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Parte I: Comentários finais

3.2. A construção russelliana do objeto científico: o caso da Física Falar da matéria como concepção física por volta de 1913, como

3.2.2. Os sensibilia russellianos

Afinal, para Russell, a Lua continua lá quando não estamos olhando para ela? Ou melhor dizendo, de forma mais adequada aos nossos propósitos nesse texto: será que nós acreditamos, pensamos, ou temos o conhecimento de que a Lua continua realmente lá quando não estamos mais olhando? O que nos parece coerente com as ideias de Russell é responder que essa é a inferência que fazemos. Além disso, acreditar que os objetos existem, mesmo quando não estamos tendo contato com eles, ideia elaborada a partir do senso comum, é a maneira pela qual temos objetivado o mundo. E por mais que isso possa ser, em parte, inconsciente, também é aprendido, como é fácil de notar quando observamos as reações de bebês que, em uma brincadeira por exemplo, se surpreendem a cada aparição de um objeto que estava escondido. No mundo objetivado, há objetos independentes do nosso contato62.

E não só no senso comum, mas também na Física, a ideia é a mesma. Essa ideia é necessária para o desenvolvimento da Ciência objetivada: se um cientista faz uma observação e em seguida deve adicionar o seu resultado a dados já obtidos, deve crer que continua existindo aquilo que ele observou antes. Esse foi um dos pontos de controvérsia no início do desenvolvimento da Física Quântica, o qual gerou as visões instrumentalistas dessa teoria, que pregavam que ela seria somente uma ferramenta, e não uma representação de algo existente63.

Com o intuito de lidar com esses elementos da realidade que são exteriores e independentes da mente, Russell define o conceito de sensibilia. Esses elementos teriam o mesmo status físico e metafísico que os sense data, com a diferença, no entanto, de não serem “dados” para nenhuma mente (Russell, 1917b, p. 148). Na época em que

62Vale notar que Russell trabalha com o par “senso comum”/“Ciência” em suas

investigações; a ele conectamos o par schrödingeriano cotidiano/científico. Logo, por vezes estenderemos ao mundo cotidiano algumas conclusões relativas ao senso comum conforme entendido por Russell.

63Sobre essa controvérsia e sobre visões instrumentalistas na Física Quântica,

estabeleceu esse conceito, em 1917, Russell ainda trabalhava com a noção de sense data. Vamos mantê-la, nesta seção, a fim de explicar o desenvolvimento dos conceitos nos textos dessa época. Os sensibilia passam a ser sense data quando entram em uma relação de familiaridade, “assim como um homem passa a ser um marido quando entra em uma relação de casamento” (RUSSELL, 1917b, p. 149). Portanto, à primeira vista, os sense data seriam importantes para a Epistemologia, mas não para a Metafísica, e nem para a Física, em virtude dessa familiaridade com uma mente, que contrasta com o caráter de impessoalidade que ambas possuem. Por outro lado, Russell defendeu, no artigo “The relation of sense-data to Physics”, que os sense data são físicos, ou seja, fazem, sim, parte da Física, e não são subjetivos. Em si, sense data são dependentes apenas de um corpo, que é algo exterior a uma mente. A experiência, ou a tomada de consciência desses sense data, é que seria algo mental. Ou seja, a percepção propriamente dita, que consiste em perceber um sistema inteiro de sense data, ocorre na mente. Já na análise que estamos fazendo, devemos considerar que os sense data são aqueles sensibilia que chegam a ter familiaridade com uma mente; essa é uma característica que os difere dos demais sensibilia, mas não os afasta da Física, que pode ocupar-se do que a Psicologia não pode, isto é, analisar cada um dos sense data separadamente. Portanto, a percepção segundo Russell pode ser vista de maneira gestaltista, conforme já mencionamos, mas a Física reserva-se ao direito de dividir o que é percebido em partes menores a fim de estudá-las.

Os sense data também podem ser considerados mentais, de acordo com alguma forma de análise da percepção. Mas o importante para Russell, nesse momento, é mostrar que são físicos, porque a familiaridade que têm com uma mente não os torna necessariamente mentais. Assim, ele afasta o idealismo radical da sua concepção da constituição dos objetos da Física, constatando que devemos lembrar que os elementos que os formam são exteriores à mente. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que esses elementos estarão em uma relação com uma mente, carregando portanto o peso dessa futura conexão com o mental. É importante lembrar que, na análise russelliana, os elementos resultantes, como os particulares e os sense data, trazem algo do todo inicial, pois não se pode perder de vista a reconstrução desse todo. Por isso, a conexão com o mental deve ser lembrada, já que

partimos de um todo que está inserido no mundo dualista entre mente e matéria. Esse subterfúgio permite que Russell mantenha uma posição intermediária entre materialismo e idealismo, com respeito aos objetos físicos.

Apesar de reconhecer esse caráter de duplicidade dos sense data, Russell, nessa época, discordava de James e dos filósofos que ele denominava “novos realistas” que, segundo ele, diziam que a diferença entre o físico e o mental seria apenas de arranjo (Russell, 1917b, p. 151). Mais tarde, ele muda de ideia, conforme já vimos, enquadrando a noção de não dualidade entre mente e matéria, ou entre mental e físico, na sua Teoria da Percepção, o que fica mais claro nas suas análises da mente e da matéria, as quais discutiremos mais adiante, em seções especiais. Ele afirma, nas linhas finais de “The Analysis of Matter”, que quanto ao mundo em geral, físico e mental, tudo o que sabemos sobre o seu caráter intrínseco é derivado do lado mental, e quase tudo o que sabemos sobre suas leis causais, do lado físico. No entanto, do ponto de vista da Filosofia, a distinção entre físico e mental é superficial e irreal (Russell, [1927], p. 402). Mais uma vez, podemos ver a sua posição como intermediária, também no que diz respeito à dualidade entre físico e mental. Parece que a conclusão de Russell é assumir que essa divisão, apesar de artificial, é metodológica. Ou seja, humanos e humanas acabaram fazendo essa separação como maneira de lidar mais eficientemente com o mundo que os cerca e com que estão em constante interação.

Um dos resultados que se seguem à aceitação dessa separação, mesmo que artificialmente estabelecida, é a existência (e independência, em uma abordagem materialista extrema), da realidade exterior. Na argumentação que seguimos nesta seção, Russell garante uma espécie de realismo externo para os objetos da Física, a partir da noção de que os elementos que formam os seus objetos são, além de sense data, sensibilia. Mas como podemos garantir que esses particulares exteriores à mente, os sensibilia, existem? Voltando ao comentário de Einstein, o que nos permite afirmar que a Lua ainda está lá, mesmo quando não estamos olhando para ela? O argumento usado por Russell para afirmar a possibilidade da existência de particulares que nunca foram dados, ou seja, não exatamente de objetos, mas de “algo” exterior e independente de mentes e sujeitos, é que não há impossibilidade lógica nisso; os sense data são particulares de que o sujeito é consciente, mas são

independentes dele, isto é, não fazem parte do sujeito e nem contêm o sujeito como parte. Logo, não haveria nenhum impedimento lógico na hipótese de haver sensibilia, isto é, de que muitos desses particulares possam não estar em relação com sujeitos. Segundo ele, ocorre uma confusão, que leva a se concluir a impossibilidade da existência de particulares exteriores. Essa confusão diz respeito ao uso do termo “sensações”; este seria por vezes confundido com sense data, segundo ele, mas deveria ser entendido de outra maneira. Vale lembrar que nessa época Russell ainda não havia adotado o monismo. Até então a “sensação” consistia, para ele, na consciência do sense datum, por parte do sujeito (1917b, p. 152). O sujeito faz parte da sensação e portanto, sensações são mentais. Logo, elas não fariam parte da Física; já os sense data seriam elementos externos, dos quais, através da sensação, o sujeito torna-se consciente, podendo figurar entre os constituintes dos objetos da Física.

A argumentação de Russell parece bem elaborada; no entanto, isso não o impediu de abandonar, mais tarde, o uso do termo sense data como fundamental. Como sense data são admitidos na Teoria da Percepção, seguimos sua argumentação até chegar aos sensibilia, que nos serão importantes.

Tomando como válida a argumentação de Russell, temos que a inferência à existência de particulares exteriores é legítima. O próprio Russell, apesar de defender que inferências devem ser substituídas por construções lógicas, sempre que possível, de acordo com o que ele chama de “filosofar científico” (Russell, 1917b, p. 154), admite que essa hipótese de trabalho, embora deva ser mantida em mente, nem sempre é possível de ser levada a cabo. Portanto, ele permite duas inferências necessárias para continuar elaborando a relação entre Física e sense data: os sense data de outras pessoas e os sensibilia. No caso daqueles, são necessários para não se chegar a uma Física de uma pessoa só. Se há sense data de outras pessoas, há necessariamente outras mentes, pois estes eram vistos por Russell como dados que tivessem relação com uma mente. No caso dos sensibilia, ele os utiliza, porém dizendo que o fará de forma ilustrativa, podendo ser retirados sem ônus na forma final da Filosofia da Física (Russell, 1917b, p. 158). Já se trata de outro passo, porém, inferir a existência dos objetos exteriores e independentes do contato com o sujeito, como a Lua para Einstein. Durante as sensações (uso antigo do termo), somos conscientes deles; por exemplo, enquanto

olho para a Lua, estou consciente dos sense data que me fazem inferir esse objeto, que repousa no céu, brilha aos meus olhos e se apresenta sob uma certa forma. Ao voltar as costas para a Lua, as sensações e a consciência do que percebo da Lua desaparecem. Mas reproduzo a Lua em minha mente nesses momentos, porque seria absurdo imaginar que ela desaparecesse a cada vez que eu lhe voltasse as costas e reaparecesse assim que meus olhos pousassem nela novamente. Nas palavras do próprio Russell:

“Não podemos crer que o Monte Everest cessa de existir quando ninguém o vê, ou que nosso quarto desaparece de repente quando saímos dele. Não temos nenhuma razão para crer nesses absurdos. Os princípios que nos conduzem a reproduzi-los [o Monte Everest, nosso quarto] são essencialmente os mesmos que os que nos conduzem a crer que coisas nos aconteceram de que nos esquecemos.” (RUSSELL, 1959, p. 196). Os princípios que nos fariam completar essas lacunas sem sensações estão relacionados, em Russell, às linhas causais; estas nos fazem inferir coisas com existência permanente no tempo. Mesmo que não tenhamos memórias de um evento, traçamos linhas causais que conectam um evento anterior e outro posterior, e fazemos o mesmo com relação a objetos que deixamos de ver; conectamos uma memória ou sensação anterior a uma outra, completando os espaços vazios, o que nos faz acreditar que esses objetos existem, mesmo nesses momentos. Schrödinger também defende noção parecida; segundo ele, preenchemos lacunas que faltam a partir dos invariantes que temos, a respeito de objetos cotidianos (Schrödinger, [1954b], p. 147)64. Poderíamos dizer

que ele aceitaria a mesma argumentação de Russell com respeito à continuidade dos objetos, portanto.

Russell chega a afirmar que são essas linhas causais que tornam úteis as noções de “coisa” do senso comum e de “matéria” da Física (Russell, 1959, p. 198). Trata-se de uma linha de eventos em que, dado um deles, podemos inferir tudo sobre um anterior ou um posterior, conforme representamos na figura abaixo. Sendo E correspondente a uma série de eventos, temos:

Figura 4: linha causal

É a partir dessa linha de eventos que deduzimos a permanência dos objetos, por exemplo. Além disso, para Russell, as noções de coisa cotidiana ou de matéria física não são úteis sem esse tipo de inferência. Podemos dizer que a simples reunião dos particulares, ou dos sense data, em objetos não é suficiente para explicar como lidamos com esses elementos; temos que lidar com eles mesmo que as sensações cessem, e uma noção fragmentada de objeto não é útil em nenhum dos casos. O ponto final da argumentação de Russell é, portanto, este: a hipótese da existência dos sensibilia é logicamente possível, e além disso, existe uma linha causal capaz de fazê-la útil, senão fundamental, à própria noção de objeto, tanto cotidiano quanto científico. Logo, é razoável aceitá-la.

É interessante notar que os sensibilia, bem como os objetos independentes da mente do sujeito, têm também sua existência autorizada nos casos em que o percebedor, ausente, espera detectá-los. Para Russell, aquilo que se produz nos lugares em que não há ninguém também deve ser considerado como aparência. Assim ele concluiu no texto de 1959, em que cita o exemplo das fotografias, que detectam objetos mesmo quando não há nenhum sujeito em contato com eles (Russell, 1959, p. 106-7). A argumentação tardia de Russell modifica um pouco a sua noção de perspectiva, com relação ao que vimos até aqui. No entanto, essas modificações fortalecem um outro ponto, mais importante para ele, que é a desconexão entre as perspectivas e os sujeitos.

Com essa mudança, Russell passa a considerar “perspectiva” como um “conjunto de eventos em um lugar físico”. Relembrando, Russell definiu antes as perspectivas como aglomerados de particulares simultâneos a uma dada sensação. Na nova definição, a sensação não é mais necessária; isto é, pode-se ter também perspectivas formadas de particulares que não têm conexão nenhuma com uma sensação (já no novo sentido). Tal mudança alarga também a noção de percepção, pois esse processo pode também ocorrer com instrumentos. Russell afirma que as perspectivas, assim concebidas, equivaleriam à soma das minhas percepções, por exemplo, em um dado momento, ou às de alguma outra

pessoa, ou às de um instrumento (Russell, 1959, p. 106-7), o que permite que ele fale em perspectivas sem necessariamente incluir a sensação. Podemos dizer que ele consideraria como perspectivas, a partir desse raciocínio, as aparências resultantes de observações indiretas. Conforme comentaremos no Capítulo 8, as observações indiretas são importantes fontes de informação na Física, daí a relevância de poder incluí-las na Teoria Causal da Percepção.

Assim, é possível haver biografias de perspectivas que não equivalem a sujeitos. Ele afirma que “... o sujeito, ao que tudo indica, é uma ficção lógica, da mesma forma que os pontos ou os instantes matemáticos” (RUSSELL, [1921], p. 103). Essa argumentação permite a definição de perspectivas para robôs, por exemplo. Se não chegássemos a desenvolver a ficção do sujeito, em nada nos diferenciaríamos deles, enquanto perspectivas.

Fazer essa pequena adaptação no conceito de perspectiva não traz ônus à teoria de Russell. No entanto, acreditamos haver uma alternativa em que essa mudança não é necessária, produzindo o mesmo efeito desejado por ele, ou seja, o de permitir que as perspectivas sejam tão independentes dos sujeitos a ponto de poderem ser formadas a partir de instrumentos, somente.

Mantendo a primeira definição de perspectiva de Russell, temos que ela é formada de particulares simultâneos a uma sensação. Mais tarde, Russell decide abolir a necessidade da presença da sensação na formação da perspectiva. Esta passa a ser, simplesmente, uma coleção de eventos em um lugar físico, o que permite que uma câmera fotográfica tenha um aglomerado de percepções, equivalente à sua perspectiva, por exemplo. Essa conclusão é corroborada pela afirmação de Russell de que a placa fotográfica, em certo sentido, percebe os objetos, mas que estaríamos acostumados a usar o termo “perceber” apenas quando o instrumento em questão é um cérebro65. Se, ao invés de

abolir as sensações por completo, apenas adiarmos a sua entrada no processo, ainda podemos continuar considerando que a perspectiva, ou uma pré-perspectiva, se formou sem conexão com essa sensação. Isto é, pretendemos deslocar a simultaneidade da sensação, nesse caso.

Postar uma câmera para tirar fotografias, em um lugar em que não haverá percebedores, durante um certo tempo, exige o pressuposto da existência de um mundo exterior e independente, ou visa a testar essa

pressuposição. Um sujeito colocou a câmera em certo lugar, e espera que esta passe por um processo parecido com o que ocorreria se ele mesmo estivesse ali; além disso, espera poder ter certas “sensações secundárias” ao ver as fotografias que forem tiradas. Portanto, os sensibilia aí detectados pela câmera fotográfica são, potencialmente, geradores de sense data. Assim, continua existindo um certo grau de conexão com um sujeito, embora não igual ao que se tem quando a sensação é simultânea. Se não abrirmos mão de atrelar perspectivas a sensações, podemos continuar, mesmo assim, explicando, a detecção fotográfica como meio de obter dados sobre o mundo exterior. Podemos ainda manter a percepção como um processo em algum momento vinculado a sujeitos, pois não precisamos chamar de percepção o que ocorre com a câmera, mas somente com o sujeito que vai, mais tarde, verificá-la. Essa alternativa nos parece adequada, uma vez que a detecção só é útil, segundo entendemos, quando um sujeito tem a intenção de checá-la. Não haveria sentido (certamente não científico, embora pudesse haver sentido artístico) em postar uma câmera em algum lugar sem que ninguém nunca visse as fotos que ela está tirando. Além disso, não vemos problema em que a perspectiva seja de algum modo conectada à sensação, pois não existe obrigatoriedade de que esta participe da constituição daquela. Haver uma sensação simultânea, ou posterior, é somente uma condição para que haja uma perspectiva. Uma nova figura para ilustrar a situação seria a seguinte:

Figura 5: Composição alternativa de uma perspectiva

Assim, uma nova definição de perspectiva seria: “aglomerados de particulares simultâneos a uma sensação ou anteriores a uma sensação secundária”; sendo “sensação secundária” definida como “sensação não obtida diretamente do objeto, mas com algum intermediário e um lapso

de tempo com relação à captação de sensibilia”. Logo, uma máquina não teria percepção, mas “captação de sensibilia”66.