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FIGURA 48 – BANKSY,

No documento Onde Está Banksy? (páginas 75-83)

SUMÁRIO

FIGURA 48 – BANKSY,

grafite está um degrau abaixo – não há sombra de dúvida. Se você opera na exclusão do grafite, você opera num nível inferior. Outras artes têm menos a oferecer às pessoas, significam menos, e são mais fracas. Eu faço pinturas normais se tenho idéias que são muito complexas ou ofensivas para estarem na rua, mas se em algum momento deixasse de ser grafiteiro eu estaria acabado. Preferiria ser um tecelão cesteiro a ser um artista propriamente dito.89

A exposição se abre, amplifica-se. Experimenta. Pesquisa continuamente e se auto-

analisa continuamente – e apresenta essa pesquisa e essa auto-análise com atribuição de

resultado final. Admite e toma partido da ação, do acaso e da impermanência,

desobrigando-se do objeto artístico. “É exatamente esta a natureza da exposição de arte

contemporânea [...]: ela cria espaços livres, gera durações com um ritmo contrário ao das

durações que ordenam a vida cotidiana”.90 A arte

contemporânea fala alto. Ri de si mesma. Celebra

seu mais novo descompromisso e o professa, indo

a público. Nesse ir a público, ela alarga o espaço

que lhe abriga e lhe detém. Expande a

comunidade que lhe abriga e lhe detém. Amplifica

as interpretações que lhe abrigam e lhe detém.

Nesse ir a público, o lugar no qual se mostra

passa a ser-lhe constitutivo, além de contíguo. Até mesmo o local em que se executa.

A obra não é posta em um lugar: ela é esse lugar.

Quando se trata de um objeto de arte, o processo de reconhecimento deve levar em conta o contexto sociocultural e político – auxiliar indispensável ao reconhecimento efetivo de um objeto de arte enquanto tal – e sua constituição em “símbolo” deve muito ao lugar que esse objeto ocupa no sistema de trocas econômicas e culturais.91

89

BANKSY, 2006, não paginado. Entrevista a Shepard Fairey (tradução do autor).

90

BOURRIAUD, 2009a, p. 23.

91

CAUQUELIN, 2006, p. 120.

Nesse ir a público, a arte contemporânea confere a esse último um

reposicionamento, dando-lhe participação ativa, seja literalmente (como parte da ação ou

como inserido no espaço da obra, positivo ou negativo), seja na necessidade de um esforço

interpretativo, ou de uma reconstrução, ou de uma espécie de finalização, ou de uma

resposta – posturas bem distantes de meramente contemplativas ou absorventes; posturas

que incluem interatividade, interação, acrescidas à (e crescidas na) doxa. “A arte

contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e

problematizar a esfera das relações, problematizando-a. [...] A arte é um estado de encontro

fortuito”.92 Nesse ir a público, há que se pensar se há mais coragem na arte que se dispõe a

qualquer um ou naquela que não teme o processo seletivo, que por tantas variáveis

(modismos, conservadorismos, elitismos inclusos) oscila entre inclusão e exclusão, desde

louvar até repudiar (convenções e conveniências tantas vezes, interpretações outras tantas,

mas não se pode ser utópico: é do humano ser parcial, é do humano ser tendencioso).

Nesse ir a público, ela alarga o espaço que a abriga e a detém. Expande a

comunidade que a abriga e a detém. Amplifica as interpretações que a abrigam e a detêm.

Nesse ir a público, a arte se desmistifica. Entrelaça-se à cultura e aproxima-se do consumo,

valorizando técnicas, materiais e raciocínios industriais e de massa.

O artista ocidental contemporâneo defronta-se com duas novas condições: o modernismo recuou em ampla medida como formação histórica, e a indústria cultural avançou de maneira intensa. De fato, duas das posições modernistas básicas encontram-se parcialmente erodidas no momento: nem uma recusa austera da cultura de massa nem um envolvimento dialético com sua imagística e sua materialidade são necessariamente críticos hoje em dia; a primeira porque a pureza estética se tornou institucional, a segunda por carência – poucos artistas contemporâneos são capazes de se engajar tanto em formas modernistas quanto em formas da cultura de massa de maneira crítico-reflexiva. Como resposta, alguns artistas simplesmente aderiram à cultura de massa (como se isso constituísse uma ruptura definitiva dos limites culturais) e/ou manipularam as formas como se fossem clichês da mídia.93

92

BOURRIAUD, 2009a, p. 23-25.

93

Na opção de buscar esse engajamento às

formas culturais de massa, em abordagem

provocativa, e nessa mesma abordagem

provocativa rever as posições de poder artísticas,

uma possibilidade é ir de encontro aos muros se

machucar: se nos rumos encontram-se muros,

também nos muros encontram-se rumos.

É ir de encontro ao preceito dos muros sem

pulá-los ou contorná-los ou acercar-se a suas cercanias, é ir de encontro à interrupção dos

muros pela projeção de suas superfícies. É ir de encontro: o mais atual triunfo simbólico, a

prevalência sobre o banimento, sobre o obstáculo de intervalo seletivo –

de impedimento intentado, de empecilho

garantido. O mais atual vencimento dos

muros, a mais atual incorporação dos

muros – contemporâneos muros, polifônicos de

buzinas, freadas e sirenes, de bruaá e caoô, de

uivos pelas eivas, com seus tão disponíveis e

aproveitáveis despojos e texturas, seus

‘acidentes naturais’: ângulos, quinas e planos,

concavidades e convexidades, buracos e escombros, descascamentos e descoramentos,

insinuando no proveito plástico dessa disponibilidade que “o que é paralelo à degradação da

aparência [...] é um formidável ganho em possibilidades lúdicas”.94

Por esse motivo, os espaços públicos são locais em que atração e rejeição se desafiam (suas proporções são variáveis, sujeitas a mudanças rápidas, incessantes). Trata-se, portanto, de locais vulneráveis, expostos a ataques maníaco-depressivos ou esquizofrênicos, mas são também os únicos

94

BENJAMIN apud ROCHLITZ, 2003, p. 240.

FIGURA 50 – BANKSY, grafite/estêncil.

FIGURA 51 – BANKSY, grafite/estêncil. Acima: pormenor.

lugares em que a atração tem alguma possibilidade de superar ou neutralizar a rejeição.95

Muros antigos e intrínsecos ao homem, enquanto divisão, segregação, diferença,

categoria. Enquanto testemunhos das convenções, dos pactos humanos, testemunhos

sociais e testemunhos políticos, “fortes traços de suas fortalezas internas, que precisam

primeiro ser conquistadas e ocupadas, antes que possamos controlar seu destino e, em seu

destino, no destino das suas massas, o nosso

próprio destino. [...] É aqui, portanto, que

podemos encontrar o catálogo daquelas

fortalezas”:96 nos seus muramentos, defesas no

contorno das cidades agora contraídas em

defesas no contido das casas. Catálogos

partidos da sustentação do arrimo, firmados na sustentação do agrupamento das vielas,

seqüenciados na sustentação apequenada da família, contemporâneos na sustentação

unitária do indivíduo, pois nas metrópoles, cada vez mais, se mora só. Catálogo de setor,

nicho, extrato; catálogos da oposição entre o comum e o singular, da volubilidade entre o

estável e o instável, entre o paratodos e o parapoucos, porque extramuros tudo é coletivo, e

intramuros tudo é próprio. Os termos da inconstância valem para os dois, atravessam o

muro moderando a intensidade ou a velocidade de acostumação, de efetivação dos

costumes, de assentamento costumado e costumário. Dentro ficam os nomes, fora ficam os

vultos, o muro filtra o murmúrio. Sussurra a voz de dentro, quer ser secreta; brada a voz de

fora, quer ser ouvida. Aquele que está fora é o excluído, o privado do privado, o antagonista

(intencional ou não, incompatível ou não) daquele que está dentro, o incluído, o aceito, e na

ampulheta esses papéis se invertem, de momento a momento e de muro a muro.

Por que muros são assim, têm dois lados, duas faces: referenciam para fora e

referenciam para dentro. O significado do muro já entrega um avesso, já denuncia pelo seu

interposto, pelo seu entremeio a proximidade, o paralelismo, a continuidade suspensa, o

95

BAUMAN, 2005, p. 70.

96

BENJAMIN, 1994, p. 26.

caminho entrecortado e chaveado; já respeita a humana exigência de escolher e desviar. De

subtrair o público ao privado. De separar o visível do invisível, o exposto do recôndito, o ver

do ser visto, no que usualmente competiria o secreto ao interno e o declarado – ou mesmo

ostentado – ao externo, um ideário de participação versus

reclusão bastante comprometido na contemporaneidade do

apreço à superexposição da imagem (e) do corpo, da

inconseqüente corrida pela celebridade, do esforço pela

notoriedade que é o esforço por desmurar a si próprio,

frontalidade de fachada, planiformidade de aparência,

exibicionismo de carência, temor do vulgo e do

esquecimento. Egocentrismo de falta e de superação do

ínfero da multidão sem nome (anonímia que num olhar mais

apurado pode bem quitar um futuro inelutável, tanto pelo contingente populacional

ascendente quanto pelo prazo de validade da fama, atados um ao outro nos quinze minutos

warholianos; anonímia que pode bem ser um conforto, porque no desconhecido das cidades

se pode melhor ser quem se é; anonímia que pode bem ser uma oportunidade e uma

vantagem, como Banksy aponta).

Superação de uma cismada inferioridade multitudinária através da superexposição

inversora do princípio: pena-se a privação não mais do privado, mas do público. Inversão da

função mural: o intramuros busca a aprovação do extramuros. Um espetáculo

contemporâneo de supostas realidades despidas (subjetivas de simulação e ocultamento,

bem como da verdade irretocada que estes mesmos demonstram); de manipulação da

intimidade e conversão de seu sentido por expansão de seu campo; de privacidades

concessionárias: privacidades invadidas antes por concessão individual, por consentimento,

depois por impulso individual. Por vontade própria, por desejo, pelo fetiche transmitido – e

majorado – do observador para o observado.

De certo modo, tudo isso continua a existir, todavia em outros aspectos está tudo desaparecendo. A descrição deste universo íntimo como um todo – FIGURA 53 – BANKSY,

projetivo, imaginário e simbólico – ainda corresponde ao estatuto do objeto como espelho do sujeito, o que retorna para os fundos imaginários do espelho e da “cena”: há uma cena doméstica, uma cena de interioridade, um espaço-tempo privado (correlato, sobretudo, a um espaço público). As oposições sujeito/objeto e público/privado permanecem significantes. Esta foi a era da descoberta e da exploração da vida cotidiana, esta outra cena emergindo no reflexo da cena histórica, com a primeira recebendo mais e mais investimento simbólico enquanto a segunda era politicamente desinvestida.97

Face humana ofertada, face interna do

muro ofertada. Testemunho longevo de

sobrevivência, a condição do homem é o muro

e a condição do muro é o homem. Uma

evidência imediata, evidência da presença, de

lado a lado – dar com um muro é dar com a

certeza de um outro, um alguém. Em ambas

as frentes há um homem ou há seus vestígios,

e essa é a definição do muro, sua justificativa, sua razão, ateste quanto mais próximo o

homem da natureza, mais reduzem de tamanho as muralhas, tornam-se simples cercas ou

desaparecem por completo – além do território e sua imaginária posse, a proteção que

oferece o muro dá conta de um homem a outro homem.

A proibição dos muros nomeia o lobo.

Componente fixo da vida urbana, a onipresença de [muros], tão visíveis e tão próximos, acrescenta uma notável dose de inquietação às aspirações e ocupações dos habitantes da cidade. Essa presença, que só se consegue evitar por um período bastante curto de tempo, é uma fonte inexaurível de ansiedade e agressividade latente – e muitas vezes manifesta. O medo do desconhecido – no qual, mesmo que subliminarmente, estamos envolvidos – busca desesperadamente algum tipo de alívio.98

97

BAUDRILLARD apud FOSTER, 1996b, p. 145-146 (tradução do autor).

98

BAUMAN, 2005, p. 36.

O abrigo dos muros e a resistência dos muros são o resguardo da violência, mas em

parte são também algo entre uma conivência e uma autorização desta última ao extramuros.

No permeio entre a segurança e o risco, entre o permitido e o proibido, reverte-se o índice

da continência prisional: muros capturam e encarceram, o dano e a inadequação no exterior

sentenciam à perda deste, condenam ao interior. E reverte-se outra vez, porque a correção

social se sustenta hoje com muramento – murados estão os justos e os ajustados.

As duas faces são ponto de vista, são contíguas, são o mesmo objeto, são portanto

inseparáveis de sentido, daí fazer suporte, investir plasticamente a uma delas é investir ao

duplo – será o próprio homem (aquele que tem o trânsito e a fechadura) a conduzir o

significado de um lado a outro, a noticiar na superfície ilesa a superfície assaltada. Compete

ao portador das chaves portar também a interiorização da mensagem, que se faz sem nome

nos inumeráveis passantes do externo, se faz tráfico de idéias no tráfego do concreto.

Muros são a arquitetura primeira, de origem no dólmen, no refúgio, na morada.

Arquitetura de intervalo, de acessos selecionados: igualmente à barreira, o pressuposto do

muro é a passagem, sua existência está em liga à existência de uma porta – a desta última

só se fundamenta pela do primeiro. A pausa dos muros é o atestado do fluxo, do trajeto, do

percurso, da alteração sensorial tendente ao alívio, emanando pequenas, suaves, cotidianas

sacralidades na passagem de uma estância a outra e de um instante a outro.

“Aconteça o que acontecer a uma cidade no curso de sua história, e por mais

radicais que sejam as mudanças em sua estrutura e seu aspecto no decorrer dos anos ou

dos séculos, há um traço que permanece constante: [seus muros]”.99 Arquitetura de histórias

e de História, o muro por sua expansão numérica é anúncio da expansão numérica da

humanidade, o muro por seu aparte (individualização) é o indício do aparte (individuação) de

seus habitantes, crescentes ambos – prenúncio da progressão do apartamento, porventura

prenúncio da progressão das portas.

O muro por seu aspecto é sinal de seu tempo, seu momento, sua data. Em ciclos é

desfeito e refeito, mais ainda na transitoriedade veloz e resoluta, assumida e aproveitada de

99

nossos tempos: os multiplicados muros contemporâneos são impermanentes como a arte

contemporânea que deles se vale, ciente de que

os muros e suas artes carregam ambos consigo

sua dissolução e seu ressurgimento.

Sobremaneira carregam ambos consigo hoje

seu excesso: muros são do agora enquanto

muitos, enquanto sujos e urbanos, e enquanto

potencialidade cultural e alavanca artística para

uma geração imprensada pela superpopulação e

sua escassez de oportunidade, pelo assombroso avanço tecnológico, pela ocupação

regente da mídia, e pela conseqüente supervalorização do sujeito, a celebrização. A

atenção para Banksy foi primeiramente despertada no muro, por determinismo e irrupção.

Seguiram-se à atenção o precedente e a polêmica, que só fizeram amplificá-la, e amplificar

a si mesmos, incensando o conjunto ator-atitude-atividade: o grafite é no Reino Unido

oficialmente proibido, mas pode ser oficialmente assimilado – para Banksy.

Uma de suas produções anteriores na Bristol

natal, bem-acabada em virtudes de trompe l’oeil,100

representara, sobre a lisa fachada lateral de uma Sexual-

Health Clinic,101 uma janela aberta em cujo parapeito se

apóia um homem de terno e gravata – vestido como que

saído do trabalho, como que recém-chegado da rua –,

mãos sombreando os olhos, em gesto característico da

vasculha visual panorâmica, externa à tal janela. O

homem – posicionado à frente de uma mulher em trajes

íntimos que lhe segura o ombro – não se dá conta de

que, nesse mesmo parapeito, dependura-se num braço

100

‘Engana o olho’, termo francês referente à escola de ilusão de ótica pictórica, que costumeiramente faz uso do tamanho natural, da reprodução exata de texturas e da perspectiva apurada.

101

‘Clínica de Saúde Sexual’, que, comumente na Inglaterra, congrega Urologia, Ginecologia e Obstetrícia.

FIGURA 55 – BANKSY, estêncil.

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