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Individualidade e identidade 1 Na vida cotidiana

Diante dessa descrição do mundo objetivado, uma das questões pertinentes é analisar como aparecem as qualidades da identidade e da individualidade dos objetos e dos sujeitos. Podemos dizer que as coisas schrödingerianas da vida cotidiana possuem individualidade, que é uma das consequências imediatas da objetivação. Quando organizamos o mundo em objetos, estabelecemos, nesse processo, que eles são individualizados, isto é, separados uns dos outros e de nós. Temos então uma organização em que todos os sujeitos e todos os objetos são individualizados segundo algum critério, o qual é estabelecido internamente aos mesmos grupos sociais que determinam um certo recorte da realidade.

Tomando a individualidade como primária, isto é, consequência direta da objetivação, podemos investigar a questão da identidade desses objetos e sujeitos. Para isso, é preciso pensar o que seria a identidade, para Schrödinger. Segundo ele, não é a matéria, ou seja, o conteúdo material de um objeto, que lhe dá identidade, mas a sua forma, mencionando que essa forma seria melhor expressa pelo termo alemão Gestalt (Schrödinger, [1951], p. 123). Ele não menciona explicitamente nenhuma relação com a Psicologia da Gestalt, ou seus usos na Filosofia,

35Não entendemos aqui esse termo em seu significado lógico, mas também não

significando algo de menor importância ou qualidade inferior, mas somente como tendo sido criados já a partir de outros.

mas é possível ver proximidade entre sua maneira de entender esse termo e essas abordagens. O termo por vezes é compreendido no sentido de que as impressões primárias dos objetos não são impressões sensoriais desordenadas, mas sim “formas e configurações totais”, conforme entendia outro físico contemporâneo de Schrödinger, Max Born36. Para Schrödinger, no entanto, parece que o termo designa um

pouco mais que somente uma maneira de ver uma configuração total. Faria parte do contexto dessa forma, ou Gestalt, vista de maneira ampla, tudo o que o objeto representa para nós. O caso do peso de papéis que Schrödinger herdara de seu pai é um bom exemplo. Schrödinger afirma que o peso para papéis em forma de cão Dinamarquês continuaria sendo o mesmo para ele, ainda que sua composição material mudasse subitamente (Schrödinger, [1951], pp. 124-125). O que tornava aquele objeto o mesmo no tempo e o mesmo quando movido no espaço era a sua relação com ele, que é decorrente da sua forma. De fato, esse é um exemplo familiar a todos nós; sabemos que os objetos que nos pertencem são os mesmos, em meio a outros, pois os identificamos através de certas marcas. E mesmo que não possamos, racionalmente, identificar essas marcas, em muitos casos simplesmente sabemos, por intuição, que se trata daquele objeto que nos pertence. Essa intuição poderia ser explicada por uma série de processos inconscientes, os quais têm lugar enquanto olhamos para os objetos, ou temos contato com eles através de outros sentidos, por exemplo, o tato.

Podemos retirar da ficção científica um exemplo que nos parece adequado para reforçar a importância da “forma” para o estabelecimento da identidade. Trata-se do caso do teletransporte. Suponhamos que estivéssemos inseridos na realidade de Star Trek, e nos perguntamos se o Sr. Spock é “o mesmo” depois que passa pelo teletransporte. De acordo com Darling (2005), a ideia envolvida no funcionamento do “teleporter” de Star Trek seria, primeiro, transformar a matéria em energia, para em seguida transmiti-la, ou irradiá-la para um local pré-definido, juntamente com instruções de como rearranjá-la (Darling, 2005, p. 11)37.

Considerando essa maneira de teletransportar, a identidade do Sr. Spock seria mantida, estando ou não associada à sua matéria. Ela poderia ser dita contida no conjunto de instruções, enviado juntamente com a

36Em Murr, 2013, p. 13, discutimos um pouco mais sobre a conexão que Born

faz com a Gestalt, bem como trazemos discussões de outros autores sobre o tema.

energia transmitida. No entanto, as pesquisas científicas sobre teletransporte apontam cada vez mais para outra solução: o rearranjar da matéria nos dois locais. O que se transporta não é matéria, nesse caso, mas sim informação; de alguma maneira se rearranja a matéria de modo a tomar aquela forma. Segundo Darling, o teletransporte quântico, já realizável, se baseia em um raciocínio desse tipo, isto é, na transmissão de informação. O autor, no prefácio de seu livro “Teleportation: the impossible leap”, descreve um cenário de ficção científica em que, no futuro, o teletransporte de pessoas é possível, usando esse mesmo princípio. Em sua história, o teletransporte acaba causando controvérsias quanto à manutenção da identidade e mesmo da alma e da vida dos indivíduos que se submetem a ele. Ainda segundo Darling, essa mesma ideia foi usada por outros autores em histórias de ficção científica antes de Star Trek (Darling, 2005, pp. 3-8).

Imaginando que o teletransporte em Star Trek ocorra dessa maneira e ainda seguindo a ideia schrödingeriana de identidade, podemos afirmar que o Sr. Spock, ou qualquer outro indivíduo, é o mesmo antes e depois do teletransporte. O que define a sua identidade é a forma, incluindo nossa relação com ele, o que ele representa para nós, e, por que não dizer, para ele mesmo; o próprio sujeito pode ainda se identificar como o mesmo depois do processo. Nesse contexto, a informação transmitida rearranjaria os átomos segundo a forma pré- definida e tanto o sujeito quanto os outros que têm contato com ele reconhecem que ele é o mesmo. Em se tratando de objetos, só podemos tomar a decisão sobre a sua identidade com base em nossas expectativas com relação a eles. Ou seja, no caso do teletransporte de objetos, só podemos afirmar que o objeto que retorna é “o mesmo” porque ele cumpre nossas expectativas, com respeito à sua forma, e isso nos basta. Pode ser que em muitos casos de objetos com a mesma forma (ou até sujeitos, como irmãos gêmeos), nossa intuição nos engane e não sejamos capazes de fazer corretamente a identificação. É por isso que não é suficiente levar em consideração só a forma, ou a Gestalt em um sentido restrito, na identificação, mas também a relação com o objeto, a nosso ver. Todas as canetas BIC são iguais, apesar de individualizadas, e

37“Transmitir” e “irradiar” são traduções possíveis de “beam”, como na frase

famosa de Kirk em Star Trek: “Beam me up, Scotty!”. A tradução nos episódios dublados em português é “leve-me para cima, Scotty”, mas poderia ser traduzida como “me transmita para cima”.

por isso muitas vezes podemos tomar uma caneta que não é a nossa pela que seja, trocar duas bolsas iguais, malas de viagem, garrafas d'água etc. A identidade depende muito do que nossas expectativas; muitas vezes, fazemos trocas sem dar-nos conta, trocas que podem permanecer para sempre incógnitas. Para termos certeza de uma substituição, é preciso que uma outra pessoa nos advirta de que aquele objeto não é o mesmo de antes; mesmo assim, pode ser que ainda restem dúvidas.

A identidade parece ser, portanto, um conceito socialmente estabelecido. Nada possui identidade em si, ou melhor, como consequência da objetivação, na sua própria natureza de objeto; as coisas possuem, sim, individualidade, mas a identidade depende de uma relação para com um ou mais sujeitos. A identidade das coisas cotidianas é relativa. Um aspecto interessante a ser ressaltado é que, após estabelecida a identidade, a individualidade está subentendida. Quando um objeto tem identidade, ele necessariamente tem individualidade. Mas não podemos dizer que o contrário aconteça: quando um objeto tem individualidade, isto é, pode ser discernido como um objeto independente, tendemos a lhe dar identidade, mas é preciso atenção, pois esta depende de nossa relação com o objeto. Depende de sermos capazes de identificar esse objeto. Caso contrário, restará apenas o trabalho inconsciente da objetivação, que resulta em individualidade.

Há também casos em que objetos que supostamente têm identidades diferentes são, na verdade, um só, não possuindo individualidade. Por exemplo, no famoso caso da “estrela da manhã” e da “estrela da tarde”. Na antiguidade, pensava-se que se tratavam de duas estrelas diferentes; hoje, sabe-se que se trata do planeta Vênus, que aparece mais brilhante no céu nesses dois momentos38. Além disso,

pode-se considerar também que um mesmo objeto, independentemente de sua individualidade, venha a ter duas identificações diferentes, dependendo da perspectiva. No caso dos objetos cotidianos, são facilmente identificáveis os exemplos de mudança de grupo social: uma vaca é um simples animal para a maioria dos ocidentais, enquanto para os outras culturas trata-se de uma divindade. Finalmente, na Ciência, temos o caso dos objetos vistos de maneiras diferentes pelas diferentes disciplinas.

38O caso foi usado por Frege para exemplificar a diferença entre se dizer que

Desse modo, podemos concluir que a identidade é estabelecida quando da formação de invariantes. Pode-se dizer que, em uma etapa mais básica do processo de construção da realidade, os objetos seriam individualizados. Sendo assim, a individualidade pode ser considerada como um tipo de invariante, que chamaremos aqui de “primário”. Da mesma forma que na subjetificação, também é preciso um processo um pouco mais complexo e longo para a identificação. É preciso prestar atenção às relações que ocorrem, para além da individualização, que é um invariante primário, para que o sujeito se aperceba de uma segunda característica do objeto: além de ser separado de mim e individual, ele é “tal” objeto, por exemplo, uma garrafa, uma caneta ou um certo sujeito. Se dissermos que, no último caso, esse sujeito é “o físico Stephen Hawking”, há duas diferenças para os primeiros casos: a identificação é definida (uso do artigo definido), além de se tratar de um sujeito. No entanto, podemos ter identificações definidas de objetos, como “a caneta que ganhei como presente de formatura”, ou simplesmente “a caneta vermelha”, que saberemos identificar dependendo do contexto39.

A identidade depende bastante desses contextos, ou seja, seu estabelecimento é radicalmente dependente do grupo social em que estamos inseridos. Mais que isso, depende de nossas relações próximas com os objetos, isto é, de nossa realidade imediatamente próxima, enquanto que a individualidade dependeria somente da realidade que nos rodeia em um sentido mais geral, e que compartilhamos mesmo com grupos distantes. Em uma etapa primária, podemos dizer que objetificamos (isto é, separamos o mundo de nós) e individualizamos (ou seja, separamos os objetos uns dos outros). Em uma segunda etapa, subjetificamos alguns objetos e também passamos a identificar, conforme a necessidade. Há vários níveis de familiaridade que estabelecem subgrupos de identificação. Por exemplo, entre familiares, amigos, parentes, colegas de escola, habitantes de uma cidade, de um país etc. também haveria os dois tipos de identificação, uma primária, indefinida (este objeto é “ uma garrafa”), e outra definida (esta é “a garrafa que eu trouxe de Paris”). Em geral, o problema da identidade na Filosofia, especialmente da Ciência, é tratado somente considerando-se

39A Teoria das Descrições de Russell ([1920], Capítulo 16) poderia ser usada

para refinar essa descrição; não o faremos aqui por uma questão de recorte, já que nosso intuito é comentar o problema da identidade a fim de discutir as relações no mundo objetivado.

a identificação definida; não se discute se e como um elétron vem a ser um elétron, mas sim se é “o mesmo” elétron de uma determinada situação. Logo, podemos dizer que um elétron, mesmo que não consigamos identificá-lo definidamente em certa situação, já possui um tipo de identidade indefinida quando da formação do seu invariante como “elétron”, ou seja, da construção do objeto científico “elétron”. Vamos continuar essa discussão na próxima seção, em que trataremos do problema da identidade na Ciência.

2.4.2. Na Ciência

Os casos da identidade e da individualidade na Ciência, especialmente na Física, tornam-se um pouco diferentes do que na vida cotidiana, visto que a criação dos objetos de segunda ordem dessa esfera de realidade envolve a manifestação consciente da formação de invariantes. O cientista está consciente tanto da individualização dos objetos quanto da identidade, podendo manipular esses conceitos de maneira diferente. A identidade, por exemplo, pode ser estabelecida segundo outros critérios. O próprio Schrödinger não parece empregar a mesma definição de identidade no caso da vida cotidiana e da Ciência; ele chega a questionar se um ponto material, ou ponto de massa (“mass point”), é o mesmo de uma medição à outra (Schrödinger, [1949], p. 105-7)40. O que garantiria a sua identidade? É a pergunta que ele faz e

cuja resposta não pode ser encontrada de forma direta em seus textos. De fato, se analisarmos mais detidamente a questão, perceberemos que os objetos da Física podem ter ou não individualidade, e também podem ter ou não identidade. Os objetos criados pela Física podem ser vistos como indivíduos e ao mesmo tempo ser idênticos; ser “o mesmo”, apesar do seu número ser discernível, como dois objetos, por exemplo. Apesar de haver dois, não há como distingui-los um do outro, isto é, nunca sabemos se é um ou o outro que estamos observando. Claro que isso não faz com que tenhamos que olhar todos os objetos criados pela Física como tendo potencialmente essa capacidade. Em certos domínios, continua sendo adequado, inclusive com relação aos experimentos, que os objetos sejam considerados indivíduos e também tenham identidade, constante no tempo e no espaço41.

Até mesmo a individualidade, que poderia ser considerada um invariante em se tratando de objetos da vida cotidiana, pode ser manipulada na Ciência. Podemos tomar vários objetos como sendo considerados como partes de um outro objeto que será, por sua vez, um indivíduo; então, não poderemos mais identificar os primeiros como objetos individuais. Nesse caso, eles também não podem ter identidade, já que a identidade pode, se for o caso, ser atribuída ao objeto que se está considerando como individual.

Podemos pensar no exemplo da Biologia, em que espécies podem ser vistas como indivíduos e também como tendo identidade; as mudanças que ocorrem em nível dos indivíduos de uma espécie não a transformam em outra. O que o faz, no entanto, é a identificação do cientista. Logo, assim como na vida cotidiana, a identidade também depende da identificação, enquanto relação que o sujeito estabelece quando da formação de invariantes, ocorrendo, no caso da Ciência, conscientemente. Além disso, há mais duas diferenças para com o cotidiano. Em primeiro lugar, se pode fazer o mesmo com relação à individualidade. Em certo momento, em certo experimento, é possível considerar certos objetos como possuindo individualidade e em outro momento, ou para outro propósito, não. Em segundo lugar, a identidade não dependeria da relação com o sujeito no sentido de uma relação pessoal, ou seja, pode-se tomar um sujeito epistemológico para tal. Além disso, a forma parece ter também outra caracterização a fim de condizer com seu entendimento na Ciência. A configuração do objeto científico é para Schrödinger “pura forma”, conforme já vimos, sendo sua formação diferente, embora o objetivo seja uma convergência para esse tipo de forma também nos objetos cotidianos. Sendo assim, em virtude dessa peculiaridade de formação, a relação dos cientistas para com esses objetos também difere, bem como o próprio processo de identificação.

A identificação, na Ciência, pode se dar de duas maneiras, ao menos: primeiro, arbitrariamente; o cientista escolhe como identificar (e mesmo individualizar) os objetos, conscientemente e claro, levando em conta o vínculo com os objetos da vida cotidiana, como já

41Uma referência sobre o tema da identidade na Física é French & Krause

(2006), a Seção 3.6 fala sobre identidade em Schrödinger. Becker & Krause, 2006, aborda também a identidade em Schrödinger, fazendo paralelos com a filosofia de David Hume, especialmente com respeito ao “hábito” de identificar os objetos.

mencionamos. Ou, uma segunda maneira, observando a manutenção de efeitos que identifiquem o objeto como o mesmo.

O tema da identidade na Ciência é complexo, rico e controverso. O recorte desta tese não permite que discutamos o tema muito além do que dissemos até aqui. Por ora, as discussões que fizemos são mais que suficientes, estabelecendo, mesmo superficialmente, as bases de uma abordagem schrödingeriana do tema. Vamos voltar a falar de identidade nos Capítulos 6 e 7, pois ela é uma das relações fundamentais em nossa interpretação do mundo objetivado.