• Nenhum resultado encontrado

Objeto físico: construção, localização

Parte I: Comentários finais

4.3. Objeto físico: construção, localização

Apesar de defender a continuidade entre senso comum e Ciência, seus objetos não são iguais, para Russell. A matéria da Física é vista por ele como um agrupamento de eventos, e aí está a principal diferença que podemos apontar para com a sua descrição das coisas do senso comum. O objeto físico não é inferido como uma única “coisa”; o elétron pode (“may”) ser uma coisa mas, para a Ciência, o que importa é que o grupo de eventos já é suficiente para se trabalhar. Além disso, o percebido nunca é uma coisa, mais sim um evento; o senso comum é grosseiro em dizer que se trata de uma coisa (Russell, [1927], p. 247). Seria fundamental, então, desenvolver-se uma interpretação da Física que pudesse dispensar a “substância permanente”, característica da coisa do senso comum e que é alvo de inúmeras controvérsias na Filosofia89. Essa

interpretação nos é interessante na medida em que se harmoniza às ideias de Schrödinger. Uma interpretação que passasse a enxergar os objetos da Física como grupos de eventos, sem substância, seria compatível com a concepção de schrödingeriana de puras configurações. A ideia fundamental dessa teoria de Russell é entender o mundo físico como povoado de eventos, arranjados em uma ordem, em geral em torno de um centro (Russell, [1927], p. 258). Essa seria a estruturação geral de como os eventos se situam e compõem arranjos. Podemos facilmente inferir os detalhes da descrição desse arranjo de boa parte do que já dissemos até aqui. Mesmo assim, por uma questão de clareza, seguiremos brevemente a explicação mais detalhada de Russell em “The Analysis of Matter”.

Russell constrói, como forma de situar esses eventos, um espaço com percebedores e objetos físicos, em que os percebidos têm

89Russell discute a questão da substância na Filosofia em [1927], Cap. XXIII.

localização dupla (Russell, [1927], p. 258). Ou seja, o percebido encontra-se tanto no percebedor quanto no objeto físico e, segundo Russell, o mundo físico, considerado como perceptível, consistiria nessas ocorrências (percebidos) com localização dupla. Relembrando que o percebedor equivaleria à visão do mundo “desde” um lugar e o objeto a visões “a partir de” diferentes lugares, em direção ao objeto. Além disso, não é parte da natureza dos eventos serem subjetivos ou objetivos, embora estes localizem-se nesses dois lugares.

A análise russelliana da matéria pretende evidenciar a estrutura do mundo físico. É como parte dessa estrutura que Russell define os “particulares”, situando-os como os termos últimos, dizendo que eles seriam os equivalentes lógicos da substância (Russell, [1927], p. 277). Aqui, Russell dá a entender que assume o uso lógico-matemático de estrutura; segundo ele: “para descrever uma estrutura, devemos fazê-lo por meio de termos e relações” (RUSSELL, [1927], p. 276). Ele se preocupa, nesse ponto, em descrever os termos dessa estrutura. Acreditamos que, em se tratando do mundo de objetos científicos, especialmente da Física, essa apropriação é harmoniosa com a interpretação de Schrödinger que fazemos aqui, apoiada na argumentação de uma maneira matemática de fazer filosofia, resquício da “Filosofia Matemática” de Russell.

Vale notar a mudança de terminologia adotada por Russell com relação ao texto de 1917 (“The Relation of Sense-data to Physiscs”); em “The Analysis of Matter”, ele troca a expressão “dados dos sentidos” por “percebidos” (“percepts”). Em 1959, ele explica essa mudança, relacionada à visão do sujeito como ficção criada; pretendendo renunciar ao sujeito como parte do mundo, ele precisa deixar de lado também os sense data (Russell, 1959, p. 135).

Nesse espaço idealizado por Russell, os eventos não só têm uma localização como estão arranjados de uma determinada forma – a maneira usual com que esses eventos se arranjam no mundo que compartilhamos. A maneira como eles se ligam, para Russell, dependeria de relações causais. Uma relação causal entre dois particulares (ou grupos deles) seria caracterizada por uma lei através da qual, a partir de informações sobre um deles, seria possível inferir algo sobre o outro (Russell, [1927], p. 368). Essas relações causais permitem que os eventos sejam ligados por meio de intervalos, espaciais ou temporais. Logo, tanto as ligações espaciais quanto as temporais

dependeriam de causa e efeito. Sendo assim, para se caracterizar o mundo como um certo número de eventos, deve-se levar em conta os eventos anteriores e posteriores, ligados a estes por meio de leis causais (Russell, [1927], p. 372).

Russell destaca que, para ele, os constituintes últimos da matéria da Física não são elétrons, prótons etc., mas sim os eventos (e em última instância os particulares) que constituem essas construções lógicas elaboradas (Russell, [1927], p. 386). Ele afirma, ainda, que seria ingênuo considerar que eles representassem, de fato, o que se supunha na época (Russell, [1927], p. 394). Ou seja, elétrons, prótons etc., em suma objetos da Física, seriam inferências, assim como a matéria em si. Além disso, os eventos são “percebidos”; percebemos eventos, não substâncias (Russell, [1927], p. 284). Os particulares seriam os termos que se usa para trabalhar com a estrutura em nível mais fundamental, mas os eventos são o que de fato embasa a inferência ao mundo físico.

A matéria, assim apresentada, teria que ser diferente da usual, a que se supõe substância, unidade e a permanência. Estas seriam concedidas à matéria e a muitos objetos físicos devido às conexões causais que os seus eventos formadores têm entre si. Russell descreve uma unidade de matéria como uma linha causal, ou seja, uma série de eventos conectados por leis causais intrínsecas (Russell, [1927], p. 401) – lembremos do Princípio das Linhas Causais mencionado na Seção 4.1.1. Apesar de receberem essas características, em última instância seus elementos fundamentais, os particulares, não as possuem.

Segundo ele, essa concepção de matéria estaria muito mais de acordo com as evoluções da Física, já que a concepção de matéria seria cada vez menos fundamental, sendo que a de energia toma mais importância (Russell, [1927], p. 345). Se a matéria da Física for vista como arranjo de eventos, a substância presente na antiga concepção, que incomodava cada vez mais os físicos, não seria mais um problema.

Resumindo o que Russell chamou de sua “concepção do mundo” em 1959, temos que os seus elementos básicos são os eventos, que ocupam uma certa porção do espaço-tempo e encontram-se intrincados com inúmeros outros eventos que ocupam a mesma porção. A Física, para ele, constrói sua representação abstrata através da Matemática. O elétron e o próton só são conhecidos por nós como entidades hipotéticas, que cumprem funções teóricas. Esse seria um mundo inferido. Porém, ele não é o único, pois também sabemos algo sem precisarmos de

inferências e nem perguntarmos aos cientistas, segundo ele. Esse algo são as sensações, que ele chama de dados. Logo, as entidades com que a Física Matemática lida não pertencem ao mesmo mundo que conhecemos sem inferências, composto de sensações. As entidades físicas são construções compostas de eventos. A matemática as toma como unas por uma questão de comodidade (Russell, 1959, p. 20-27).

Nessa explicação mais amadurecida de Russell, notamos que ele de fato assume que os antigos sense data seriam abstrações desnecessárias, passando a considerar como suficiente ter as sensações como dados (é uma construção a menos na sua teoria). Enquanto construções, porém, não vemos problemas em mantê-las cumprindo uma função teórica, desde que tenhamos claro que esses elementos não têm mais o mesmo sentido de unidades fundamentais de conhecimento que tinham antes, para Russell.

Capítulo 5

Análise russelliana da mente: em direção ao sujeito

“O argumento do carrasco era que não se podia cortar a cabeça de ninguém, se não havia um corpo de onde cortá-la;[...] O argumento do Rei era que tudo o que tinha uma cabeça podia ser decapitado, e que não deviam falar tolices” (CARROLL, [1865], p. 117)