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No mundo que caracterizamos como objetivado, na nossa vida cotidiana, somos cercados de coisas, ou objetos, e de sujeitos, todos eles separados de nosso próprio sujeito e cada um deles com a sua individualidade. E para quê serve essa forma de ver o mundo? Já dissemos que ela viria da aplicação inconsciente do P.O. E teríamos sido levados a essa maneira de nos inserirmos no mundo porque ela facilita nossas ações nele. Parece importante considerarmos as coisas e os outros sujeitos como separadas de nós mesmos e umas das outras, pois assim nossas ações para com elas serão simplificadas, segundo a explicação encontrada por Schrödinger. Ele dá indicações que permitem conclusões nesse sentido em “Mind and Matter”, quando defende que retiramos o sujeito do mundo que desejamos analisar, e esse é o alto preço pago pela obtenção de um quadro razoavelmente satisfatório desse mundo (Schrödinger, [1956], p. 118). Além disso, ele afirma que temos que aceitar a distinção entre sujeito e objeto para referência prática, e também que o Princípio da Objetivação seria uma “simplificação que adotamos para dominar o problema infinitamente intricado da natureza.” (SCHRÖDINGER, [1956], p. 117). Podemos, assim, pegar um lápis sem esperar que ele reagirá como um sujeito, ou que ele passará a fazer parte de nós a partir do momento em que o tocamos. Essa atitude perante o mundo evita, até mesmo, por exemplo, que tenhamos a ideia de não fazer esforço algum para pegar um objeto, já que ele poderia ser visto como parte de nós devendo, por isso, obedecer às ordens de nosso cérebro, assim como acontece com nossos braços e pernas.

Com relação aos outros sujeitos, há uma identificação para conosco mesmos, a qual levaria à conclusão de que nossos corpos e nosso eu sensível estariam no mundo objetivo, bem como as outras esferas de consciência; segundo Schrödinger,

“tenho ótimos motivos para acreditar que esses outros corpos também estão vinculados ou são, por assim dizer, os assentos das esferas de consciência [...] não obstante, não tenho qualquer acesso subjetivo direto a qualquer delas. Portanto, estou inclinado a tomá-las como algo objetivo” (SCHRÖDINGER, [1956], p. 117).

Para Schrödinger, ao olharmos para os outros, não vemos diferenças quando os comparamos a nós mesmos, e por isso também nos colocaríamos nesse mundo objetivado. É por essa razão que ele se refere ao seu próprio braço, em certo momento (Schrödinger, [1954b], p. 94), como um objeto, o que estaria de acordo com essas conclusões. Podemos dizer que é nesse momento que localizamos nossos corpos no mundo objetivado, na qualidade de objetos; já nossas mentes seriam atributos de sujeitos.

Portanto, a nosso ver, parece que a objetivação não alcançaria o próprio sujeito. Ao mesmo tempo em que há a formação do mundo de objetos da vida cotidiana, há também a formação do sujeito. Trata-se da “subjetivação”, outro termo que estabelecemos aqui, e de que não trataremos em detalhes no momento, mas no Capítulo 7. Grosso modo, seria o processo de nos reconhecermos, como sujeitos, por meio do reconhecimento da ação. Poderíamos pensar na subjetivação como válida também para os outros sujeitos. Procuraremos, no entanto, uma solução mais intrincada, porém mais schrödingeriana, através do que chamaremos de “subjetificação”, a qual descreveremos na seção seguinte.

No mundo schrödingeriano não há nada além disso; nenhuma realidade escondida e encoberta que não possamos conhecer. Tornamos o mundo assim durante o processo de criação, que é ao mesmo tempo o de objetivação, e assim ele passa a ser. Schrödinger afirma que são os mesmos elementos que vão compor a mente e o mundo, para cada sujeito (Schrödinger, [1956], p. 127). A diferença, poderíamos dizer, estaria nas distinções que fazemos durante os processos de objetivação e subjetivação, ou de subjetificação.

2.2.1. Relação com os objetos

Podemos concluir, da seção anterior, que temos uma relação de afastamento para com os objetos, isto é, não os consideramos como

sendo derivados de nós ou como de alguma maneira nos completando, nem mesmo encontrando vestígios nossos nesses objetos. Pode-se dizer que isso gera uma relação de domínio, uma vez que somos capazes de agir e os objetos não o são. Tal relação é explicitada até mesmo na maneira schrödingeriana de construir o objeto, pois, segundo ele, esta envolve as expectativas do que poderíamos fazer com ele, de como podemos agir com relação a ele (Schrödinger, [1928], p. 119).

Pensando no caso do braço visto como objeto, o qual citamos acima, surgem algumas reflexões interessantes quanto à relação entre sujeitos e objetos. Nesse caso, trata-se de um objeto que ao mesmo tempo faz parte do sujeito. Diríamos que, nesse caso, Schrödinger “objetifica” o seu braço, da mesma forma que “subjetifica” os sujeitos, que antes faziam parte do mundo objetivado, se os virmos passando de objetos a sujeitos, por comparação a nós. Ou seja, o braço que poderia ser considerado como parte do sujeito é “objetificado” para fazer parte do mundo de objetos; este seria o grande problema encontrado por Schrödinger, cujas consequências poderiam ser evitadas, evitando-se essa objetificação. De fato, é essa objetificação que resulta na aceitação da dualidade corpo/mente e, consequentemente, mente/matéria. Além disso, o sujeito possuiria uma mente, nesse modelo de mundo dualista, mas seu corpo é um objeto. No entanto, no caso da subjetificação das outras esferas de consciência, o processo é necessário, a nosso ver, da mesma maneira que alguns processos a que Schrödinger se refere, como a própria objetivação, “para a vida prática”. É importante que atribuamos mentes e sujeitos aos meros corpos que vemos ao nosso redor, pois do contrário não conseguiremos viver satisfatoriamente em sociedade. Se continuamos a vê-los como objetos, temos situação parecida com a “objetificação”.

É interessante notar que pode haver subjetificação de animais, de objetos etc., permitindo incluir nessa realidade dividida entre sujeitos e objetos desde animais de estimação e brinquedos até personagens fictícios, como os animais de “Animal Farm”, de George Orwell, que recebem características de sujeitos e para com os quais os seres humanos se veem obrigados a agir como se o fossem, apesar do absurdo aparente da situação32.

2.2.2. Relação com os outros sujeitos

Já para com os outros sujeitos, após a subjetificação, não podemos dizer que temos uma relação de domínio, como temos para com os objetos. Há uma relação de igualdade no mundo schrödingeriano, que vem do fato de reconhecermos nesses sujeitos as mesmas características que nós mesmos também temos. Schrödinger não desenvolve o tema da relação dos sujeitos uns com os outros para além do que já mencionamos aqui. Mas podemos dizer que, nos casos em que a subjetificação não ocorre, essa relação de domínio é estabelecida, uma vez que os sujeitos encontram-se objetivados assim como outros objetos ao nosso redor. Poderíamos citar como exemplos a escravidão de seres humanos, ou até mesmo o caso, na língua inglesa, em que se usa o pronome “it”, o mesmo usado para coisas, para referir- se a animais e bebês. Certamente a subjetificação não chegaria a ocorrer, nesses casos.

Também pode haver casos de indivíduos que se desviam dessa maneira padronizada de organizar o mundo. Se lembrarmos do filme “O silêncio dos inocentes”, perceberemos que a personagem Buffalo Bill, um assassino psicopata, usa o pronome “it” quando se dirige às suas vítimas, desumanizando-as em um processo provavelmente inconsciente a fim de dar prosseguimento às atrocidades que comete.

Exceto em casos que fogem do padrão, podemos ressaltar que a comunicação é a característica principal da relação entre sujeitos, que não apareceria, normalmente, entre sujeitos e objetos. A relação de igualdade entre os sujeitos pode ser dita dependente dessa unicidade da realidade, iniciada com a formação de invariantes e consolidada através da comunicação, que a faz uma só e a mesma para todos os sujeitos que mantêm contato social (Schrödinger, [1954b], p. 146). Ben-Menahem explora o papel que Schrödinger atribuiria à linguagem na formação de uma realidade em comum, tomando como base o texto “What is real?”, do livro “My view of the world”. Ela lança a tese de que pode-se ver em Schrödinger, especialmente nesse texto, um apelo a um tipo de Filosofia da Linguagem segundo o qual a interação entre os falantes é que é primária, e não a relação entre a linguagem e o mundo, embora ele mesmo nunca o tenha reivindicado. Essa escolha, segundo ela, aproxima-se das ideias de autores como o segundo Wittgenstein e da tradição pragmatista (Ben-Menahem, 1992, p. 38).

Menahem afirma que Schrödinger, ao investigar como se dá a unicidade entre os vários mundos pessoais, enfatiza não a questão de como a correspondência entre os mundos se estabelece, mas de como se dá o conhecimento dessa correspondência. Ou seja, como cada um de nós “sabe” sobre a similaridade entre cada um dos mundos. É nesse momento que, para ela, esse se torna um problema de linguagem, cuja importância nas ideias de Schrödinger fica ainda mais evidente quando se percebe que:

“[...] mesmo as imagens do mundo que cada um de nós constrói devem mais ao que nós aprendemos através de comunicação oral e escrita com outros seres humanos do que às nossas percepções sensoriais pessoais [...]”. (BEN- MENAHEM, 1992, p. 37).

Menahem ressalta que, em Schrödinger, é a linguagem que estabelece o que é comum para diferentes pessoas; em suma, é a comunicação que constrói a noção de uma realidade una. Não é necessário que haja, primeiramente, acordo entre os mundos pessoais, para depois se estabelecer a comunicação, mas ao contrário, esta é primária, segundo ela.

Segundo a própria autora ressalta, esse modo de entender a linguagem está de acordo com as preocupações filosóficas básicas de Schrödinger. Podemos dizer, então, que o processo de objetivação ocorre juntamente com a aquisição da linguagem e das informações que vêm junto com ela. No mundo objetivado, a linguagem, sendo a comunicação entre os falantes vista como primária, continua sendo primordial nos momentos de choques/encontros de mundos, não só pessoais, mas também sociais. Especialmente na Ciência, a linguagem é fundamental e, segundo entendemos, assume várias formas, dentre elas a matemática, essencial na formação dos novos invariantes e dos novos objetos científicos.