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Parte I: Comentários finais

5.2. A ficção do sujeito

Até aqui, estamos identificando objetivação com percepção, sem no entanto mencionar a subjetivação, processo que, segundo entendemos, também ocorre concomitantemente à objetivação. Gostaríamos de discutir, portanto, finalizando os temas desta seção, o surgimento do sujeito nesse processo que culmina no conhecimento. Em nossa interpretação, o sujeito é produzido nesse mesmo momento do conhecer, com a produção da dualidade. Mais ou menos na mesma direção, para Russell, o sujeito é uma introdução ficcional; ele o compara aos pontos e instantes matemáticos (Russell, 1921, p. 103), o que evidencia o seu caráter artificial. Segundo entendemos, essa

introdução dependeria de uma crença, baseada em invariantes construídos, influenciados por experiências espontâneas, de um lado, e mesmo imposições sociais, de outro. De uma maneira ou de outra, a introdução do sujeito se dá coletivamente, isto é, pode-se dizer que o sujeito é uma ficção coletiva, que ao mesmo tempo construímos e recebemos como invariante, desde muito cedo em nossas vidas. Essa ficção humana nos leva a agir de maneira completamente diferente dos outros animais e seres vivos, que em sua maioria costumam se comportar como espécie, cooperando mutuamente. A nosso ver, a ficção do sujeito tal como o formamos, individual e possuidor de identidade, parece ser uma das razões para o comportamento egoísta do ser humano, tanto com relação aos outros membros da sua espécie (outros sujeitos) quanto aos outros seres vivos, ou seja, à natureza como um todo. Essa ideia é coerente com o pensamento de Schrödinger, que destaca o perigo do comportamento egoísta quando comenta sobre qual o destino da evolução do ser humano – ele espera que haja uma transformação biológica de uma atitude egoísta para uma mais altruísta, dizendo: “Para um animal solitário, o egoísmo é uma virtude que tende a preservar e melhorar a espécie; em qualquer tipo de comunidade, se torna um vício destrutivo.” (SCHRÖDINGER, [1956], p. 101).

Apesar de Schrödinger acreditar que a evolução biológica humana pudesse tender no sentido oposto, a evolução social não parece seguir esse mesmo rumo. Acreditamos que muito desse comportamento se deve à maneira como a noção de sujeito se desenvolveu ao longo da História. Pouco a pouco, a convivência coletiva próxima deixou de ser imprescindível ao ser humano, que não precisava mais, em certo momento, viver reunido em grandes bandos. Assim, seus cuidados se reduziram ao seu grupo primordial, que conhecemos como “família”. Parece que os cuidados tendem a se reduzir somente ao próprio indivíduo, se o individualismo continuar convergindo nessa direção. Por isso, é importante para a Filosofia, ao propor uma reflexão sobre a noção de sujeito, ter à mão uma definição maleável, passível de ser alterada. Acreditamos que uma mescla das ideias de Russell e de Schrödinger nesse sentido pode produzir, com alguns acréscimos, uma tal definição, de modo que, sem deixar de encarar “o sujeito como ele é”, contribua para lhe indicar novos e melhores caminhos.

5.3. Aprendizado

Um dos pontos comuns entre as obras de Russell e Schrödinger é a ligação do aprendizado com a percepção (no caso de Schrödinger, com a objetivação) e a consciência. Russell menciona esse tópico tanto em 1921 quanto em 1959, e procuraremos expor, de maneira simplificada, um resumo dessas ideias, uma vez que o tema do aprendizado em Schrödinger é recorrente, especialmente durante sua exposição da formação de invariantes e ao tratar do tema da consciência.

Em 1959, Russell indica o aprendizado como característica dos seres vivos, característica essa que diferencia, segundo ele, a matéria viva da inanimada (Russell, 1959, p. 137). Antes, em 1921, ele dizia haver dois tipos de movimento: o vital e o mecânico. O vital, por sua vez, poderia ver dividido em instintivo, de um lado, e aprendido ou hábito, de outro, sendo que este último seria baseado em experiências passadas (Russell, [1921], p. 33). Ele sustenta que não é só a resposta a estímulos que caracteriza a vida, mas a modificação das respostas com a repetição; adquirir hábitos complexos seria característica do que é vivo. A percepção, em especial, seria fundada sobre esses hábitos, baseados por sua vez na experiência passada. Unindo sensação e hábitos, teríamos uma experiência completa e, portanto, uma percepção completa (Russell, 1959, p. 143). Podemos concluir então que uma percepção completa depende do aprendizado, o qual é responsável pela aquisição de hábitos, bem como sua modificação. Tanto experiência quanto percepção, assim completas, são características do que é vivo.

Falamos em experiência, mas notemos que ainda não exploramos o uso desse conceito em Russell, segundo suas concepções mais amadurecidas, uso esse que está estreitamente ligado à noção de aprendizado. Como experiência, ele indica o fato de nos conduzirmos, no futuro, de uma maneira diferente do que teríamos feito se um certo evento não houvesse ocorrido no passado (Russell, 1959, p. 144). Esse evento seria o estímulo. A diferença no agir diante do estímulo, bem como sua repetição, constituiriam o aprendizado, a partir do qual a experiência ocorre. Pode-se notar que, nessa definição, a experiência é empírica, ao contrário da definição mental que Russell apresenta em outros momentos92.

Vale relembrar que vimos, na Seção 3.4, que uma pessoa, ou sujeito, é inferida, segundo Russell, tomando-se em conta a coleção das suas experiências. Logo, essa inferência só é possível diante do aprendizado, caso contrário não se consegue constituir experiências, nem tampouco colecioná-las. Essa conclusão nos ajuda a definir melhor o que entendemos pelo processo de subjetivação: além de conexão de experiências, instituindo que estas pertencerão a “um sujeito” (que será dotado também de uma identidade), em um nível mais profundo é preciso ter havido aprendizado, além de aquisição de hábitos, diante da repetição de estímulos. Schrödinger comenta a respeito da repetição e dos hábitos, porém a sua ênfase é na formação de invariantes e não do próprio sujeito; um dos objetivos deste trabalho é justamente complementar esses pontos em que Schrödinger foi mais vago, como a identificação do sujeito, o que pretendemos fazer de maneira mais aprofundada no Capítulo 7.

Nessa exposição de Russell sobre o aprendizado o tema da consciência também aparece, o que nos interessa devido à importância que esse tópico tem na filosofia de Schrödinger. Para Russell, essa repetição de respostas diante de determinados estímulos não necessita da consciência para ocorrer (Russell, [1921], p. 36). Ele considera, já em 1959, que estar consciente seria aperceber-se de algo quando da sua ocorrência (Russell, 1959, p. 144). Para nos apercebermos de algo, é preciso que nossa atenção seja chamada para isso, caso contrário, temos eventos inconscientes. Russell define o “aperceber-se de algo” como isolar esse “algo” do meio ambiente (Russell, 1959, p. 142). Ele mesmo considerava essa definição vaga, no entanto. Parece que o “aperceber- se” cumpre aqui uma função parecida com aquela dada às “sensações”, no sentido de “tomar consciência da percepção”. Discutiremos essa aproximação no Capítulo 6.

Russell considera que a consciência não é fundamental, não sendo necessária aos fenômenos mentais (Russell, [1921], p. 209). Ela só aparece depois que se acrescentam crenças às imagens. Além disso, a consciência não estaria necessariamente presente na percepção, que se caracteriza por sensações presentes, acrescidas de expectativas de sensações futuras. Para Russell, se acrescentarmos a isso uma crença verdadeira, temos consciência (Russell, [1921], p. 211). Mais uma vez, notamos que há semelhança entre o conceito de percepção de Russell e o de construção do objeto cotidiano de Schrödinger: sensações presentes,

acrescidas de expectativas de sensações futuras, podem ser vistas como equivalentes a sensações reais, mais percepções virtuais. O papel dado por ambos os autores à consciência também se aproxima, conforme veremos adiante.

São exemplos de consciência, para Russell, as memórias imediatas e as sensações lembradas. Notemos que, nesses dois casos, os eventos não são costumeiros ou consolidados. A consciência não estaria presente nos eventos muito familiares; ela só aparece marcando um hábito ainda mal-estabelecido (Russell, [1921], p. 214). A consciência estaria presente, por exemplo, quando lembramos de ter tido certa sensação e isso nos faz tomar uma determinada atitude, gerando um certo comportamento. Por exemplo, olhar o céu e ver uma certa configuração de nuvens nos faz lembrar de dias em que tempestades se seguiram a essa mesma observação; podemos decidir não sair de casa diante disso. Aliás, de acordo com Russell, as associações e hábitos são gerados pela consciência e sua função seria nos fazer agir com relação às referências distantes no tempo e no espaço. A consciência é, portanto, complexa demais para ser tomada como característica fundamental da mente (Russell, [1921], p. 213). Mais uma vez evidencia-se a proximidade com James: este vê a consciência como função, não sendo fundamental e sendo um acréscimo; a experiência não tem duplicidade interna, para ele, logo não pode ser dividida em consciência e conteúdo (James, 1912, pp. 3, 9, 18)93.

Há bastante proximidade, também, dessa noção de consciência em Russell com os comentários de Schrödinger sobre o tema. Este associou o termo à experiência de um evento novo, correspondendo, portanto, a um momento de aprendizado (Schrödinger, [1956], pp. 98- 99). Assim como explica Russell, também para Schrödinger o que já não é mais novo passa a fazer parte do que é inconsciente. Schrödinger se utiliza das explicações sobre a consciência para esclarecer a razão pela qual a formação de invariantes, com relação aos objetos cotidianos, é inicialmente um aprendizado, em algum momento de nossas vidas, mas depois passa a ser um processo automático. Pode-se dizer que esse processo se torna mecânico; logo, a formação dos invariantes passa a ser inconsciente e automática. Segundo o que podemos concluir a partir de

93Batista (2010) sugere uma aproximação de James e Schrödinger com respeito

à abordagem Jamesiana da consciência enquanto função, tomando de Schrödinger o caráter biológico que este lhe atribui.

Russell, um sujeito passaria tanto por momentos de consciência, aprendizado e novidade schrödingerianos, quanto de inconsciência e ações mecânicas, automatizadas pela repetição, as quais, segundo o próprio Russell, não precisam da consciência para ocorrer. Além disso, Schrödinger associa a consciência aos processos orgânicos em geral (Schrödinger, [1956], p. 99), o que também a evidencia como característica do que é vivo, assim como em Russell. Os autores parecem divergir quanto à fundamentalidade da consciência, mas acreditamos que isso se deve à diferença de método entre os dois: enquanto Russell traça um caminho desde o mundo dualista até as sensações, Schrödinger, ao discorrer sobre as explicações científicas que culminam numa unidade mística da consciência, caminha na direção de um estado que chamaremos de pós-objetivado. Falaremos dessa diferença de abordagens no Capítulo 6.

A pessoa, assim como a consciência, também é uma inferência, para Russell, mas aquela parece ser ainda menos fundamental do que esta. Construir uma pessoa, para ele, exige basear-se em experiências, completas por hábitos e com aprendizado, situações essas que demandam consciência. Por fim, podemos afirmar que, em algum momento, há a consciência de que uma pessoa é formada, porém esta passa ao nível inconsciente assim que isso deixa de ser novidade. No entanto, sempre que esse sujeito sofre modificações, passa por novas experiências e aprendizado; seria coerente dizer que ele volta a ter momentos de consciência. Assim, podemos concluir que o sujeito inconsciente, por exemplo, pode ser inferido por outros, mas não por ele mesmo, pois a inferência exige consciência. Logo, um sujeito não precisaria da própria inferência, ou seja, da autoconsciência de ser um sujeito, para existir no mundo objetivado. No entanto, se nos servirmos de algumas ideias de Russell em nosso auxílio, concluiremos que esse sujeito inconsciente, que é caracterizado somente pelas expectativas dos outros quanto à sua identidade, não se localiza no lugar de onde está, mas onde é visto. Na teoria de Russell, isso é característica de objetos. Portanto, já podemos evidenciar uma das leis fundamentais do mundo objetivado: a subjetivação só pode ocorrer vinda do próprio sujeito. Imposições externas podem influenciar a sua caracterização, mas o processo só é legítimo se houver autoconsciência. Vamos explorar esse ponto no Capítulo 7.

Na autoconstrução, como acabamos de mencionar, o sujeito absorve muitos elementos externos. Esse processo envolve o aprendizado que, para Russell, estaria diretamente ligado à aquisição do senso comum. Segundo ele, essa visão equivalente ao senso comum seria adquirida e completa em torno dos três anos de idade, em uma situação usual. Ele diz: “Crianças muito novas não conhecem a noção do senso comum de um objeto.” (RUSSELL, [1927], p. 143). Esse raciocínio se parece bastante com a ideia de Schrödinger sobre a formação de invariantes; também ligada ao aprendizado e também adquirida nos primeiros anos de vida do sujeito. Além disso, podemos dizer que essa visão do senso comum apontada por Russell equivale ao mundo cotidiano de Schrödinger. Consequentemente, a aquisição da visão do senso comum equivaleria à construção do objeto cotidiano schrödingeriano. Para Russell, o objeto do senso comum contaria com uma espécie de permanência e seria conectado a diversas sensações (Russell, [1921], p. 143). Essas características conferem com o objeto cotidiano de Schrödinger, embora o termo “sensações” tenha empregos diferentes nos dois autores, conforme explicaremos na seção seguinte. Quanto à permanência, Schrödinger a discute ao mesmo tempo que a identidade, que já discutimos na Seção 2.4.

Um ponto importante a salientar é a semelhança quanto à maneira com que todas as pessoas chegariam a um mesmo senso comum, o que tanto em Russell quanto em Schrödinger se dá por comparação e acordo dentro de um grupo. Sabemos que, em Schrödinger, isso é explicado com a finalização da formação de invariantes, a qual já apresentamos na Seção 1.2. Vejamos o que afirma Russell:

“É porque o estímulo sensorial é capaz de nos guiar, sem qualquer intermediário mental, a um objeto praticamente idêntico ao percebido por outros em nossa vizinhança que nós somos capazes de adotar a crença do senso comum de que nós realmente percebemos objetos externos.” (RUSSELL, 1927, p. 150).

Há dois aspectos a serem salientados nessa passagem de Russell. O primeiro diz respeito ao acordo tácito coletivo que existe, sob a visão do senso comum, com respeito à realidade e, especialmente, à divisão entre sujeito e objeto. O segundo diz respeito à independência do estímulo e da resposta sensorial com relação à mente, tópico que abordaremos brevemente quando falarmos da exposição de Russell

sobre a relação entre a mente e os órgãos dos sentidos, na Seção 5.4. No momento, nos interessa aprofundar um pouco mais a ideia contida no primeiro ponto, em que notamos maior elaboração do que nas ideias, um pouco menos refinadas filosoficamente, de Schrödinger. Para Russell, a visão do senso comum é de fato adotada através de crenças; no caso, uma delas se trata da crença sobre a percepção de objetos externos. Em Schrödinger, a percepção de objetos externos (e consequentemente a crença na sua existência) seria aprendida e inconscientemente adotada como parte da formação de invariantes e ainda da objetivação. Em Russell, por outro lado, ela deve ser conscientemente adotada, já que as crenças envolvem consciência, para ele. Pode-se dizer que a adoção dessa crença na percepção de objetos externos implica que o mundo passe a ser dividido entre objetos e sujeito. Além disso, a aceitação dessa crença é baseada em um resultado, ou seja, em uma resposta sensorial, ou ainda na comparação das descrições dessas respostas, mesmo que em linguagem não verbal ou ainda não articulada, como seria o caso das crianças que acabaram de adquirir tais crenças.

Acreditamos que o acréscimo da crença na formação do objeto cotidiano reforça ainda mais a ideia de construção da realidade, especialmente por grupos específicos. Essa construção poderia se dar de maneiras diferentes, caso essas crenças diferissem, desde que houvesse acordo com relação a elas. É razoável, portanto, sustentar que a realidade muda não só de grupo para grupo, mas de tempos em tempos, quando mudam os acordos entre os que a compartilham. Especificamente na Ciência isso seria bastante evidente, já que, explicitamente, os acordos mudam com as teorias. Podemos dizer que somente teria faltado a Schrödinger desenvolver essa ideia, que funciona como um fecho do processo de objetivação, isto é, a concordância consciente do sujeito, através da aquisição de crenças, com o mundo objetivado. A formação de invariantes continuaria sendo aprendida, embora a sua consolidação dependesse da aquisição da crença.

Finalizando esta seção, gostaríamos de comentar uma afirmação de Russell que pode corroborar a proposição de que a realidade muda, o que poderia ser constatado mesmo desde algumas características aparentemente imutáveis. A construção que todos fazemos da mesma realidade poderia resultar em outra configuração, desde que o acordo fosse mantido. Russell declara que o senso comum seria ingenuamente realista ao acreditar que a percepção nos mostra sempre as coisas como

realmente são (Russell, [1927], p. 149). Segundo ele, essa crença se mantém devido ao embasamento experimental que precede a visão do senso comum. A experiência, por sua vez, é carregada de correlações passadas. São essas correlações que a criança precisa adquirir de modo a formar a sua visão de senso comum, a qual conterá a crença de que as coisas realmente são como percebemos.

Suponhamos que essas correlações fossem consolidadas de maneira diferente. Por exemplo, como Kaspar Hauser, formássemos todos ideias diferentes das que temos usualmente sobre dimensões, tamanhos, comparações etc. O senso comum poderia ser completamente diferente do que é, incluindo a ideia de que um objeto é maior quando se está dentro dele, por exemplo. Admitir essas possibilidades nos faz deixar de ser ingenuamente realistas com relação às nossas percepções, que são finalmente mais susceptíveis a serem recheadas pela experiência do que costumamos pensar; elas não são os instrumentos objetivos de captação do mundo pelos quais, por vezes, as tomamos. Assim, nos permitimos rever as construções de sujeitos, objetos e suas relações, possibilitando maior flexibilidade e menos dogmatismo na manipulação desses conceitos.