SUMÁRIO
FIGURA 117 – BANKSY,
em excessivos formatos, que caracterizaram os metrôs novaiorquinos da década de oitenta
(período de intensa expansão – e de especialização
técnica – do ofício de grafitar); e que, vez ou outra,
ainda se vêem em qualquer metrópole, teimosas, algo
antiquadas, tão sobrecarregadas de cores quanto
sobrecarregadas da datação daquela década para o
olhar mais afiado.
Tampouco era incomum encontrar na Pedra
Lascada traços rápidos e finos, desenhos
desordenados em várias camadas realizadas em épocas diversas, sobrepostos e/ou
repetidos – como não é incomum encontrá-los nos nossos atuais muros, muitas vezes tendo
por base o hedonismo de cores e formas, o reconhecimento grupal e territorial e a
demonstração de virtuosismo técnico.
De lá para cá, a expressão mural manifestou-se e manifesta-se em todos e em cada
momento da história, atravessou o tempo de todas as comunidades, dos grupos nômades
às megacidades, do que não há melhor exemplo que as inscrições na anterior promissora
polis e posterior sítio arqueológico de Pompéia, que desde então e até hoje vão se sobrepondo e se somando – ou se completando – contínuas e contíguas ao passar do
tempo; mas para aqui construir a história e circunscrever o campo, basta a junção dos dois
fechos mais distantes que remata a circularidade em que “a modernidade cita sempre a pré-
história. Isso ocorre graças à ambigüidade própria às produções e às relações sociais dessa
época. A ambigüidade é a manifestação figurada da dialética, a lei da dialética detida”.216
Esse lençol subterrâneo – que religa, por dentro e por baixo, as civilizações e épocas, por mais afastadas que estejam umas das outras – torna-nos, em certo sentido, contemporâneos de todas as imagens inventadas por um mortal, pois cada uma delas escapa, misteriosamente, de seu espaço e tempo. Há uma ‘história da arte’, mas ‘a arte’ em nós não tem história. A imagem fabricada é datada em sua fabricação; também o é em sua
216
BENJAMIN, 2007, p.43.
recepção. O que é intemporal é a faculdade que ela tem de ser percebida como expressiva até mesmo por aqueles que não têm seu código. Uma imagem do passado jamais estará ultrapassada porque a morte é o nosso limite inultrapassável e porque o inconsciente religioso não tem idade. É, portanto, em razão de seu arcaísmo que uma imagem pode permanecer moderna.217
O exercício relacional entre as extremidades rupestre e urbana serve de inventário
às expressões continuadas entre elas, ainda que conforme a adequação dos tempos – e
que demonstram uma raiz perene, de condição humana. Como ancestralmente, a
consciência da finitude – o ser humano é, por
sua avaliação, das espécies a única ciente da
própria mortalidade. Como ancestralmente, a
pulsão é a do retrato da época, do comentário;
o impulso é o de estancar e cicatrizar o tempo,
deixar o vestígio, o resíduo, a marca, a
impressão, o registro no espaço circundante,
não só o qual toda espécie freqüenta, mas que
o próprio criador também freqüenta, feito lembrar ao outro – e a si mesmo – da própria
existência, da própria condição. Banksy e seus pares procuram, cada qual a seu modo,
fotografar polaróides urbanas, imediatas, da situação de nosso mundo, da nossa situação,
e, ato contínuo, professam intelecto e professam política – profissões de fé.
A nossa vida urbana incorpora muito mais semelhanças que diferenças: em qualquer
direção, espelha-se o cotidiano de uma grande cidade, que se serve das mesmas infra-
estruturas e que se cerca dos mesmos espaços públicos profusos de consumo, copiosos da
anarquia publicitária e da insurgência das pichações. Chega-se a encontrar a mesma exata
propaganda, do mesmo exato produto, aqui ou acolá. A publicidade superou imune sua
crítica, fez-se onipresente, fez-se benfazeja, fez-se aceita.
217
DEBRAY, 1993, p. 40-41.
Ora, nesse meio tempo as coisas encostaram à queima-roupa na sociedade humana. [...] O olhar essencial de hoje, o olhar mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se publicidade. Ela desmantela o espaço da contemplação desinteressada confrontando-nos perigosamente com as coisas, assim como, na tela de cinema, um automóvel, agigantando-se, avança vibrando para cima de nós. [...] O que é que, em última instância, torna a publicidade tão superior à crítica? Não é o que diz o luminoso vermelho, é a poça de fogo que o espelha no asfalto.218
É o pacto, tácito, consuetudinário. Foi antes a feira. Depois, a escalada da feira. É a
articulação das ruas, é a procuração do convívio por superioridades pretensas, e a conexão
do convívio por igualdades tensas. Apologias partícipes. É o massivo das massas. É
sobremaneira o idioma das cidades, a diretiva da atenção:
imagens de apelo imediato, por simpatia e por
reconhecimento; legendas bravas e breves, como devem ser.
Escritas performáticas, de tratos e polissemias para alcance
plural, ou de cifras e catacreses para alcance tribal. Gênese
comum aos muros publicitários e aos muros grafiteiros –
representatividade e reprodutibilidade. Publicação. Arrogar-se
aos muros o direito, tomá-los para a nota, para o aviso:
Banksy é um renovado situacionista.
Habilidades da cultura urbana, práticas de identidade, cortejos contemporâneos:
compreensão de si – e de todos – como análogos em direito e aptidão à voz. Dessa cepa da
muito variada arte citadina e cidadã, os requisitos panfletários, anunciantes. Cartazista.
Afixações despidas da subliminar intenção-cifrão, do coercivo propagandista, despidas do
utilitarismo comercial, mas proveitosas do arquétipo, contestando pela semelhança então
contestando pela contradição; incorporando os mesmos princípios, os mesmos métodos, as
mesmas convenções: o proclame, o reclame, a divulgação reprodutível, a transmissão
intensiva e extensiva de uma idéia única – um produto, um evento, uma oferta, uma
exigência, um requerimento, uma convocação, um agradecimento, uma homenagem, um
218
BENJAMIN apud BOLLE, 1999, p. 143.