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O espaço na Teoria da Percepção de Russell

Parte I: Comentários finais

3.3. O espaço na Teoria da Percepção de Russell

Até aqui, pudemos observar que Russell considerava que os sense data são constituintes do mundo físico; o que é mental são as sensações (no uso antigo do termo). Levando em conta que esses elementos podem ser dados para diferentes mentes, as quais se encontram em locais diferentes do espaço, teríamos uma multiplicidade de espaços, caso considerássemos que cada mente é responsável pela manutenção, por assim dizer, de um espaço. Essa multiplicidade não é característica da Física Clássica, embora Russell pretenda que sua teoria explique a matéria desse ponto de vista. É preciso, então, esclarecer as concepções de espaço usadas por Russell, a fim de completar a exposição de sua teoria, esclarecendo a caracterização e a função do espaço dentro dela.

Como costumava fazer com muitos conceitos, Russell revoluciona a concepção filosófica de espaço comumente aceita67:

“A concepção de espaço é tratada com muita frequência na Filosofia – mesmo por aqueles que, sob reflexão, não defenderiam tal tratamento – como se ela fosse tão dada, simples e não ambígua quanto Kant, em sua inocência psicológica, supôs.” (RUSSELL, 1917b, p. 153).

Vale lembrar que, em Kant, a concepção de espaço é Euclidiana; além disso, é considerada como uma intuição pura, ou seja, grosso modo, uma espécie de forma que carregamos já intuitivamente em nós68.

Russell não tinha nenhum problema em desrespeitar velhos e consagrados padrões na Filosofia, como sabemos; ele propõe, então, uma revisão dessas concepções, partindo da sua Teoria Causal da

66Essa noção adaptada de perspectiva será harmoniosa com a Teoria Causal da

Observação que apresentaremos no Capítulo 7; grosso modo, segundo essa teoria, pode-se ter uma observação a partir de uma fotografia, pois ela é ligada por uma cadeia causal ao objeto (ver Pessoa Jr., 2011).

67Uma exposição geral sobre as concepções de espaço e tempo na Filosofia e na

Física pode ser encontrada em Akhundov, [1982].

68Ver Kant, [1787], “Estética Transcendental”. Sobre concepção de espaço em

Percepção. Ou seja, ele vai buscar uma caracterização do espaço que permita manter as ideias defendidas nessa teoria sobre a constituição da matéria e a concepção de realidade dos objetos exteriores. Vamos acompanhar essa revisão.

Já mencionamos que a noção de espaço é importante desde o princípio da exposição da Teoria Causal da Percepção, em Russell, em virtude dos critérios de aglomeração de particulares. Aglomerados de acordo com proximidade espacial, os particulares darão origem às perspectivas; vamos entender melhor o porquê dessa configuração específica, iniciando a análise a partir do termo cotidiano “lugar”, repetido várias vezes por Russell, que nos ajudará a compreender a noção física de espaço. Quando se trata de um sense datum, esse termo pode ter dois significados: lugar “onde” aparece e lugar “de onde” aparece. Este último, o lugar de origem do sense datum, é diferente para cada observador. Cada um possui ao redor de si uma espécie de sistema de coordenadas, percebendo um sense datum específico em um determinado ponto desse sistema. Portanto, considerando todos os observadores em contato com aquele sense datum, um espaço múltiplo é criado, ou melhor, um espaço composto desses múltiplos sistemas de coordenadas. Por outro lado, chamaremos de lugar de “destino” aquele “onde” o sense datum aparece; ao invés do lugar de origem, ou “de onde” o sense datum apareceu, vamos considerar, nesse caso, “para onde” ele é direcionado. De fato, ele é direcionado para um espaço que seja um só para todos os observadores, o qual poderia ajudar a formar o Espaço da Física.

A fim de permitir que esse espaço não seja múltiplo, mas ao mesmo tempo conserve algo relativo aos sujeitos, ou seja, uma conexão com eles, embora não os contenha nem seja dependente deles, Russell vai definir um espaço em que cada mundo privado vai contar como uma unidade espacial. É o “Espaço das Perspectivas” (Russell, 1917b, p. 160). Vimos anteriormente duas definições de Russell para perspectivas, e mais uma adaptação de nossa parte. Quer tomemos a perspectiva como agrupamento de particulares simultâneos – ou conectados causalmente – a uma sensação (uso novo), quer como conjunto de eventos em um lugar físico, temos que esses agrupamentos serão representados por unidades espaciais no Espaço de Perspectivas. De qualquer forma, não há subjetividade injetada nesse espaço, uma vez que se aceita que perspectivas não contêm sensações.

Ao relacionarmos o Espaço das Perspectivas com cada espaço individual temos o Espaço da Física (Russell, 1917b, p. 161). O mundo físico teria, então, 6, e não 3 dimensões, pois tanto o Espaço das Perspectivas como os espaços individuais são tridimensionais. Russell explica, em 1917b, p. 161, que “se podem arranjar” as perspectivas de um objeto em 3 dimensões; ele dá o exemplo de uma moeda, tomando suas perspectivas circulares, lineares e elípticas69. Ainda segundo

Russell, o que se faz normalmente é correlacionar, inconscientemente, um espaço individual com o Espaço de Perspectivas, confundindo-se os dois; por isso, o Espaço da Física seria considerado tridimensional70.

Para exemplificar essa idealização de espaços, Russell faz uma analogia à concepção de espaço que, segundo ele, foi apresentada por Leibniz. Russell diz que Leibniz fala em dois tipos de espaço: um relativo a uma mônada (cada mônada teria um espaço correspondente) e outro espaço que reúne os pontos de vista de todas as mônadas. Evidentemente, trata-se de uma analogia apenas, pois Russell afirma categoricamente que discorda totalmente da teoria das mônadas enquanto unidades que não interagem. Mesmo assim, ele compara o espaço de cada mônada ao espaço das percepções individuais; também compara o espaço que reúne os pontos de vista das mônadas ao que ele entende pelo espaço da Física (Russell, 1959, p. 24-5).

Considerando essa noção russelliana de espaço, podemos dizer que um objeto físico estaria localizado em um espaço hexadimensional, resultante da relação entre o Espaço de Perspectivas e cada um dos espaços individuais que o compõem. Matematicamente o objeto, ou “coisa”, na linguagem de Russell, é uma classe de suas aparências nas diferentes perspectivas. Grosseiramente falando, em matemática uma classe é um conjunto de elementos, mas elementos de um tipo especial. Esse conjunto terá sempre um representante, que não é simplesmente um dos elementos, mas como que uma representação de todos eles. Por exemplo, a definição matemática de “vetor”: classe de segmentos equipolentes. Cada vetor é representante de uma classe em que os

69Nossa interpretação seria diferente, principalmente porque gostaríamos de

considerar perspectivas infinitas, harmonizando com a noção de infinitas expectativas de Schrödinger. Voltaremos a falar nesse problema no Capítulo 7, em que apresentaremos nossa definição do Espaço de Perspectivas.

70Para a discussão do problema do número de dimensões do Espaço da Física,

elementos compartilham as mesmas características, isto é, mesmo módulo, direção e sentido. Analogamente, o objeto também pode ser visto como uma classe, no caso, de aparências que têm certas propriedades em comum, pelo fato de pertencerem à mesma perspectiva71.

A noção de classe foi bem escolhida por Russell, a nosso ver, uma vez que permite conservar a intuição de que o objeto, ao mesmo tempo que deve ser considerado como único e não múltiplo, consiste, na verdade, em uma representação que pretende dar conta das suas aparências para cada uma das perspectivas, que podem ser infinitas, dependendo do objeto e de quais perspectivas estão envolvidas na fixação da sua representação. A “coisa” definida dessa forma permite que ela mude dependendo de uma mudança ocorrida em uma perspectiva, já que ela seria a classe das suas aparências nas diferentes perspectivas.

Gostaríamos de ressaltar dois aspectos dessa maneira como Russell concebe o objeto, devido à sua proximidade com a construção do objeto schrödingeriano: primeiro, o papel das perspectivas nessa construção e segundo, essa abertura a que a coisa estaria sujeita. Em Schrödinger, da mesma forma que em Russell, diferentes pontos de vista devem ser considerados para se ter uma visão completa do objeto. No entanto, esses diferentes pontos de vista, em Schrödinger, vêm das expectativas. Estas são intrinsecamente diferentes das perspectivas, mas cumprem a mesma função. Schrödinger propõe a construção do objeto a partir do olhar de um sujeito, o que faz com que precisemos reunir sempre as expectativas de outras pessoas às do sujeito em questão; em Russell, não existe essa diferença, pois ele não trata com sujeitos nessa etapa da teoria. O segundo ponto a que gostaríamos de nos referir é consequência do primeiro: a necessidade de incluir as expectativas de outras pessoas, sem número limite, gera a possibilidade de abertura ao infinito na própria constituição da coisa e do objeto schrödingerianos. O objeto não é fixo, pois sempre é possível considerar mudanças em certas expectativas, as quais o farão mudar; ou então, novas perspectivas podem ser acrescentadas, ou retiradas.

Como vimos, a descrição de Russell, ao eliminar o sujeito e considerar como ponto de partida simplesmente sensações, consegue afastar mais facilmente a acusação de solipsismo do âmago da

constituição do objeto, mas ainda não afasta completamente a subjetividade. Há momentos em que a conexão com um sujeito é necessária; esses momentos correspondem ao início da análise e ao fim da síntese. No fim da análise, porém, o objeto é desprovido de sensações. Do ponto de vista da construção dos objetos científicos, é possível aproximar essa ideia de nossa interpretação de Schrödinger. A teoria de Russell espelha perfeitamente a construção do objeto da Ciência que Schrödinger estava pretendendo investigar, essa mesma Ciência que se desenvolveu a partir do Princípio da Objetivação.

É interessante notar também a semelhança entre a construção do objeto russelliano e algumas concepções de Eddington. Para este, os objetos da Física, em especial do ponto de vista da relatividade, seriam a síntese de todos os aspectos presentes para todos os observadores concebíveis. O mundo da Física forneceria um ponto de vista de ninguém em particular, mas de todos de uma vez. Este seria um mundo absoluto, não relativo a cada perspectiva (noção que se parece com o Espaço da Física de Russell). Eddington defendia a importância de uma reconstrução epistemológica do mundo através de métodos matemáticos, o que também constitui parte da tarefa adotada por Russell. Na verdade, Russell se apoia nas concepções de Eddington sobre Física ao longo de “The Analysis of Matter”, e ele diz o porquê:

“Ele, mais do que Einstein e Weyl, expôs a teoria [da relatividade] da forma mais apta para os propósitos do filósofo. […] Para os propósitos filosóficos, […] eu me permiti ser guiado quase inteiramente por Eddington” (RUSSELL, [1927], p. 395-6).

Essa afirmação explica a proximidade de suas ideias quanto à formação do objeto físico, tendo em vista a influência que a física de Eddington exerceu na filosofia de Russell. Não faz parte do escopo deste trabalho comparar as filosofias da Ciência de Eddington e Russell, mas considerando a possibilidade de aproximação, de que já falamos neste trabalho, entre as ideias de Schrödinger e Eddington, é interessante notar esse paralelo, a fim de evidenciar ainda mais a possibilidade de comparação com Schrödinger72.