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Sobre a fenomenalidade do sofrimento

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 195-199)

Michel Henry na Essência da Manifestação diz que “mais originária do que a verdade do ser é a verdade do humano” (HENRY 1963, p. 53). E, pelo que acabamos de expor, diríamos que a verdade do humano não é apenas mais originária do que a verdade do ser, mas é ainda bem mais complexa. Para essa complexidade, nos chama a atenção Martins (2002) em Recuperar o humanismo: Para uma fenomenologia da alteridade. Para ela, a complexidade do humano reporta-se ao modo de ser do seu próprio ser, porquanto é a sua humanidade ou desumanidade que, em seu viver, se expõe. Exposição que, nos dizeres de Florinda Martins, nos remete para “a fenomenalidade da ipseidade no apelo de si da vida afetiva” (MARTINS, 2002, p.139).

Parte desta tese pode ser colhida no texto de Henry, Desenhar a música: teoria para a arte de Briesen. Para ele, enquanto o ser em seu advir apenas parece anunciar-se, o ser humano expõe-se através do desenho para apaziguar seu sofrimento. O desenho expõe, então, nossa desumanidade em apelo de humanização. E se – como apresentamos na primeira parte deste texto – Henry, em Desenhar a Música, mostra como é que a fenomenalidade do humano torna possível, pelo desenho, a exposição do sofrimento como impressão de nossa desumanidade, agora queremos atender à fenomenalidade desse apelo de si da vida afetiva à sua modalização em humanidade.

Agora, a nossa questão, enquanto grupo de pesquisa, é: como é que a exposição do sofrimento através do desenho apazigua o sofrimento? E iremos tratá-la no sentido de deixar algumas orientações para uma fenomenologia da comunicação, nomeadamente, da comunicação entre paciente e terapeuta.

Florinda Martins, em sua mais recente obra Estátuas de Anjos: para uma fenomenologia da vida e da clínica (2017), enuncia um princípio fenomenológico que se apresenta como orientador das questões das

pesquisas, deixadas em aberto por projetos anteriores de investigação, cientificamente coordenados por ela. Ela enuncia assim esse princípio: “a vida em que vivemos é tanto mais nossa quanto mais em nosso agir ela nos supera e nos transcende” (MARTINS, 2017, p. 9).

A possibilidade da exposição do nosso sofrimento, a possibilidade de o desenharmos mostra uma das dimensões dessa verdade do humano, mais originária do que a verdade do ser, atrás afirmada, e introduz-nos à fenomenalidade do princípio fenomenológico segundo o qual a vida em que vivemos é tanto mais nossa quanto mais em nosso agir ela nos supera e nos transcende.

A verdade de nós mesmos é mais originária do que a verdade do ser, porquanto o nosso viver é, ele mesmo, verdade de si. E a verdade do ser passa, irrecusavelmente, por esta verdade de nós mesmos.

O nosso sofrimento é a verdade de nós mesmos e por ele passa a verdade da nossa relação com os outros e com tudo o que nos circunda. Todavia, a passagem por nós, da verdade dessa relação com os outros e com o que nos circunda, é uma passagem que vivemos como afeto, como pathos, como força, como impressão de vida, como impulso que se quer viver ao retomá-lo no curso mesmo de seu aparecer. E retomá-lo é entrar no curso da vida para em enredo com ela a modalizarmos. É isso que fazemos pelo desenho, o desenho do sofrimento: o desenho da tristeza que tenho no peito. E desenho-o para o expor: expor perante a mim mesmo, mas também perante àquele ou àquela que, nesse sofrimento e nessa tristeza, me acompanha, agora com uma disposição bem mais esperançosa do que a daquele ou daquela que ainda estão presentes nesse mesmo sofrimento ou tristeza.

O terapeuta não experiência a tristeza do paciente, mas experiência o paciente experienciando tristeza, e experiencia-o na esperança de que ele saia desse abismo. Essa tessitura de afetos nos instiga a revisitar a fenomenalidade da emoção, da comoção, da simpatia e da intropatia.

“Não se vive a tristeza do outro, mas vivencia-se o outro em sua tristeza. Em abraço de vida na vida ou” como escreve (MARTINS, 2002, p. 52 e 53), o outro é vivenciado como afeto. O afeto é aquilo que, em nosso viver, nos supera e nos transcende; afeto é o que se gera entre nós dois – terapeuta e paciente – transcendendo-nos e nessa transcendência nos supera, supera modalizando o sofrimento e a tristeza.

Considerações finais

O que está aqui, em causa, é a teoria da comunicação em Michel Henry. Uma teoria que passa pela revisitação da fenomenalidade da vivência do pathos, do ser-com e, por conseguinte, da intropatia, da empatia e da simpatia. E revisitar, retomando o texto Afetividade e Revelação: Michel Henry, leitor de Max Scheler, de Talon-Hugon (2014), juntamente com o § 64 da obra de Michel Henry A Essência da Manifestação Henry (1963, p. 715), podemos ver que novos caminhos se abrem com Michel Henry, na fenomenologia tradicional, para uma terapia que incide nos processos de modalização dos afetos, porquanto apenas nessa modalização acontece a terapia.

Desenhar a música para apaziguar um sofrimento implica então, para além de mostrar a possibilidade fenomenológica da exposição de uma tristeza, a fenomenalidade da relação que, sem deixar de parte a expressão verbal dos sentimentos, nem a toma como possibilidade única de exposição do sentir, nem a toma no sentido habitual de exposição e comunicação dos sentimentos. A palavra, assim como o desenho, para alcançarem o processo terapêutico, terão que respeitar o princípio fenomenológico pelo qual a vida em nosso viver é tanto mais nossa quanto mais em nosso agir ela nos supera e transcende.

Assim, o encontro da fenomenologia da vida com a clínica, através do trabalho interpessoal no Ateliê de Desenho de Livre-Expressão, atende

a essa fenomenalidade do sofrimento.Isso, através de um espaço no qual se pode acolher e cuidardo outro, com interesse e respeito às várias possibilidades da modalização do sofrimento em fruição, quer através ação no desenho, quer pela ação verbal – duas formas privilegiadas de comunicação da vida que o desenho e o verbo expressam.

Referências

HENRY, M. L’ essence de lamanifestation. Paris: PUF, 1963. 928p. MARTINS, F. Estátuas de Anjos: Para uma fenomenologia da vida e da clínica. Lisboa: Edições Colibri, 2017. 138p.

MARTINS, F. Recuperar o humanismo: Para uma fenomenologia da alteridade em Michel Henry. Cascais: Princípia, 2002. 173p.

TALON-HUGON, C. Afetividade e Revelação: Michel Henry, leitor de Max Scheler. In: ANTÚNEZ, A. E. A.; MARTINS, F.; FERREIRA, M. V. (Orgs.). Fenomenologia da vida de Michel Henry: interlocuções entre filosofia e psicologia.São Paulo: Editora Escuta, p.157-171, 2014. TERNOY, M. Rorschach, rêveéveillé et expressiongrapho-

picturaledansl‟étudephénoméno-structuraledeshallucinations.

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 195-199)