SUMÁRIO
FIGURA 154 – BANKSY,
sobreposição espetacular da celebração religiosa ao consumo, artifício draconiano em
sujeição pública. O espaço dessas mostras serve satisfatoriamente como ponto de encontro
contracultural e troca de idéias sobre grafite e, sobretudo, sobre a liga inelutável entre
celebração e consumo – soberanamente consumada na mais consumista temporada do
ano, por tal consumida em sua representatividade.
Dupla funcionalidade: numa face, dar a conhecer a produção recente e política do
grupo grafiteiro europeu bem onde a coletividade já está disposta à compra, disponibilizando
e oferecendo o alternativo a preços acessíveis, compatíveis ou mesmo inferiores à
circunvizinhança – uma produção que, em boa
parte, justamente evidencia a estabelecida
mercantilização da data: críticas ao Natal, vendidas
no Natal, para servirem como presente de Natal.
Banksy, no gracejo usual, contrafaz: “Eu sentia que
o espírito do Natal estava se perdendo, [...] estava
se tornando crescentemente não comercializável, e
cada vez mais a ver com religião, assim nós decidimos abrir nossa própria loja, e vender
coisas supérfluas que você não precisa”.306 Noutra face, propiciar a venda é assegurar a
subsistência grafiteira, é gerar renda para expressões que, em sua definição primeira, são
mais dispendiosas que lucrativas.
Inversa ou colateralmente ao
presumível, todas as edições da mostra
devolveram a Banksy sua individuação. Os
trabalhos ocupam indiscriminadamente a
parede, o teto, o chão, em completude que
só se abre à passagem, e sequer
setorizam-se por autor. Essa disposição
entrópica – atípica quanto ao sentido da
306
BANKSY apud BROWN, não paginado, 2006 (tradução do autor).
FIGURA 155 – BANKSY, desenho.
FIGURA 156 – Vista parcial da edição 2006 da mostra
obra isolada e atendida –, induz, primeiramente, ao olhar de conjunto. Como ocorre nas
ruas. E permanece requerendo um esforço de focalização, um ânimo separatista de
apreciação das obras, ao longo de toda a experiência da visitação. Então, a partir do olhar
de conjunto, o agrupamento anômico – pareando lado a lado a fábrica de Banksy, de Dolk,
de Jenkins, de Egan e de tantos outros – projeta os contornos individuais, muito distingue
uns dos outros, mais que aos contornos comunais, que são por si mais evidentes. Bem
consideradas as tantas univocidades práticas e temáticas – e geracionais, em aparente
causalidade –, e bem considerada a imanente, notável união do grupo, o trabalho de Banksy
fica reconhecível, ressaltado. Ganha na comparação próxima uma particularidade tão
própria e tão inequívoca que lhe devolve fortalecida a possibilidade da existência real, da
unicidade autoral; depõe contra a probabilidade de Banksy ser a aglutinação de um grêmio,
de uma agremiação (especialmente para esse coletivo), sem um elemento uno e unificador,
um denominador comum, um núcleo humano. A diversidade distancia um traço igualitário,
impõe a pessoa de um agente de adesão e coesão plásticas que tem de ser, por si,
conhecedor e hábil nos procedimentos grafiteiros tanto quanto na expediência unitária, no
protocolo profissional. E nos cânones do desenho, da pintura, da gravura e do recorte.
Enfim, um artista.
Como sua popularidade já indica, suas vendas superam as demais, enriquecem-no
de recursos às suas propostas futuras e às suas constantes viagens, seja pelos estênceis
sobre tela, seja por suas filiações conceituais contrapartidas: serigrafias, litografias, acrílicos
sobre tela ou ainda desenhos sobre papel. Banksy:
Eu direi o seguinte: eu obtenho o apoio de pessoas de quem eu menos esperaria, e o ódio de pessoas que considerava estarem ao meu lado. Quando alguém compra meu trabalho, sabe que está indiretamente fundamentando afrontas urbanas, e você ficaria surpreso sobre quem está numa boa com isso.307
307
Afrontas urbanas não só visam, questionam ou propõem outros termos ao sustento
material da coletividade como, para fazê-lo, concomitantemente requerem para si o
sustento, a manutenção, “a luta de classes, que um [atuante] educado por Marx jamais
perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as
refinadas e espirituais [que] se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da
coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe”.308 A contemporaneidade
comprovou sobremaneira que o sucesso do questionamento de um sistema (social,
mercadológico ou artístico) está na precisa inserção nesse sistema, está em agir por (e de)
dentro dele; o volume da voz do excluído amplifica-se na inclusão da mesma maneira que
compromete-se na insistência na exclusão, “se você entrar totalmente no jogo talvez possa
expô-lo, isto é, você talvez revele o automatismo ou mesmo o autismo desse processo, por
meio de seu exemplo exagerado”.309 A contemporaneidade suporta agir ‘de longe’ por perto.
Assenta-se hoje menos paradoxal e mais astuciosa a manutenção depender honesta
de si própria, a militância autogerir-se, o protesto grafiteiro gerar recursos para si mesmo,
para sua continuidade e expansão. Assenta-se verossímil a incompletude nominal,
especialmente para aquele que conta com a genealogia artística com a qual Banksy conta,
pois “o artista pop não se encontra por detrás de sua obra [...], ele mesmo [...] é a superfície
de suas imagens”.310 Assenta-se crível e parece honesta a incompletude nominal ante sua
completude incidente, coincidente e dependente do espectador; tanto a individualidade do
uno quanto a multiplicidade do coletivo são superadas e sustentadas pela projeção pública,
que sobrevive à ausência autoral.
Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação: mas há um lugar que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não
308
BENJAMIN, 1994, p. 224.
309
FOSTER, 1996b, p. 131 (tradução do autor).
310
está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia: é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. [...] Começamos hoje a [...] devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar- se com a morte do Autor.311
A aceitação do processo – ou do simulacro – da individualidade convém. Além de
útil, coerente: “há aspectos muito sugestivos no Individualismo”.312 O cognome é
aparentado, em provável propositada analogia, ao termo inglês bank: banco, lucro,
consumo, também barricada, barreira, obstáculo, resistência. A marca tem algo de apelido,
de diminutivo, é redução derivada da seminal assinatura que sobreviveu até a edição de sua
primeira coletânea, Existencilism: Robin Banks, que na
língua nativa soa como “roubando bancos” – firmando o
caráter furtivo, o feitio sorrateiro; a ação de sorrate,
subterrânea, tanto oportuna quanto oportunista
(sorrateiro é termo derivado do latim subreptu: ‘tomado
por astúcia’, com distinta influência de ‘rato’). Firmando
vasta obra de raiz contestatória, que realiza-se irônica,
concisa, direta; e oblíqua, veloz, como convém.
Coerentemente, seu emblema são os ratinhos, quase sempre paramentados: de
guerrilheiros a fotógrafos paparazzi,313 em autoconhecimento freqüentemente munidos de
pincel, aerógrafo, óculos protetores e máscara respiratória de grafiteiro – animal urbano por
excelência, e clandestino, ligeiro, esquivo e diligente como aquele que representa. Ratinhos
ágeis em adaptação. Ratinhos desejosos e indesejados, massa resistente e indomesticável;
por tal perseguida. Banksy: “Ratos são chamados ratos porque eles farão qualquer coisa
para sobreviver”.314 Ratinhos que são multidão de unidades. Raté adjetiva, no idioma
311 BARTHES, 1988, p. 53. 312 WILDE, 2003, p. 36. 313
Fotógrafos inoportunos, perseguidores de celebridades, particularmente de seus flagrantes, que podem render manchetes – e boas vendas – jornalísticas. Muitas vezes atormentadores mesmo das celebridades, de forma a impelir reações das mesmas, forçando factóides.
314
BANKSY, 2001, p. 23 (tradução do autor).
francês, aquele que, faltante a sorte, a competência ou a ocasião, não alcançou êxito
pessoal ou profissional. Ratinhos em conformação e conformidade a uma rat-art315. Banksy:
Eles existem sem permissão. Eles são odiados, caçados e perseguidos. Eles vivem em silencioso desespero em meio à imundície. E contudo eles são capazes de prostrar civilizações inteiras. Se você é sujo, insignificante e mal-amado, então ratos representam seu modelo definitivo. [...] Eu já vinha grafitando ratos por três anos antes de alguém dizer: “É engenhoso isto ser um anagrama de arte”, e eu tive de fingir que sabia disso o tempo todo. [...] Você pode até vencer a competição dos ratos, mas você continua sendo um. A competição humana é uma injusta e estúpida corrida. Muitos dos corredores não têm nem mesmo tênis decentes e água limpa para beber. Alguns corredores nasceram com ampla vantagem na largada, e ainda com possíveis ajudas mais à frente no caminho, e mesmo assim os juízes parecem estar do lado deles. Não é surpresa que muitos competidores desistam por completo, para sentar na arquibancada, comer porcarias e gritar ofensas. O que nós precisamos nesse páreo é de muito mais raias.316
(Ou talvez menos competição. Ou menos
natalidade...). Rateio, rateação, rateamento: a divisão
igualitária, a parte ou a quantia que cabe a cada um dos
apostadores.
A rat-art de Banksy tornou-se mesmo seu maior
distintivo, seus ratinhos permanecem sua mais recorrente e
mais numerosa produção, podendo ser encontrados nos mais
variados pontos do globo, de Berlim a Tóquio. Seus ratinhos
permanecem também sua mais cognoscível, mais
autoralmente associável produção, causando um
reconhecimento imediato – ao menos para seus conhecedores e/ou para seus culturalmente
correlatos, seus relativos. Banksy:
315
‘Arte-rato’. A manutenção do termo em seu idioma original, respeita o do bem-humorado anagrama, que perder-se-ia na tradução.
316
BANKSY, 2005, p. 83-90 (tradução do autor).