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Processo colaborativo e corporeidade: considerações finais

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 102-107)

Nos tópicos anteriores, nos dedicamos a apresentar a coreografia Passarinhando com folha e a mostrar que a experiência observada no trabalho da professora Segatto e das alunas pode ser compreendida como um processo colaborativo (ARAÚJO, 2006). Processo em que a vivência primordial corporal (ou da chamada corporeidade) se entrecruzam ou mesmo são indistintos. Para os mesmos não há interesse num ator-linha- montagem, que submete seus trabalhos aos comandos de um diretor, sem apropriação ou questionamento. Esse repúdio conecta-se diretamente ao posicionamento de Merleau-Ponty (2006) que contraria o dualismo cartesiano e suas dicotomias. Não há superioridade do pensar sobre o corpo e o seu fazer tanto na perspectiva da corporeidadecomo no processo colaborativo. Da mesma forma, eliminar a divisão entre artistas-pensantes e artistas-fazedores é também um dos desejos do trabalho com o processo colaborativo. Considerar o sujeito na sua integralidade não significa não contrariá-lo em sua existência. O processo colaborativo ensina que, nos relacionamentos estabelecidos entre os artistas, deve haver espaço para o debate, porém é preciso ceder e gestar limites. O artista, consciente das suas potencialidades e das decisões tomadas no processo, reconhece que há limites na sua atuação, que podem ser determinados por uma divisão de funções definidas anteriormente e, até mesmo, pelos conhecimentos técnicos que ele possui em determinadas decisões.A corporeidade se dá no relacionamento do sujeito consigo mesmo e com o mundo, por isso há também instâncias de debate, desequílibrio e desencontro. É preciso cuidado para tratar das questões de criatividade e espontaneidade nessa discussão. A ideia de que um sujeito deve ser livre para se expressar não

pode se sobrepor ao conhecimento de áreas como antropologia, sociologia e psicologia, que nos dizem que nossas ações são também determinadas pelo contexto em que estamos. Ela exige que nos relacionemos com o mundo numa perspectiva de criação ou de composição artísitca. De fato, os estudos sobre o autoconhecimento encontram solo fértil nos estudos da corporeidade. O ser humano deve sempre ser visto como um ser no mundo com todas as implicações que essa condição traz.Processo colaborativo e corporeidade são, portanto, áreas afins que possuem concepções de ser humano que podem ser alinhadas. Um processo educativo que trabalhe nessa perspectiva, possivelmente, traz consigo alinhamentos que buscam as possibilidades expressivas e de autonomia do sujeito.

A partir do processo criativo e educativo observado, é possível afirmar que as práticas propostas trabalham com uma perspectiva de corpo muito próxima àquela proposta por Merleau-Ponty (2006). As alunas foram consideradas na sua integridade durante a criação, tendo espaço para se manifestar, para arriscar e para errar. Entretanto, a conduta da professora não foi de laissez-faire, prática difundida a partir dos anos 1970 no ensino de Arte que tanto contribuiu para o esvaziamento da área em âmbito escolar. Ao contrário, após permitir a criação e a improvisação, as alunas eram chamadas para dar forma a algo. Lembramos aqui de Ostrower (2012) em que criar é dar forma a algo novo. Na condução do trabalho, houve equilíbrio entre as possibilidades de criação e de definição de elementos coreográficos mais estabelecidos para coreografia. Dizemos mais estabelecidos, e não fixos, porque até o final do processo havia mudança nos elementos coreográficos que compunham a coreografia, evidenciando que o trabalho ia se reconstruindo e se modificando de acordo com o tempo e com as novas e velhas influências que sofriam. As características da turma possibilitaram que o processo fosse tão rico e denso. A afinidade pessoal entre professoras e alunas era evidente, o que também contribuiu para o desenrolar do trabalho.A experiência artística

foi uma importante forma de vivenciar a corporeidade e o exercício da interdisciplinaridade tornou a experiência criadora ainda mais propícia para uma vivência integralizadora do corpo.

A experiência vivida na turma não pretende tornar a dança mais relevante do que as demais linguagens. Mesmo que a dança seja a primeira escolha de expressão artística, as linguagens que se juntaram a ela no processo vieram para proporcionar uma experiência mais potencializadora da experimentação do corpo e das suas possibilidades criativas. Por isso, ressaltamos a importância da interdisciplinaridade, especialmente por perceber que ela surgiu como uma demanda do próprio processo criativo, e não como uma imposição. Merleau-Ponty (2006) afirma que “[...] estamos atados ao nosso corpo” e que “somos seres no mundo”. Diante dessas duas afirmações, é possível dizer que a interdisciplinaridade aconteceu de acordo com as possibilidades de experimentação dos sujeitos participantes, que são determinadas e possibilitadas pelo corpo de cada um, no contexto de criação instalado naquela turma, no universo do Quik Cidadania.

Sobre as possibilidades de criação dos sujeitos, que tinham entre três e quatro anos, consideramosisso um fator fundamental, pois, apesar da pouca idade, houve um envolvimento artístico significativo por parte da maioria das alunas em razão do seu próprio desejo de participação e pela sensibilização estética e criativa, da qual muitas dessas crianças passaram. Dessa forma, as memórias e as experiências anteriores vivenciadas estão apresentadas na sala, na coreografia, na coporeidade de cada uma delas com as possibilidades expressivas e significativas para a criação e, enfim, para vida. Por fim, lembramos aos leitore/as que esse texto é fruto, também, denossas corporeidades como pesquisadores, bem como da corporeidade dos alunos e professores do Quik Cidadania com os quais nos relacionamos. Reiteramos, assim, a importância de pensar, sentir e propor práticas educativas e artísticas que considerem a corporeidade dos envolvidos, pois

estas são capazes de potencializar a sensibilidade e a expressividade, e proporcionar a educação estética e artística dos participantes. E, quiçá, um mundo mais humano e gentil, e menos bruto e massificado.

Referências

ARAÚJO, A. O processo colaborativo no teatro Vertigem. Sala Preta, São Paulo: USP. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas da Escola de Comunicação e Artes, v. 6, p. 127-133, 2006.

BARROS, M. de. Cantigas por um passarinho à toa. 6. ed. Rio de Janeiro: Galerinha Record, 2007. 32p.

GONÇALVES, M. A. S. Sentir, pensar, agir: Corporeidade e educação. 9. ed. Campinas: Papirus, 2006. 192p.

MATTHEWS, E. Compreender Merleau-Ponty. Tradução Marcus Penchel. Petrópolis: Vozes, 2010. 208p.

MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Tradução Jonas Pereira dos Santos. Campinas: Editorial PSY II, 1995. 281p.

MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito. Tradução Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. 192p.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 662p.

NÓBREGA, T. P. da. Uma fenomenologia do corpo. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010. 125p.

OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2012. 192p.

PORPINO, K. O. de. Dança é educação: interfaces entre corporeidade e estética. Natal: Ed. da UFRN, 2006. 147p.

SEGATTO, L. L. de. [Entrevista Concedida] à pesquisadora Ana Clara Buratto. Belo Horizonte: 16 ago. 2013.

Ser criança: uma leitura

No documento Fenomenologia, Educação e Psicanálise (páginas 102-107)