SUMÁRIO
FIGURA 139 – BANKSY,
Por outro lado, o lugar público é obstado de empecilhos, é acidentado, é perigoso, é
parkour255, e pode tornar a obra indiscernível: o grafite generalizado surge no urbano de
maneira inesperada, indiscriminada e tantas vezes gratuita, intenta a interferência mas
arrisca-se à fusão, à incorporação no entorno randômico; o bombardeamento visual sofrido
pelo transeunte, somado à rotina do trajeto, traz o cansaço do olhar – e conseqüente
indiferença. Aí, paradoxalmente, o trabalho será mais e melhor notado por aqueles, mais
treinados, que já freqüentam a galeria, o museu, os espaços identificados – observadores
perceptivos, atentos, inventivos. Observadores estimulados pelo subliminar. Identificadores
de identidades. Observadores apurados: que depuram, que enquadram, que recortam –
capazes de fazê-lo constante e concomitantemente à sua transitividade.
As imagens ambientais são o resultado de um processo bilateral entre o observador e seu ambiente. Este último sugere especificidades e relações, e o observador – com grande capacidade de adaptação e à luz de seus próprios objetivos – seleciona, organiza e confere significado àquilo que vê. A imagem assim desenvolvida limita e enfatiza o que é visto, enquanto a imagem em si é testada, num processo constante de interação, contra a informação perceptiva filtrada. [...] Uma pessoa pode ser capaz de encontrar objetos com facilidade num espaço que, para qualquer outra, parece totalmente desordenado. Por outro lado, um objeto visto pela primeira vez pode ser identificado e relacionado não pelo fato de ser individualmente familiar, mas por ajustar-se a um estereótipo já criado pelo observador.256
255
Le Parkour (o percurso) ou Free Running (trajeto livre), o mais novo esporte: superação de obstáculos em veloz deslocamento pelo urbano, a exemplo de correr por coberturas de edifícios, saltando de uma a outra, descer fossos de elevador, escalar e pular muros elevados, entre outras incontáveis modalidades.
256
LYNCH, 1990, p. 7.
FIGURA 140 – Policiais reconhecendo estêncil de
Banksy.
FIGURA 141 – Isolamento policial de estêncil de
Notável, pela consciência brincante da autodenominação e do universo em que se
insere, é o próprio nome da (algo grupal, familiar, doméstica) editora das coletâneas de
Banksy (bem como de outros títulos que abordam o grafite): Weapons of Mass
Distraction.257 Além disso, o cenário é também proibido, o que torna o grafite efêmero,
porque apagável. Essa efemeridade prenuncia em
si o fim da significação, mas também, ou por isso
mesmo, aumenta o poder de convencimento, na
“posição ambivalente de uma arte ao mesmo
tempo ‘da moda’ (efêmera) e substancial (a
eternidade)”.258 Daí militar o imediato, ativismo
associado ao momento, à história instante e
impendente – com proveito e sem reclame ou
surpresa quanto à superação, ao esquecimento, à dissolução no inelutável concreto. A obra
que visa produzir um conhecimento e participar um observador, que visa um raciocínio e/ou
um questionamento, tem portanto a obrigação de empregar todos os recursos possíveis, da
provocação até a subversão. Inclui entre esses recursos aproveitar-se do interesse
institucional que desperta na contemporaneidade. Seria tarefa árdua rastrear traços de
ingenuidade ou de pureza na arte contemporânea. E ponto.
Como já bem cabe e chega a ser compulsório, exposições convencionais, e vendas
a bom preço, também estão no repertório de Banksy, posto a incompatibilidade entre as
instâncias ditas oficiais e paralelas ceder anteriormente a uma compatibilidade polêmica.
Segue-se a compatibilidade polêmica cedendo a uma compatibilidade normativa. Os artistas
podem alternar-se livremente entre tais instâncias em favor da necessidade das obras.
Podem alternar-se inclusive regionalmente ao redor do globo. Cambalhota da dissensão
para a coextensão. O que antes poderia ser entendido como incoerência autoral, ideológica,
agora é recebido como coerência produtiva, que prima a criação ao criador e prima a
257
“Armas de Distração em Massa”.
258
CAUQUELIN, 2005, p. 27.
FIGURA 142 – BANKSY, grafite/estêncil
especificidade do sítio. Sobretudo, ambos os espaços, intramuros e extramuros, são
espaços da arte.
A convergência do lugar que ocupam as duas faces do muro se encontra na potência
do conceito de exposição.
De mais a mais, de Banksy é inegável sua surpreendente capacidade de auto-inserir-
se por próprio esforço, mérito e risco; de emergir no mapa das artes. E para os grafiteiros,
representativos do estamento paralelo, não oficial, há já espaços dedicados à diferença,
erigidos por ela e/ou em prol dela. Convidativas, estão por e para eles escancaradas as
portas desses espaços, demonstração de força, demonstração de eficiência ombreada.
Os próprios ‘irregulares da arte’ não escapam a essas regras de homologação que continuam sempre válidas. A ‘arte bruta’ adquiriu [...] seu local permanente de exposição. [...] Assim a ‘não-cultura’ deixava de ser tributária da ‘cultura asfixiante’. Mas tornando-se, por seu turno, uma cultura com plenos direitos à qual é preciso pagar tributo. O devir-arte leva os ‘anartistas’ a darem sua colaboração.259
E posto ainda que há sempre uma tentativa de assimilação do sistema: as galerias
absorvem os grafiteiros (e aí marcas anônimas tornam-se assinaturas célebres, desde Keith
Haring, Jean-Michel Basquiat, Ronnie Cutrone, até, bem recentemente, a dupla brasileira
osgemeos – gêmeos de fato); o oficial reivindica o paralelo: em parte porque o que parece
um jogo de provocação cultural é tantas vezes um atalho e um pleito para reconhecimento
público, em parte por retroalimentação e necessidade do novo, em parte para subverter o
subversivo.
As discussões sobre arte estão focadas em torno de um tema essencial: o que significa ser um artista 'bem-sucedido' trabalhando no mundo atual? [...] Por esta premissa, é importante engalfinhar-se com nosso modelo cultural, para entender como ele afeta nosso jeito de pensar e determina o que nós queremos. [...] Há alguma maneira, então, de não deixar o paradigma dominante sob o qual nós existimos atualmente definir quem nós somos? E
259
em qual nível, então, o pessoal ou o cultural, o problema pode ser solucionado?260
Aí a enunciação: para a arte vale mais a comunicação e a significação em si ou o
padrão de produção e recepção que lhe encerra, mas lhe dá abrigo, suporte e turma, o
espaço galeria/museu? “O interior é o asilo onde se refugia a arte. [...] Seu ofício é a
idealização dos objetos”.261 Espaço que destaca a obra, que mostra-a isoladamente, dirige-
lhe toda a atenção – por ter a quase neutralidade como local de acolhimento. Espaço que,
por outro lado, é também um sistema de conivências, é um comando implícito, é uma
liberdade vigiada. Esse enunciado não parece tanto comprometer a ética ou a validade da
arte e dos artistas de ambos os lados do muro quanto expor uma simbiose de práticas nos
dois campos, e então proveitosamente descerrar uma janela, uma interseção, um vetor de
circularidade. E explicitar a fragilidade das autonomias, bem como dos argumentos, na
inexistência de outra construção de visibilidade e efetividade e de outra tessitura de
imperativos. Esboça-se um silogismo.
Banksy não se furta aos duradouros recortes da hip-hop, enquanto pesquisa ética
contemporânea, e, de todo modo, para a arte que se quer crítica, intervir no posicionamento
institucional do objeto de arte ou reivindicar uma
instância cultural própria, negativa e marginal, podem
não funcionar tão bem quanto criticar a tradição
usando as formas dessa tradição, ser lícito, opor-se à
cultura dominante de dentro dela, usar a submissão
como morada e trânsito, como senda para a
subversão, ser visto numa forma culturalmente
privilegiada – a galeria, o museu – e nela conquistar
autenticidade e reconhecimento para subverter a
subversão do subversivo. Banksy:
260
GABLIK, 1991, p. 02-03 (tradução do autor).
261
BENJAMIN, 2007, p. 59.
FIGURA 143 – Leilão de auto-retrato
De fato, […] grafite é por definição bastante proscrito. A maioria dos conselhos municipais está comprometida com a remoção de grafites ofensivos dentro de 24 horas; qualquer coisa racista, machista ou homofóbica, eles enviarão um time dentro de 24 horas. Mas, seja como for, se é 'arte' em uma galeria, os limites do gosto não estão assim tão rigidamente definidos.262
Assim, a crítica favorável vem considerando que Banksy tem feito pelo estêncil o
mesmo que Basquiat fizera pelo grafite. Assim, Banksy conta hoje com vasto acervo em
galerias regulares, e longa fila de espera em galerias virtuais, como Andipamodern,263
Artificialgallery264 e Picturesonwalls.265 E resolutas disputas em leilões, em casas tradicionais
como as sedes londrinas da Bonham’s ou da Sotheby’s: “Ele é o artista de progressão mais
rápida que qualquer um já viu em todos os tempos, disse Ralph Taylor, um especialista da
Sotheby’s”.266 Assim também, uma galeria no cosmopolita distrito londrino de Convent
Garden267 promoveu há, dois anos, uma
exposição com obras de Banksy e de Andy
Warhol, surpreendentemente pareando-os e
paralelizando-os. Assim, suas tão justamente
criticadas midiatização e superexposição, em sua
velocidade de propagar informações, são as
próprias responsáveis por altear o balzaquiano
Banksy, razoavelmente noviço para tamanha
aprovação e atento acompanhamento mundiais.
Ele se vê em algum momento tornando-se parte da arte estatutária? “Eu não sei. Eu não venderia merda nenhuma a Charles Saatchi. Se eu vendo 55.000 livros (ele publicou dois, Existencilism e Banging your head against a
brick wall) e, além do mais, muitas gravuras, eu não preciso que um homem
262
BANKSY, 2003, não paginado. Entrevista a Simon Hattenstone (Tradução do autor).
263 <www.andipamodern.com/WorksbyBANKSY.htm>. 264 <www.artificialgallery.co.uk/banksy>. 265 <www.picturesonwalls.com/Art_Artists.asp?Artist=Banksy&Offset=0&PageNo=1>. 266
OSLEY, 2008, não paginado (tradução do autor).
267
Região eclética e exuberante, recheada de museus, cinemas, lojas, bares, restaurantes; habitada de apresentações musicais e performances em suas ruas. Muito adequada à captação de tendências culturais.