• Nenhum resultado encontrado

Já mencionamos que a maneira como Schrödinger apresenta a construção dos objetos cotidianos é bastante inspirada pela sua experiência enquanto cientista, lidando com objetos do ramo da Física. Pensando assim, faz sentido dizer que não é o objeto científico que tem

30Para informações sobre a discussão em torno de modelos na Filosofia da

estrutura comum ao cotidiano, mas sim o contrário. É a formação do objeto cotidiano que tem muito em comum com o construto científico. E aqueles estão cada vez mais próximos de revelar uma estrutura semelhante à destes, como também já mencionamos, à medida que a familiaridade cresce, e já não é necessário reconstruir os objetos, bastando resgatar os invariantes. O objeto cotidiano não é escolhido dentre uma coleção de imagens ou percepções. O processo de adquirir a ideia da coisa cotidiana, na linguagem de Bitbol, não ocorre pelo acúmulo de imagens, mas sim através da busca por invariância (Bitbol, 1992, p. 53). O produto final desse processo:

“[...] seja ele o componente puramente estrutural do complexo, ou o quadro [frame], ou a estrutura [scaffolding], é completamente livre de qualquer ligação com percepções específicas. Tem muito em comum com uma teoria científica ou um construto científico.” (BITBOL, 1996, p. 189). Bitbol se refere, citando essas três expressões usadas por Schrödinger nesse caso, e ao longo de sua obra, à flutuação do vocabulário schrödingeriano nesse sentido. A nosso ver, essa flutuação não é relevante nesse caso; só o que nos importa é considerar que essa estrutura é livre de percepções. Ou seja, o objeto cotidiano converge para uma configuração do mesmo tipo que a do científico.

Outro ponto comum é o status de coisa inacabada que ambos possuiriam, uma vez que sua estrutura envolve uma infinidade de percepções virtuais e expectativas. Para Bitbol, Schrödinger concebe os modelos e teorias científicas numa atmosfera de abertura (Bitbol, 1992, p. 56). Ele relembra que o próprio Schrödinger visava a colocar os dois tipos de objetos no mesmo nível, tanto que, para ele, a exposição de Schrödinger com respeito aos objetos cotidianos era nada mais que uma introdução à análise dos objetos científicos, especialmente da Física Moderna. Segundo Bitbol, Schrödinger consegue a equiparação ao estabelecer que ambos são nada mais que uma espécie de configuração, ou seja qual for o termo usado por este (Bitbol, 1996, p. 188-9).

French & Krause também chamam a atenção para a intenção de Schrödinger em equiparar esses construtos. Para eles, o nivelamento estrutural dos objetos científicos e cotidianos implica que essa visão do mundo não é inevitável. As teorias científicas são sujeitas a revisões e reformas, e portanto também o são os invariantes do cotidiano (French & Krause, 2006, p. 126).

Schrödinger reitera o caráter revisável dois dois tipos de objetos e, consequentemente, dos mundos que estes constituem. O mundo construído pelo bebê em sua “ciência experimental” não é o único possível; a comparação com teorias científicas sugere que esses construtos estão sujeitos a serem mudados, melhorados e incrementados (Schrödinger, [1954b], p. 149).

Para Schrödinger, se ambos os construtos acabam revelando a mesma estrutura, apesar das diferenças em seu processo de construção, e um deles é chamado de real, não faz sentido que o outro não seja. Já em 1928, ele afirma que não vê outra maneira de chamar os objetos da Ciência senão de “realmente existentes” (Schrödinger, [1928], p. 120). No texto mais tardio de 1957, ele explica melhor tal asserção:

“Algo que influencia o comportamento físico de outra coisa não deve, em nenhum sentido, ser chamado de menos real do que a coisa influenciada – seja qual for o significado que dermos ao perigoso epíteto 'real'.” (SCHRÖDINGER, 1957, p. 198, aspas do autor) Schrödinger se refere, aí, aos experimentos em que os construtos da Física, por exemplo, que são supostos pelas teorias, são apontados como responsáveis pelos resultados observados. Por exemplo, um elétron é tomado como responsável por um clique que se ouve durante um experimento. Seja qual for o sentido de real, este deve ser aplicado tanto ao influenciador quanto ao influenciado. Bitbol interpreta, conforme já vimos, que Schrödinger procura manter a mesma ideia nos dois casos:

“Reconhecer completamente que os 'objetos reais ao nosso redor' são nada mais que construtos, mas levar esses construtos muito a sério, uma vez que são pré-condição para nossa vida. E, por outro lado, quando você encontrar um construto teórico claro e adequado, não diminua a sua significância chamando-o de 'mero produto de nossas mentes', ou um 'mero padrão simbólico'. Pense que ele é exatamente o mesmo tipo de estrutura que aquela que você está acostumado a chamar de 'um objeto real'.” (BITBOL, 1996, p. 14, aspas do autor). O objeto científico tem o mesmo tipo de estrutura que aqueles objetos que chamamos de reais. Em Schrödinger, essas afirmações a respeito da realidade dos objetos científicos são sempre sustentadas pelo

argumento da realidade dos objetos cotidianos. Mas o que eles teriam em comum e que nos faz chamá-los de reais? A sua estrutura não é o suficiente; trata-se apenas de um critério de comparação para que se coloque os dois no mesmo nível. Bitbol revela no trecho mostrado anteriormente que, no caso dos construtos cotidianos, eles são pré- condição para nossa vida, por isso devemos levá-los a sério, o que significa chamá-los de reais, vê-los como reais e tratá-los como reais. Para vivermos nesse mundo, precisamos ter em mente que paredes não podem ser atravessadas por nosso corpo, que facas podem nos cortar e que luzes não vão se acender a não ser que sigamos o procedimento necessário para isso ocorrer. Ou seja, é necessário ter certas expectativas com relação a esses objetos.

Schrödinger apela ao que nos faz, de fato, chamar de reais os objetos cotidianos, ou seja, ao seu caráter regulatório, de guia para ações. Defendemos essa interpretação, de viés pragmatista em algum sentido, do realismo de Schrödinger, pois ele a reitera em várias passagens, além dos comentadores que utilizamos reforçarem, em alguns trechos, essa ideia, conforme já vimos. Oportunamente, nas Seções 3.4 e 3.5, compararemos essa abordagem com a russelliana, que nos parece ter muitos pontos em comum com a schrödingeriana31.

Capítulo 2

No mundo objetivado: caracterizações e relações

“'Quem é você?', disse a lagarta. […] 'Eu... eu... no momento não sei, minha senhora... pelo menos sei quem eu era quando me levantei hoje de manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde então'.” (CARROLL, [1865], p. 62) 2.1. Mundo objetivado como decorrente da objetivação

Conforme pudemos notar nessa exposição resumida das ideias de Schrödinger – na verdade um resumo de nossa interpretação das leituras de seus textos – faz parte do vocabulário de Schrödinger falar em “sujeito” e “objeto”, além de atribuir a objetos os adjetivos “cotidianos” e “científicos” e referir-se à sua “construção”. Ao descrever essa construção, ele fala em “percepções”, “sensações” (acompanhadas ou não dos adjetivos “reais” ou “virtuais”), “expectativas”, além de “estrutura”, “configuração”, “forma”, e menciona o “sujeito cognoscente”. Gerando a dualidade sujeito/objeto, está o “Princípio da Objetivação”, exposto por Schrödinger, o qual tomamos como ponto de partida para analisar o mundo schrödingeriano (“mundo” é outro termo usado por ele constantemente – “mundo de objetos cotidianos” e também “realidade física” ou “mundo do físico”). Ele também usa com frequência o par “mente/matéria”, refere-se ao “cérebro”, por vezes, além de “consciência”, “inconsciente” (como adjetivo para certos processos que estão envolvidos na “formação de invariantes” – esta última outra expressão de Schrödinger) e “experiência”. Por fim, Schrödinger fala também em “individuação” e “individualidade” dos objetos.

Nesse momento, não faremos uma descrição sistemática desses termos de Schrödinger; procuraremos esclarecer e analisar os conceitos à medida que aparecem (como já fizemos com alguns) e em comparação com ideias de Russell. O vocabulário de Schrödinger é flutuante, conforme afirma Bitbol (1996, p 189), mas vamos fixar, neste trabalho, certos termos que serão sempre usados no mesmo sentido, para maior clareza. No Capítulo 6, retomaremos esses conceitos de Schrödinger, além dos que emprestaremos de Russell; no Capítulo 7, explicitaremos

nossa própria cunhagem de termos, dando, tanto a uns quanto aos outros, definições mais precisas.

Já dissemos que alguns termos que usamos não faziam parte da linguagem de Schrödinger e procuraremos esclarecer quais são eles e quais são, segundo entendemos, os seus sentidos, sejam eles conceitos de fato novos ou apenas nomes para conceitos cujo sentido já foi esboçado por Schrödinger. Os principais dentre esses termos são: “objetivado” (especialmente as expressões “mundo objetivado”, “pré- objetivado”, além de “pós-objetivado”, que aparecerá mais tarde), “objetificado/objetificação”, “subjetivação” (externa e “autossubjetivação”), “subjetificação”, “des-subjetivação” e “desobjetivação”. É nosso intuito esclarecer os sentidos desses termos e descrever suas relações e sua inspiração schrödingeriana no Capítulo 7. Por ora, vamos esclarecer brevemente alguns deles a fim de darmos continuidade às nossas análises.

Por que utilizamos o termo “objetivado” para denominar o mundo que Schrödinger apresenta como sendo resultante da maneira como o construímos? O motivo é a derivação do adjetivo a partir do termo “objetivação” (“objectivation”). Schrödinger menciona em “Mind and Matter”, conforme já vimos (Schrödinger, [1956], p. 117), o Princípio da Objetivação; relembrando, trata-se daquele princípio segundo o qual procuramos afastar os sujeitos a fim de observar e lidar com os objetos. Desse princípio se originaria também a própria distinção entre sujeito e objeto, para ele. Interpretamos que é ao distinguir sujeito e objeto que esse princípio acaba gerando a própria concepção de “objeto”, que é um conceito fundamental para esse mundo que procuraremos descrever com olhar schrödingeriano. Logo, um objeto, no mundo schrödingeriano, é um produto resultante da aplicação do Princípio de Objetivação (nos referimos a este, por vezes, como P.O.). Essa aplicação é inconsciente, no caso do mundo cotidiano, e tácita, no caso da Ciência. Poderíamos vê-la como uma pré-condição para o início do processo de construção dos objetos, pois, de início, seria preciso haver a ideia da dualidade sujeito/objeto. No entanto, conforme já vimos, nossa abordagem sugere uma interpretação mais falibilista, no sentido de não ser necessário estabelecer uma base inicial para a construção; inicialmente, ela não se distingue da construção do sujeito, a qual ocorre concomitantemente. Em algum momento, o princípio vê-se

aplicado, separando-se sujeito e objeto. Logo, não é preciso considerar a distinção como fundamental.

Outra opção de adjetivo derivado de objetivação seria “objetificado”. No entanto, o termo originário não é “objetificação”, por isso optamos por não falar em um mundo “objetificado”, nesse caso. Encontramos outro uso, porém, para ele. O termo “objetificação” é um dos termos que cunhamos neste trabalho, não tendo sido utilizado por Schrödinger (nem o termo nem o conceito); segundo entendemos, “objetificação” tem o sentido de transformar algo em objeto, ou ver algo, de natureza diferente, como objeto; por exemplo, um sujeito pode ser objetificado. O termo “objetivação”, devido a Schrödinger, ao lado do decorrente “objetivado” (cunhado por nós, significando “resultado do processo decorrente da aplicação do Princípio da Objetivação”), carrega um sentido de criação, do que já é criado da maneira que será e não será transformado. Nesse caso, não há inicialmente algo que posteriormente será “objetificado”. Vamos ao invés disso criar os objetos e, consequentemente, a realidade, para Schrödinger. Podemos afirmar isso a partir da sua declaração de que o mundo nos é dado somente uma vez, não uma como existente e outra como percebido (Schrödinger, [1956], p. 127). É interessante notar que o uso do termo “dado” não condiz com o que compreendemos de outras afirmações de Schrödinger, como em “conheço o mundo exterior por minhas percepções sensoriais [...] ela são o material a partir do qual eu o construo” (Schrödinger, [1964]. p. 67). Vamos entendê-lo, então, como maneira de dizer, apenas, já que suas concepções sugerem um mundo construído e não dado. Se criamos uma realidade, ela seria objetivada, na linguagem que adotamos neste trabalho, embora, para ele, seja importante que o filósofo se dê conta de que não precisaria ser necessariamente assim.

Adotamos essa nomenclatura aproveitando para estabelecer um vocabulário próprio para se falar das ideias schrödingerianas. É importante não se confundir, porém, com outro sentido que poderia ser encontrado no termo “objetivado”; o de algo que se tem por objetivo; isso poderia dar um sentido de intencionalidade à construção dos objetos, o qual não atribuímos, inicialmente, às ideias de Schrödinger. Por isso, não usamos o termo nesse sentido.

Com base na exposição da construção dos objetos em Schrödinger, a qual procedemos nas seções anteriores, seguiremos procurando descrever e analisar uma possibilidade de entendimento do

mundo objetivado schrödingeriano. Schrödinger nos leva a refletir sobre a condição de estar-se inserido em um mundo que tem uma certa configuração e que funciona de acordo com determinadas regras. Nosso objetivo nas próximas seções é investigar qual é o papel dos sujeitos no mundo assim caracterizado, sua relação com os objetos e como se dá essa relação na Ciência, especialmente a Física, tratando também dos temas da individualidade e da identidade dentro desse contexto.