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Festividade na avenida Juan Pablo II

III.4 Momentos históricos: a tradição de luta e reivindicação de El Alto

Bolívia é um país que possui tradição histórica de lutas e reivindicações sociais. No espaço físico que hoje em dia é ocupado pela cidade de El Alto também aconteceram levantamentos populares muito importantes nacionalmente. Há mais de dois séculos, em 1781, o exército indígena comandado por Tupaj Katari enfrentou a coroa espanhola. Aproximadamente 50.000 comunarios aymaras cercaram a cidade de La Paz durante 169 dias. O cerco foi basicamente de alimentos e militar.

Ali residia o centro político da dominação espanhola na região, que quase morreu de fome em função do estrangulamento indígena. Esta revolta se situa historicamente em concordância com a rebelião de Tupaj Amaru II no Peru (novembro de 1780), que também buscou liquidar o jugo espanhol imposto sobre os indígenas. Ambas rebeliões fracassaram e milhares de indígenas foram assassinados, seus líderes esquartejados em praça pública por quatro cavalos que arrancavam cada uma das extremidades. O quartel indígena, centro organizativo político-militar era El Alto.

Passaram-se 118 anos e novamente El Alto se constituiu como forte de resistência. No século XIX, em 1899, enquanto havia uma guerra civil entre La Paz e Sucre, as massas indígenas novamente se organizaram militarmente para sublevar-se contra a dominação branca. Nesta oportunidade, foram liderados por Pablo Zárate Wilka.

As lutas pela autodeterminação da nação indígena (quechua e aymara) foram minguando após a Guerra del Chaco (1932). A parir de então, não se fala mais na restituição de terras comunitárias ou na constituição de um Estado indígena. Começou- se a apoiar a propriedade privada da terra e a participação campesina nas decisões políticas através do voto e do acesso à educação (PATZI, 2007). Esses postulados permitiram a aliança entre os campesinos e a classe operária boliviana, estratégica no triunfo da Revolução Nacional de 1952.

Naquele momento, El Alto se converteu novamente em referência do triunfo e foi legitimador social da Revolução Nacional.

Desta forma, pode-se dizer que não só em El Alto, mas na Bolívia andina, existe uma tradição de política insurrecional que não é recente.

Los indígenas de la parte andina del país, al igual que los de la Amazonia y del Chaco, fueron sometidos a diferentes mecanismos de disciplinamiento. La historia de los pueblos de esta región, de manera similar, está llena de resistencias y rebeliones desde las luchas de Tupaj Katari en 1781 hasta Zárate Wilka em 1899, que fueron batallas por la autodeterminación de los

aimaras y quechuas, constituídas en referentes históricos en la lucha del movimiento campesino de la región andina en los últimos tiempos (PATZI, 2007, p.32-33).

As duas figuras históricas de Tupaj Katari e Zárate Wilka constituem dois ícones indígenas que, nos momentos insurrecionais, sempre são resgatados como uma memória coletiva que entra em ação. A longa história de luta indígena faz parte da práxis social desta cidade, não só nos momentos de revolta social (em que isso aflora com maior visibilidade), mas fundamentalmente na construção diária do espaço urbano (o qual não deixa de passar também por mobilizações sociais, com o objetivo de requerer infra- estrutura e serviços públicos).

III.5 Antecedentes Históricos e Constituição da cidade de El Alto

El Alto nasceu da divisão política da cidade de La Paz. Primeiro foi zona rural de La Paz e posteriormente município marginal desta. Só obteve a condição de cidade em 1988, data em que deixou de se chamar El Alto de La Paz e passou a ser chamada Ciudad de El Alto68. Este fato dividiu administrativamente ambas as metrópoles.

Portanto, para compreender o processo de urbanização desta cidade, é importante levar em consideração alguns aspectos sobre a formação da cidade de La Paz, capital administrativa da Bolívia e um dos principais centros comerciais e financeiros do país.

No ano 1545 foram descobertas as minas de Potosi69, fato que reorganizou o território andino em função dessa região de minério, uma vez que se constituiu o centro produtivo de extração mineral mais importante da colônia espanhola. Naquele

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A proclamação da cidade de El Alto como autônoma foi uma conquista cívica das organizações de vizinhos junto aos grêmios e à Prefeitura Municipal que, através de marchas e ações cívicas conseguiram que o Congresso Nacional considerasse sua demanda.

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As minas de Potosí ficam no que, na organização política do virreinato, correspondeu ao alto Peru, ao sul da atual Bolívia. Estas conformaram o principal centro de extração de prata durante a época da colônia, metal de alto valor para a metrópole. O uso da mita (sistema de trabalho por turnos como parte do pagamento de tributos, utilizado no Império Incaico na elaboração de grandes obras públicas, como construção de canais de irrigação, pontes, edificações majestosas) foi refuncionalizada e imposta aos indígenas por parte dos espanhóis. No incanato, o Estado entendia que essas obras faziam parte de um bem público, e em troca, “pagava” o mitayo com bens e festas, além de velar por sua sustentação e a da sua família. No virreinato, os espanhóis utilizaram a mita, porém não houve repartição de bens, e também não assumiram a manutenção do mitayo. Em troca, pagavam um salário, no entanto, baixo, o qual não permitia nem sua própria reprodução. Desta forma, a mita constituiu uma ferramenta que garantia mão- de-obra barata e fixa para a Coroa Espanhola.

Anualmente se trasladavam 13.500 indígenas mitayos para as minas de Potosí, onde o sistema de mitas, teve um papel central para a extração de metais preciosos.

momento, a cidade de Lima, capital atual do Peru, situada no litoral peruano, era o principal centro político e comercial do virreinato70.

Nesse contexto, funda-se a cidade de La Paz em 1548, como ponto intermediário e eixo econômico do sistema colonial que vincula Potosí a Lima e Buenos Aires.

Com o desenvolvimento progressivo e o processo de urbanização de La Paz, começa, embora timidamente, o processo de habitação em El Alto no final da década de 40 do século XX, momento em que foi conhecida como Ch´usa Marka, que significa povo vazio em aymara. Nesse local desenvolveram-se atividades relacionadas a suprir as necessidades de crescimento de La Paz, tais como terminais de carga, depósitos e instalações ferroviárias.

Em função do cruzamento de caminhos na área que atualmente constitui La Ceja, que vincula La Paz com Potosi e Lima, apareceram também alguns assentamentos humanos em El Alto em função do estabelecimento dos trabalhadores que mudavam o curso dos trilhos das estradas de ferro.

A construção da estrada “Avenida naciones unidas”, a construção da pista de decolagem bem como o funcionamento de empresas de aviação ampliaram moderadamente o processo de habitação em El Alto, posto que nessa época os assentamentos eram considerados marginais71 (GOBIERNO MUNICIPAL DE EL ALTO, s/d).

No início da década de 1950, quando a população de La Paz somava aproximadamente 267.000 pessoas, El Alto, segundo fotos aéreas da época, era habitado por cerca de 3.000 pessoas (USAID, 200472).

III.6 Crescimento em função do Processo Migratório

A atual configuração da cidade de El Alto deve sua dimensão e organização espaciais, fundamentalmente, ao processo migratório de duas origens73. A principal

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A Coroa espanhola administrava as colônias hispânicas através de virreinatos: ueva Espanha (1535); Perú (1544), ueva Granada(1717) e Río de la Plata (1776). Em cada um deles governava um virrey, representando os Reis de Espanha. A atual região geográfica da Bolívia fazia parte na época do Alto Peru e era administrada através do Virreinato del Perú.

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Alguns lotes eram vendidos por 0,5 centavos de Boliviano. O lugar não contava com estruturas adequadas para habitação e abastecimento de água potável (um dos problemas fundamentais neste espaço) era inexistente.

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Segundo o estudo realizado pela Agência dos Estados Unidos para o desenvolvimento Internacional na Bolívia (USAID) o problema central de El Alto é a ilegalidade e irregularidade no loteamento. Esse procedimento gera solidariedade, articulação e organização vicinal, o que debilita o estabelecimento da ordem e prosperidade capitalistas. Só aproveitaremos alguns dados estatísticos de nossa utilidade, com a devida preocupação sobre o caráter tendencial e fortemente ideológico dessa investigação. Sobre uma crítica mais extensa em relação a este estudo, consultar o livro de Raúl Zibechi: Dispersar el Poder.

delas provém da área rural, de origem aymara e quéchua, em menor medida. A outra, que se tornou mais significativa a partir de 1985, é conformada a partir de ex-mineiros.

Em função da Revolução Nacional de 195274 os camponeses se libertaram do sistema de trabalho fazendeiro a partir da lei de reforma agrária em 1953. Embora esta reforma tenha liquidado a grande propriedade fazendeira, acentuou a pauperização no campo e expulsou numerosas famílias do meio rural, as quais migraram em direção às cidades, entre elas, às ladeiras de La Paz e El Alto. À simples vista, não se percebe nenhuma diferença paisagística entre a cidade de El Alto e as ladeiras da cidade de La Paz. Ambas são constituídas por setores da sociedade que foram “expulsos” do lugar de origem e se assentaram massivamente nestes locais, como pode ser observado na foto 24: