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FIGURA 154 – BANKSY,

No documento Onde Está Banksy? (páginas 181-186)

SUMÁRIO

FIGURA 154 – BANKSY,

sobreposição espetacular da celebração religiosa ao consumo, artifício draconiano em

sujeição pública. O espaço dessas mostras serve satisfatoriamente como ponto de encontro

contracultural e troca de idéias sobre grafite e, sobretudo, sobre a liga inelutável entre

celebração e consumo – soberanamente consumada na mais consumista temporada do

ano, por tal consumida em sua representatividade.

Dupla funcionalidade: numa face, dar a conhecer a produção recente e política do

grupo grafiteiro europeu bem onde a coletividade já está disposta à compra, disponibilizando

e oferecendo o alternativo a preços acessíveis, compatíveis ou mesmo inferiores à

circunvizinhança – uma produção que, em boa

parte, justamente evidencia a estabelecida

mercantilização da data: críticas ao Natal, vendidas

no Natal, para servirem como presente de Natal.

Banksy, no gracejo usual, contrafaz: “Eu sentia que

o espírito do Natal estava se perdendo, [...] estava

se tornando crescentemente não comercializável, e

cada vez mais a ver com religião, assim nós decidimos abrir nossa própria loja, e vender

coisas supérfluas que você não precisa”.306 Noutra face, propiciar a venda é assegurar a

subsistência grafiteira, é gerar renda para expressões que, em sua definição primeira, são

mais dispendiosas que lucrativas.

Inversa ou colateralmente ao

presumível, todas as edições da mostra

devolveram a Banksy sua individuação. Os

trabalhos ocupam indiscriminadamente a

parede, o teto, o chão, em completude que

só se abre à passagem, e sequer

setorizam-se por autor. Essa disposição

entrópica – atípica quanto ao sentido da

306

BANKSY apud BROWN, não paginado, 2006 (tradução do autor).

FIGURA 155 – BANKSY, desenho.

FIGURA 156 – Vista parcial da edição 2006 da mostra

obra isolada e atendida –, induz, primeiramente, ao olhar de conjunto. Como ocorre nas

ruas. E permanece requerendo um esforço de focalização, um ânimo separatista de

apreciação das obras, ao longo de toda a experiência da visitação. Então, a partir do olhar

de conjunto, o agrupamento anômico – pareando lado a lado a fábrica de Banksy, de Dolk,

de Jenkins, de Egan e de tantos outros – projeta os contornos individuais, muito distingue

uns dos outros, mais que aos contornos comunais, que são por si mais evidentes. Bem

consideradas as tantas univocidades práticas e temáticas – e geracionais, em aparente

causalidade –, e bem considerada a imanente, notável união do grupo, o trabalho de Banksy

fica reconhecível, ressaltado. Ganha na comparação próxima uma particularidade tão

própria e tão inequívoca que lhe devolve fortalecida a possibilidade da existência real, da

unicidade autoral; depõe contra a probabilidade de Banksy ser a aglutinação de um grêmio,

de uma agremiação (especialmente para esse coletivo), sem um elemento uno e unificador,

um denominador comum, um núcleo humano. A diversidade distancia um traço igualitário,

impõe a pessoa de um agente de adesão e coesão plásticas que tem de ser, por si,

conhecedor e hábil nos procedimentos grafiteiros tanto quanto na expediência unitária, no

protocolo profissional. E nos cânones do desenho, da pintura, da gravura e do recorte.

Enfim, um artista.

Como sua popularidade já indica, suas vendas superam as demais, enriquecem-no

de recursos às suas propostas futuras e às suas constantes viagens, seja pelos estênceis

sobre tela, seja por suas filiações conceituais contrapartidas: serigrafias, litografias, acrílicos

sobre tela ou ainda desenhos sobre papel. Banksy:

Eu direi o seguinte: eu obtenho o apoio de pessoas de quem eu menos esperaria, e o ódio de pessoas que considerava estarem ao meu lado. Quando alguém compra meu trabalho, sabe que está indiretamente fundamentando afrontas urbanas, e você ficaria surpreso sobre quem está numa boa com isso.307

307

Afrontas urbanas não só visam, questionam ou propõem outros termos ao sustento

material da coletividade como, para fazê-lo, concomitantemente requerem para si o

sustento, a manutenção, “a luta de classes, que um [atuante] educado por Marx jamais

perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as

refinadas e espirituais [que] se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da

coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe”.308 A contemporaneidade

comprovou sobremaneira que o sucesso do questionamento de um sistema (social,

mercadológico ou artístico) está na precisa inserção nesse sistema, está em agir por (e de)

dentro dele; o volume da voz do excluído amplifica-se na inclusão da mesma maneira que

compromete-se na insistência na exclusão, “se você entrar totalmente no jogo talvez possa

expô-lo, isto é, você talvez revele o automatismo ou mesmo o autismo desse processo, por

meio de seu exemplo exagerado”.309 A contemporaneidade suporta agir ‘de longe’ por perto.

Assenta-se hoje menos paradoxal e mais astuciosa a manutenção depender honesta

de si própria, a militância autogerir-se, o protesto grafiteiro gerar recursos para si mesmo,

para sua continuidade e expansão. Assenta-se verossímil a incompletude nominal,

especialmente para aquele que conta com a genealogia artística com a qual Banksy conta,

pois “o artista pop não se encontra por detrás de sua obra [...], ele mesmo [...] é a superfície

de suas imagens”.310 Assenta-se crível e parece honesta a incompletude nominal ante sua

completude incidente, coincidente e dependente do espectador; tanto a individualidade do

uno quanto a multiplicidade do coletivo são superadas e sustentadas pela projeção pública,

que sobrevive à ausência autoral.

Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação: mas há um lugar que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não

308

BENJAMIN, 1994, p. 224.

309

FOSTER, 1996b, p. 131 (tradução do autor).

310

está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia: é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. [...] Começamos hoje a [...] devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar- se com a morte do Autor.311

A aceitação do processo – ou do simulacro – da individualidade convém. Além de

útil, coerente: “há aspectos muito sugestivos no Individualismo”.312 O cognome é

aparentado, em provável propositada analogia, ao termo inglês bank: banco, lucro,

consumo, também barricada, barreira, obstáculo, resistência. A marca tem algo de apelido,

de diminutivo, é redução derivada da seminal assinatura que sobreviveu até a edição de sua

primeira coletânea, Existencilism: Robin Banks, que na

língua nativa soa como “roubando bancos” – firmando o

caráter furtivo, o feitio sorrateiro; a ação de sorrate,

subterrânea, tanto oportuna quanto oportunista

(sorrateiro é termo derivado do latim subreptu: ‘tomado

por astúcia’, com distinta influência de ‘rato’). Firmando

vasta obra de raiz contestatória, que realiza-se irônica,

concisa, direta; e oblíqua, veloz, como convém.

Coerentemente, seu emblema são os ratinhos, quase sempre paramentados: de

guerrilheiros a fotógrafos paparazzi,313 em autoconhecimento freqüentemente munidos de

pincel, aerógrafo, óculos protetores e máscara respiratória de grafiteiro – animal urbano por

excelência, e clandestino, ligeiro, esquivo e diligente como aquele que representa. Ratinhos

ágeis em adaptação. Ratinhos desejosos e indesejados, massa resistente e indomesticável;

por tal perseguida. Banksy: “Ratos são chamados ratos porque eles farão qualquer coisa

para sobreviver”.314 Ratinhos que são multidão de unidades. Raté adjetiva, no idioma

311 BARTHES, 1988, p. 53. 312 WILDE, 2003, p. 36. 313

Fotógrafos inoportunos, perseguidores de celebridades, particularmente de seus flagrantes, que podem render manchetes – e boas vendas – jornalísticas. Muitas vezes atormentadores mesmo das celebridades, de forma a impelir reações das mesmas, forçando factóides.

314

BANKSY, 2001, p. 23 (tradução do autor).

francês, aquele que, faltante a sorte, a competência ou a ocasião, não alcançou êxito

pessoal ou profissional. Ratinhos em conformação e conformidade a uma rat-art315. Banksy:

Eles existem sem permissão. Eles são odiados, caçados e perseguidos. Eles vivem em silencioso desespero em meio à imundície. E contudo eles são capazes de prostrar civilizações inteiras. Se você é sujo, insignificante e mal-amado, então ratos representam seu modelo definitivo. [...] Eu já vinha grafitando ratos por três anos antes de alguém dizer: “É engenhoso isto ser um anagrama de arte”, e eu tive de fingir que sabia disso o tempo todo. [...] Você pode até vencer a competição dos ratos, mas você continua sendo um. A competição humana é uma injusta e estúpida corrida. Muitos dos corredores não têm nem mesmo tênis decentes e água limpa para beber. Alguns corredores nasceram com ampla vantagem na largada, e ainda com possíveis ajudas mais à frente no caminho, e mesmo assim os juízes parecem estar do lado deles. Não é surpresa que muitos competidores desistam por completo, para sentar na arquibancada, comer porcarias e gritar ofensas. O que nós precisamos nesse páreo é de muito mais raias.316

(Ou talvez menos competição. Ou menos

natalidade...). Rateio, rateação, rateamento: a divisão

igualitária, a parte ou a quantia que cabe a cada um dos

apostadores.

A rat-art de Banksy tornou-se mesmo seu maior

distintivo, seus ratinhos permanecem sua mais recorrente e

mais numerosa produção, podendo ser encontrados nos mais

variados pontos do globo, de Berlim a Tóquio. Seus ratinhos

permanecem também sua mais cognoscível, mais

autoralmente associável produção, causando um

reconhecimento imediato – ao menos para seus conhecedores e/ou para seus culturalmente

correlatos, seus relativos. Banksy:

315

‘Arte-rato’. A manutenção do termo em seu idioma original, respeita o do bem-humorado anagrama, que perder-se-ia na tradução.

316

BANKSY, 2005, p. 83-90 (tradução do autor).

No documento Onde Está Banksy? (páginas 181-186)