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O nascimento do teatro pergunta

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 123-128)

Augusto Boal teceu sua obra sem jamais desconsiderar essas mesmas relações de afeto. Tanto que em 1973, quando Boal participava da Campanha de Alfabetização Integral43, no Peru, nasceu a técnica

do Teatro-fórum. Boal já fazia uso da dramaturgia simultânea, na qual os artistas em cena traduziam na poética teatral as questões do cotidiano do povo, escrevendo junto com o público a solução para os problemas vividos pela (o) protagonista. Na dramaturgia simultânea, a companhia de teatro apresentava uma peça contendo um problema ao qual se queria encontrar uma solução. O espetáculo se desenvolvia até o ponto da crise, até o momento em que o protagonista devia tomar uma importante decisão. Nesse ponto, a peça parava e perguntava-se aos espectadores o que o protagonista deveria fazer. Cada um dava a sua sugestão e os atores, no palco, improvisavam uma por uma, até que todas as sugestões se esgotassem.44 Como Boal mesmo define, nessa

técnica “os espectadores ‘escrevem’, simultaneamente com os atores que representam”.45

43Em 1973, estimava-se que o Peru contava com aproximadamente 4 milhões de analfabetos ou semi-analfabetos

entre os falantes dos 41 dialetos das duas principais línguas indígenas, o quechua e o aymará. Nesse contexto, a Campanha de Alfabetização Integral, denominada de Projeto ALFIN, tinha o ambicioso objetivo de erradicar o analfabetismo no Peru por meio da unificação do país em torno do bilinguismo, de forma que os educandos adquirissem fluência em sua língua materna e no castelhano. O objetivo inicial consistia em demonstrar aos educandos “que todos os idiomas são linguagem, mas nem todas as linguagens são idiomáticas” (BOAL, A. Stop: c’est magique! Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 137). Foi assim que a linguagem artística foi incluída como instrumento de libertação e comunicação, tornando o Peru um solo ideal para experimentações que levassem o teatro ao povo enquanto linguagem, de forma que pudesse ser utilizada por qualquer pessoa, independente de qualquer talento para o palco. Tanto os domínios da linguagem artística quanto do bilinguismo serviam ao povo como uma nova forma de conhecimento da realidade, numa soma de linguagens que conduz ao empoderamento, ao pensar por si mesmo em detrimento da submissão de qualquer doutrinamento.

44BOAL, A. O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 19. 45BOAL, A. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980b. p. 144.

Nesse período, o teatro boalino já se deparava com a necessidade de quebrar o domínio do palco por parte dos atores e fazer nascer outra forma de relação da plateia com o palco. Tanto que um fato emblemático marcou a ruptura que deu origem ao Teatro-fórum. Uma mulher enganada por seu companheiro decidiu buscar ajuda no teatro proposto por Boal. Até então, o Teatro do Oprimido trabalhava apenas com problemas de cunho social ou econômico junto à plateia. Boal aceitou o novo desafio e dirigiu os atores para que interpretassem a narrativa da mulher e, no ponto crítico vivido pela protagonista, interpelou a plateia na busca de uma solução. Após a interpretação das muitas opções advindas dos espectadores, uma mulher definida por Boal como “corpulenta” deu a sua opinião: “ela tem de deixar ele entrar, tem que ter uma conversa séria com ele e depois ela pode perdoar”.46 Os atores interpretaram a sua versão, mas a mulher manifestava corporalmente uma imensa inconformação com essa atuação que, segundo ela, não representava sua ideia. Diante dos olhares fulminantes da mulher, Boal questionou-a, disse que os atores tinham interpretado exatamente o que ela havia proposto. Discordando do diretor, a mulher retrucou: “Não foi isso que eu disse. Eu disse que ela devia ter uma explicação clara, muito clara, e só depois, de...po...is..., só depois ela devia perdoar”. Sem saber o que fazer, Boal propôs que ela subisse ao palco e encenasse a solução que achava melhor. Ela aceitou a sugestão e assim o diretor narrou o resultado dessa experiência:

Iluminada, transfigurada, a senhora gorda estufou o peito, inflou-se toda e, com os olhos fulgurantes, perguntou: “Posso?” — “Pode!” Subiu no palco, agarrou o pobre ator-marido indefeso, que era apenas um verdadeiro ator e não um verdadeiro marido e, além disso, magro e fraco, agarrou um cabo de vassoura e começou a bater-lhe com toda força enquanto lhe dizia tudo o que pensava das relações entre marido e mulher. Tentamos socorrer o companheiro em perigo, mas a senhora gorda era mais forte do que nós. Finalmente, deu-se por satisfeita, colocou sua vítima sentada

à mesa e disse: “Agora que nós tivemos esta conversa muito clara, muito sincera, agora você vai lá na cozinha e pega a minha sopa!”47

Tal experiência demonstrou para Boal que “quando é o próprio espectador que entra em cena e realiza a ação que imagina, ele o fará de uma maneira pessoal, única e intransferível, como só ele poderá fazê-lo e nenhum artista em seu lugar. Em cena, o ator é um intérprete que, traduzindo, trai. Impossível não fazê-lo”.48 A partir dessa experiência, o Teatro do Oprimido, que até então representava a ação por meio de atores profissionais, passou a ser, também, teatro-fórum, onde o espectador converte-se em ator. Assim, o teatro boalino passou a incluir em sua pedagogia, de forma mais intensa, a transitividade, a democracia e o diálogo, interrogando o espectador e esperando dele uma resposta, o que gerou um “espaço no qual se possa criar, aprender, ensinar, enfim, transformar”.49

Sendo um teatro-experiência, no Teatro-fórum o processo de criação acaba por ganhar mais importância que o resultado cênico, pois “o fórum é o espetáculo, o encontro entre os espectadores, que defendem suas ideias, e os atores, que contrapõem as suas”.50 Enquanto se constrói

a cena, os envolvidos na atuação, atores e espectadores, conseguem tomar consciência da mecanização do comportamento e por meio de exercícios teatrais e da própria encenação comunitária, na qual os atores não possuem controle, que sentimentos e sensações represados podem encontrar espaço de fruição.

Para melhor entendermos essa técnica, vejamos como se estrutura uma seção de Teatro-fórum. Na primeira metade da seção, os atores apresentam por meio da encenação um problema social que Boal denomina como anti-modelo, por consistir num modelo de vida

47BOAL, O. arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 22. 48Ibidem.

49BOAL, O. Stop: c’est magique. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. 1980b, p. 34.

não desejado, criado a partir da ótica do opressor. O texto do anti-

modelo possui um tema único, a opressão, variando consoante as muitas

manifestações dessa mesma opressão.

Nessa atuação, o oprimido é impedido de realizar um desejo pautado numa necessidade real, de cunho pessoal ou social. Tanto o desejo quanto as circunstâncias que impedem a sua realização devem ficar claras para todos os envolvidos. O protagonista buscará, sem sucesso, a superação dessa dificuldade, deixando claro os diferentes quereres e os choques existentes no conflito dramático. Ao término da apresentação do anti-modelo o conflito não se resolve, antes se acirra ao ponto que a peça termina sem conclusão e o espect-ator51 é convidado

pelo curinga52 a resolver o conflito. Enquanto os demais atores ficam congelados, alguém da plateia assume um dos personagens e intervém na ação, buscando a superação da situação de opressão.

Apesar de o conflito ser o motor da cena, a finalidade do Teatro- fórum não é a resolução do conflito, mas o debate estético e ético. De nada adianta uma intervenção autoritária por parte do espect-ator, destruindo o

anti-modelo e resolvendo a questão. O sucesso dessa experiência teatral

está no levantamento de múltiplas soluções para o problema, envolvendo efetivamente os atuantes, com pensamento, emoções, corpo e ação, de modo a promover o desvelamento dos mecanismos de poder por meio da problematização da relação opressor e oprimido. É dessa forma que o teatro passa a ser um ensaio para vida concreta, fazendo uso de todas as ferramentas estéticas de que dispõe.

Acerca do anti-modelo, ou melhor, da palavra usada para definir a técnica, Boal recebeu muitas críticas, nomeadamente entre os defensores

51No Teatro-fórum, o termo espectador é substituído pelo termo espect-ator. O primeiro termo sugere a existência de um ser ativo e outro passivo, enquanto o segundo denota que a mesma pessoa pode assistir ou interferir na ação cênica. Boal não desconsidera a importância da profissão do ator, mas entende que “o teatro é uma atividade vocacional de todos os seres humanos” (BOAL, 2002, p. 28).

do psicodrama53, como é o caso de Ângela Leite Lopes e Fátima Saadi,

que tecem duras críticas ao caráter autoritário da expressão anti-modelo, entendida por elas como uma forma de direcionar a intervenção do grupo.54

Essa, certamente, não é uma crítica a ser desconsiderada, principalmente em se tratando de um teatro que se propõe ser democrático. Em Stop

c’est magique!, Boal busca oferecer respostas à crítica que se fazia ao

uso da palavra modelo.

Outra palavra que pode induzir o espectador, e, portanto, manipulá-lo (quando o que se deseja é exatamente o contrário), é erro. Se informamos ao espectador que o protagonista do nosso anti-modelo cometeu um erro, isso significa que já predeterminamos que sua ação é equivocada. E quem deverá dizê-lo (se for o caso) é o próprio espectador, e não nós. Portanto, para usar as palavras corretamente, devemos dizer que, no anti-modelo, nós temos dúvidas sobre o comportamento do protagonista oprimido.55

Sendo um teatro participativo, composto por atores profissionais e não profissionais, numa conjuntura com alto grau de improvisação cênica, é necessário fazer a pergunta pela qualidade estética da encenação. Seria esse um ato cênico desprovido de beleza? Haveria espaço, nesse teatro, para recursos como sonoplastia, adereço, cenário e construção elaborada dos personagens?

Para Boal, a qualidade cênica da ação não apenas é necessária, mas é, inclusive, uma atitude política. Para ele, “o perigo de uma encenação pobre é induzir os espect-atores participantes a apenas falar, discutir

53O médico romeno Jacob Levy Moreno desenvolveu uma técnica denominada Socionomia, que promove a “intersecção do mundo subjetivo, psicológico e do mundo objetivo, social, contextualizando o indivíduo em relação às suas circunstâncias. Divide-se em três ramos: a Sociometria, a Sociodinâmica e a Sociatria, que guardam em comum a ação dramática como recurso para facilitar a expressão da realidade implícita nas relações interpessoais ou para a investigação e reflexão sobre determinado tema” (SILVA, C. V. Curinga, uma carta fora do baralho: a relação diretor/expectador nos processos e produtos do espetáculo fórum. Salvador: Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro, 2009. p. 121). O Psicodrama é, pois, um dos elementos que compõem a Socionomia, que usa o teatro para discutir problemas de ordem terapêutica, contudo não tem seu fundamento como um teatro, mas como terapia que usa recursos teatrais.

54LOPES, A. L.; SAADI, F. «Boal: arte útil ou psicoterapia perigosa?». In: MICHALSKI, J. Revista Ensaio/ teatro, nº 4. Rio de Janeiro: Edições Muro, 1981. p. 26.

verbalmente as soluções possíveis, em vez de fazê-lo teatralmente”.56

Acerca da qualidade estética da atuação, Boal acrescenta que

o importante é que o Teatro do Oprimido seja bom teatro, antes de mais nada. Que a apresentação do anti-modelo seja, em si, fonte de prazer estético. Deve ser um bom e belo espetáculo, antes de ter início a parte do fórum, isto é, a discussão dramática, teatral, do tema proposto.57

Desprover o Teatro do Oprimido de beleza não deixaria de ser parte de uma pedagogia opressora, que nega ao oprimido o acesso à qualidade da experiência cênica. Afinal, o teatro, todo teatro, deve ser capaz de estimular nossa capacidade lúdica e expor seus participantes ao encanto.

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 123-128)