonância da vida, enquanto ressonância vivida em um corpo dotado de sentidos, tomamo-la, para já, do romance. Nele, a ressonância processa-se na total ausência de intencionalidade porquanto não temos como visar aquilo que – frémito de vida –advém em nosso viver sem que a ele nos possamos antecipar, mas que, todavia, nos pertence como modalidade primeira de nosso viver: viver em um corpo dotado de sentidos que testemunhamos em nossa corporalidade originária.

E, por isso, o corpo é lugar/topos de toda e qualquer obra de arte. Daí que possamos ler no romance O Filho do Rei, acerca do seu personagem principal, José, o seguinte: “na inteireza de teu ser – na inteireza de um ser que vive em um corpo dotado de sentidos – tu eras

12HENRY, M. Dessiner la musique: pour l’art de Briesen. In Phénoménologie de la vie, 2004, p. 244. 13A título de exemplo permito-me remeter o leitor para Henry, M. Le fils du roi, Gallimard: 1981, p. 14.

como uma obra de arte” (HENRY, 1981, p. 205). Porém José é uma obra de arte, não apenas por ser corpo sensível a tudo o que o circunda, corpo sensível à loucura dos pacientes e à ignorância da vida de médicos e terapeutas, mas por tomar a seu cargo essas enfermidades e por ajudar, por seu turno, cada um dos seus companheiros de asilo a tomar a cargo a própria enfermidade para a viverem como uma festa: a festa dos loucos. E essa é a diferença entre Marietta/Lucile – irmã de José que quer com ele casar14 – e o próprio José. Marietta/Lucile incapaz de tomar a cargo o frémito da vida em suas ressonâncias interiores sucumbe aos poderes da vida: à sensibilidade. José afirma a sua singularidade na afetividade ou nas ressonâncias da vida em seu corpo vivo.

Foi nessa relação entre sentir as ressonâncias da vida e tomá- las a seu cargo que situamos, Michel Henry e eu, a fenomenalidade da relação entre Afetividade e afirmação como paradigma do projeto educativo atrás mencionado. E quando digo projeto educativo, integro nele processos de reeducação. Desse modo, tomamos da fenomenologia da vida, quer a sua edificação, quer a sua ruína. E isso, tanto em termos individuais, quanto em termos comunitários ou civilizacionais. O âmbito de fenomenalidade da ruína da vida dos pacientes do romance O Filho do Rei é comparável ao da ruína de uma comunidade política como é o caso do ensaio Du communisme au capitalism; théorie d’une catástrofe (1990) A narrativa dessa fenomenalidade é narrativa da vida afetiva – pathos.

E em termos educativos, narrar o pathos é narrar tanto a instalação como a destruição da vida em nós, com a certeza de que tanto a instalação da vida quanto a sua destruição se processam em comunidade. Comunidade cujo corpo – o meu corpo – vive as ressonâncias do teu corpo, assim como o teu corpo vive as ressonâncias do meu, e ainda um e

14Ainda que não tenha tempo para relacionar esta afirmação de Michel Henry com a fenomenalidade de Sartre e de Merleau-Ponty, permito-me remeter o leitor para a minha obra Estátuas de Anjos (2017, pp. 110-111).

outro vivendo as ressonâncias daquilo que nos rodeia. Por isso, o corpo é o manual de arquitetura, pintura, música, dança, técnica e ciência. E é por isso que ciência e barbárie, filosofia e tradição serão, na fenomenologia da vida, julgadas pelo critério da arte.

O corpo como aquilo em que vivemos é, ao mesmo tempo que o lugar da estética, o lugar da ética. E nesse lugar só o amor supera a morte – lemos na terceira parte da obra de Michel Henry, Encarnação (2000).

Mas a falta de amor pode conduzir à ruína individual, comunitária e civilizacional. “Ele morreu porque respirar o aborrecia”, repete Michel Henry em nota de rodapé na obra Encarnação (HENRY, 2000, p. 280). Essa expressão de Giradoux instiga-nos a avançar nos domínios abertos pela fenomenalidade não intencional – a fenomenalidade da vida do corpo. Em Eutanásia: fenomenalidade de o amor de si na relação com argumentos médicos e teológicos15,

mostrei quão falaciosos podem ser alguns dos argumentos em favor, tanto da despenalização, como da penalização daquilo que está em julgamento na palavra eutanásia. E, assim, a expressão de Giradoux está longe de se poder esgotar na síndrome da maldição de Ondina. O longo e complexo historial do herói de Giradoux está presente nas múltiplas abordagens que o AMOR toma na literatura e na filosofia. E essa referência, ainda que em nota de rodapé, na obra Encarnação de Michel Henry, merece outras abordagens. Dentre elas sublinho, aqui, a sua importância na educação.

Para o desenvolvimento da questão que acabamos de delinear e que vai da definição da arte à fenomenalidade do corpo e da fenomenalidade do corpo à educação, começo por mostrar como é que, em Michel Henry, a fenomenalidade do corpo permite a renovação da tradição, no ato mesmo da sua recepção, e, com isso, se abre um promissor caminho à fenomenalidade da educação.

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 62-67)