• Nenhum resultado encontrado

A fenomenologia como referencial: um modo próprio de compreender a cultura e a formação da pessoa

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 176-179)

Para adentrar a articulação entre cultura e formação da pessoa em sua complexidade, adotamos a Fenomenologia Clássica de Husserl (2006, 2008) e Stein (2003a, 2005) como base teórico-metodológica. Husserl (2008) formulou a noção de mundo-da-vida ao buscar um novo ponto de partida para a tematização do mundo. Com essa formulação, propõe descrever o mundo histórico-cultural concreto, fundamentado intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores. Tanto nossa vida cotidiana quanto as diversas culturas se sedimentam nesse solo comum, que é sempre ligado a coletividades particulares, com suas tradições próprias (ALES BELLO, 1998).

Todo ser ou agrupamento humano nasce e se desenvolve dentro de determinado horizonte material, simbólico e histórico, que lhe abre certas perspectivas, lhe coloca certos problemas a enfrentar, lhe propõe certos costumes e valores, enfim, lhe oferece determinadas possibilidades e limites que estruturam seu desenvolvimento e sua potencial transformação (SANCHIS, 2008). A cultura é entendida como essa “maneira particular” de “ser gente” (SANCHIS, 2008, p. 72) constituída “pela mentalidade, pela forma de orientação, pelas expressões e pelos produtos próprios de um grupo humano” (ALES BELLO, 1998, p. 42).

Nesse sentido, embora não haja homem sem cultura, há uma multiplicidade de configurações culturais que tanto podem favorecer realização pessoal, inserção social, constituição de vínculos comunitários, quanto podem violentar, alienar, reduzir o horizonte amplo da experiência

humana. Daí a importância de recuperar a noção de cultura em seu sentido constitutivo para que sejamos críticos aos diferentes modos com os quais ela é proposta e vivenciada pelos sujeitos, especialmente na realidade brasileira, marcada pela desigualdade em diferentes níveis.

Com o aporte da Fenomenologia, atestamos que sempre permanece aberta a possibilidade de reconhecer e tomar a cultura de modo articulado com o mundo-da-vida, desde que se preserve a centralidade da pessoa e a promoção de espaços para a elaboração das vivências de modo integrado.

Também Grygiel (2002) afirma que não é qualquer posicionamento que constitui cultura. O filósofo distingue os processos civilizatórios – que priorizam a técnica e a eficiência –dos processos culturais que pressupõem a abertura da pessoa ao mundo numa atitude de pergunta pelo significado do que encontra e de espera pela realização do ser de cada coisa. Com este aporte, fortalecemos a compreensão de que a cultura liga-se intimamente ao processo de constituição da pessoa.

Portanto, não é possível compreender a cultura em seu sentido próprio se não nos debruçarmos sobre a noção de pessoa. Discípula de Husserl, Stein (2005) descreve de modo particularmente interessante a constituição da pessoa ao tematizar sua potência estrutural para se posicionar livremente, atualizar e desenvolver suas vivências de modo singular e correspondente ao núcleo formativo de si mesmo. Potência que pode não se atualizar na experiência, mas que permanece como própria da pessoa em quaisquer contextos. Em síntese, pessoa aqui é entendida como ser de relações, de abertura para “dentro” (percepção de si) e para “fora” (mundo circundante).

Ainda em Stein (2003a, 2003b) encontramos a caracterização do processo de formação da pessoa como contínua interação entre interior e exterior. O ambiente humano oferece à pessoa materiais e caminhos possíveis para seu desenvolvimento. Cabe a ela tomar posição diante do que recebe (MAHFOUD, 2012; STEIN, 2003b). Tal posicionamento

também pode incidir no exterior, quando a pessoa configura o mundo de modo torná-lo mais propício para a formação humana por meio da criação coletiva de objetos de valor (bens culturais). Os bens culturais, por sua vez, ao se constituírem coletivamente, passam a configurar o mundo que forma as pessoas.

Quando a alma recebeu em si uma grande quantidade de material espiritual e o elaborou racionalmente, então está preparada para atuar e mover-se. Junto com o alimento espiritual, recebe o estímulo para criar e formar em si mesmo; se sente provocada a fazer que sua própria essência, que interiormente lhe plasma a forma, demonstre sua eficácia no exterior, em fatos e obras que dêem testemunho dele. Essa atividade desde fora, o expressar-se, o criar e o configurar, é uma parte essencial da personalidade, pelo que o exercício das correspondentes capacidades práticas e criativas, como habilidades dispostas à ação, é uma parte essencial do processo formativo. Nisto consiste certamente o sentido mais profundo do trabalho educativo. (STEIN, 2003b, p. 187)

Giussani (2004)81 descreve de que modo pode se concretizar, no sentido educativo, a formação integral da pessoa em sua relação com a cultura. Ele define educação como INTRODUÇÃO à realidade total, experiência de um relacionamento presente em que alguém propõe algo à espera de uma resposta pessoal. Tal proposta é vitalizada quando o educador, ancorando-se num horizonte cultural amplo, mostra ao educando a razoabilidade do que está sendo proposto e o solicita a verificar a proposta a partir de critério pessoal. É por meio dessa dinâmica que o educador pode se tornar companhia para o educando adentrar o mundo em sua complexidade e se formar enquanto pessoa.

Apropriando-se da proposta giussaniana, Santos (2009, 2014) evidencia como o processo educativo pode permitir que pessoas em situação de vulnerabilidade social vivam experiência de pertença e formação pessoal por meio da inserção cultural. Ao criar um acervo num

81Luigi Giussani é educador, filósofo e teólogo italiano. Mahfoud (2012) e Di Martino (2010) explicitam como as elaborações giussanianas se aproximam da corrente fenomenológica, sobretudo pelo reconhecimento da experiência como fonte originária do saber e pela descrição do dinamismo mais propriamente humano.

bairro de periferia composto por obras do próprio local, Santos (2014) tem mostrado como o encontro com uma produção cultural pode solicitar a pessoa a ampliar o próprio horizonte de elaboração e a se reconhecer enquanto humano nesse processo. É por meio dessa experiência que a pessoa pode reconhecer um caminho para si que a re-conecte com a potencialidade humana, sendo critério que lhe permite ir além das limitações e riscos do contexto de vulnerabilidade e violência que ela pode estar inserida.

O referencial em ação: formação dos discentes para

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 176-179)