• Nenhum resultado encontrado

Parte I: Comentários finais

5.1. Monismo e dualidade

Em “The Analysis of Matter”, Russell procurou mostrar que a noção de matéria da Física tem, na verdade, suas bases na percepção cotidiana (o mundo da Física está “em nossas cabeças”); em “The Analysis of Mind”, seu objetivo é muito semelhante. Ele pretende reconciliar duas visões sobre a matéria: uma materialista, em Psicologia, que considera a matéria mais sólida e indubitável que a mente, e outra segundo a qual o mundo é constituído de eventos, em Física, em que a matéria é derivada por construções lógicas. Na seção anterior, vimos como a abordagem russelliana da matéria da Física a toma, sim, como constituída de eventos. No entanto, ao estabelecer os particulares como constituintes últimos da matéria, sua postura parece exigir a manutenção de uma conexão com o percebedor.

Segundo Russell, a teoria capaz de harmonizar essas duas tendências é o “Monismo Neutro” de James, o qual considera que o estofo constituinte do mundo não é nem mental nem material, mas algo mais primitivo (Russell, [1921], p. 3). Ademais, a abordagem de James permitiria resolver os questionamentos relativos ao problema da relação e definição de mente e matéria; Russell continuava defendendo esse ponto ainda em 1959. No entanto, para assumir o Monismo Neutro como base de sua teoria sobre a matéria, uma série de outros conceitos filosóficos tradicionais teriam que ser revisados, como, por exemplo, consciência, percepção, ideia etc. Décadas mais tarde, ele ressalta a importância de se revisar, de tempos em tempos, certas questões filosóficas, tendo em vista os avanços científicos:

“De fato, um grande número de questões filosóficas são questões científicas das quais a Ciência não tem ainda os meios de se ocupar. A sensação e a percepção eram problemas dessa classe, mas hoje, eu não hesitaria a sustentar, elas são suscetíveis de ser tratadas pela Ciência e não podem ser estudadas de uma maneira fecunda por aquele que escolhe ignorar o que a Ciência diz a seu respeito.” (RUSSELL, 1959, p. 250-1). Em questões como essas, Russell sustentava que a Filosofia, sozinha, não podia ter um bom desempenho. Sem considerar os resultados da Ciência, estaríamos simplesmente fazendo especulações, afastando-nos do que poderia ser mais coerente. Essa atitude de Russell tem muito de “naturalista”, muito antes do naturalismo se consolidar como corrente filosófica. Mais especificamente, esse discurso sobre tomar em grande conta os resultados científicos se assemelha ao naturalismo de Alvin Goldman, que sustenta que a filosofia tem, sim, sua contribuição a dar, mas que esta não pode ser totalmente normativa, devendo se apoiar em resultados da Ciência para melhor desenvolver as suas reflexões90.

Autores como Goldman já são parte de um grupo para quem a Epistemologia poderia mudar – e veio de fato mudando durante todo o século XX. Russell já antevia que essas mudanças precisavam ocorrer e que a Epistemologia não poderia ficar presa a Kant eternamente. Portanto, um dos termos importantes a se rediscutir, para Russell, é o próprio conceito de “conhecimento”; especialmente, nesse contexto, em sua relação com a consciência. Ele conclui que conhecimento é uma relação entre o conhecedor e o objeto conhecido (Russell, [1921], p. 15). Porém, sujeito conhecedor e objeto aparecem como inferências, após o estabelecimento dessa relação; antes, são iguais porções de experiência, que podem “servir” como sujeito, em uma determinada situação, ou como objeto, em outra. Podemos concluir então que a relação de conhecimento cria a separação entre sujeito e objeto. Russell afirma ainda que essa separação dá origem à consciência; seu resultado é a separação de consciência (sujeito) e conteúdo (objeto). Assim como em James, essa separação não se encontra na experiência, mas é uma adição

90Cf. Goldman, 1993. Sobre o Naturalismo na Epistemologia, ver Dutra, 2005a,

a ela, bem como o seria também a reintrodução da dualidade, exigência da relação de conhecimento, de que falamos na Seção 3.2.

Sujeito e objeto seriam, portanto, separados no momento do conhecer. Se, nesse momento, os fatos já são imediatamente conhecidos, ou seja, aproximadamente no momento em que ocorrem, tem-se o que ele chama de “conhecimento empírico”. O processo que leva a esse tipo de conhecimento dos fatos, sem inferência, é que deveria ser chamado de percepção, para ele. Consequentemente, o conhecimento derivado da percepção é, para Russell, baseado na experiência (Russell, [1927], p. 186). A percepção é, desse ponto de vista, o processo que leva ao conhecimento empírico.

Essa conceitualização sugere cautela ao se comparar a percepção em Russell com a objetivação schrödingeriana. Parece que, para Russell, a percepção não poderia englobar o estágio das inferências, o qual faz parte da objetivação em Schrödinger. Mesmo assim, pensamos que a Teoria Causal da Percepção de Russell, envolvendo todos esses processos, pode ser comparada à descrição do processo de objetivação como um todo, conforme veremos adiante.

Em 1921, Russell apresenta a percepção com outra caracterização, evitando relacioná-la ao conhecimento, o que ele só faz, de fato, mais tarde. Ele define, até então, a percepção (ou seu resultado) como constituída de crenças elementares, adicionadas de sensações. Essas crenças podem ser inconscientes, e um exemplo delas são as expectativas (Russell, [1921], p. 176). Logo, ele não admitia o conhecimento como resultado desse processo, mas admitia as crenças, que permitem inferências posteriores.

De uma maneira ou de outra, as descrições de Russell para a percepção, seja em termos de processo que leva ao conhecimento, seja como constituída de crenças adicionadas de sensações, são harmoniosas com a caracterização que queremos dar à objetivação schrödingeriana. Em primeiro lugar, em nossa interpretação de Schrödinger, a objetivação é identificada com a própria construção do objeto. Nela, as expectativas devem estar presentes; também em Russell, conforme já vimos, as expectativas tomam parte na percepção. Não somente elas, mas crenças em geral, que podem também incluir memórias e acordo (Russell, [1921], p. 181). Em segundo lugar, sustentamos que o conhecimento é o resultado do processo de objetivação de Schrödinger, gerando, inclusive, a separação entre sujeito e objeto, assim como em Russell. Nos parece,

então, apropriado fazer corresponderem objetivação schrödingeriana e percepção russelliana, ainda que com certas ressalvas.

Há também outro ponto comum para com Schrödinger quando consideramos a maneira de Russell proceder à revisão dos conceitos filosóficos tradicionais. De fato, ele não os elimina, mas explica que eles têm nuances mais complexas do que se imaginava; além disso, revela sob a sua superfície, após análise, processos mais fundamentais que permitem uma compreensão por vezes muito diferente da sua estrutura. Ainda assim, os conceitos e os termos que vêm sendo utilizados tradicionalmente pela Filosofia não podem simplesmente ser ignorados. Isso é de fato harmônico com nossa interpretação de Schrödinger, segundo a qual a Filosofia deve levar em conta o fato de que a Ciência é objetivista e dualista em termos de sujeito e objeto; a Epistemologia também foi assim constituída desde o dualismo Cartesiano91. O

conhecimento é uma relação que temos no mundo objetivado, especialmente como vem sendo discutido ao longo da História da Epistemologia. A forma de entendermos e nos relacionarmos com o mundo foi uma vez assim descrita e isso não pode ser ignorado; o que não impede a revisão dos conceitos. Por isso trata-se de uma revisão, não de uma criação a partir do vazio. Logo, uma Epistemologia que pretenda ser útil a compreender a Ciência não precisa negar outra maneira possível de se definir o conhecimento, ao mesmo tempo em que não pode deixar de analisar a maneira como o pensamento humano e a Ciência se desenvolveram até esse momento.

É em virtude desse tipo de argumentação que acreditamos que Russell declarou, em 1921, ainda não estar completamente de acordo com a ideia de que mente e matéria sejam compostos da mesma substância. É possível dizer que um dos motivos para essa dificuldade de Russell em aceitar o Monismo Neutro é justamente a necessidade da dualidade para o conhecimento (Russell, 1959, p. 139), o que está de acordo com a argumentação que acabamos de apresentar. Russell tinha diante de si um impasse, pois ao mesmo tempo em que gostaria de assumir muitas das ideias envolvidas no Monismo Neutro, também precisava manter certos aspectos da definição de conhecimento com que gostaria de trabalhar. Em 1921, ele ainda via diferenças cruciais entre mente e matéria e ainda não havia conseguido conciliar as duas visões.

91Sobre a dualidade cartesiana entre corpo e mente, ver Hatfield, 2014 e também

Por exemplo, haveria diferentes leis causais, no caso da Física e da Psicologia, que governam o agrupamento dos elementos mentais ou dos físicos, fazendo com que diferissem (Russell, [1921], p. 16). Nessa época, ele já defendia a ideia de que uma sensação, se agrupada de acordo com a cadeia da memória, fará parte da mente, mas se agrupada segundo seus antecedentes causais, fará parte do mundo da Física (o que já condiz com o novo uso do termo). E é no momento da percepção que esse agrupamento se dá. Mais tarde, Russell nota que essa diferença não está na essência dos elementos, mas nas leis causais de acordo com as quais eles são agrupados. Além disso, ele passa a ver a percepção como um processo, cujo resultado é o conhecimento. Se a dualidade é necessária a ele, não há problemas; ela só não precisa estar presente no processo que o gerou.

O Monismo Neutro não seria, em nossa interpretação schrödingeriana, útil para descrever o mundo objetivado. Mas é plausível dizer que o Monismo Neutro serviria para explicar um mundo pré-objetivado ou pós-objetivado, enquanto que o dualismo é necessário no mundo onde há conhecimento. A percepção, vista como objetivação, resulta no conhecimento, relação que exige a dualidade. Russell comenta que a dualidade deve ser reintroduzida, conforme já vimos, no momento de se descrever a percepção, pois a percepção vai levar ao conhecimento, que exige a dualidade (Russell, 1959, p. 139). Portanto, uma teoria monista não explicaria o mundo objetivado. Falaremos da aplicação do monismo nos outros dois casos, isto é, mundo pré e pós- objetivado, na Seção 6.3.