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FIGURA 107 – BANKSY,

No documento Onde Está Banksy? (páginas 127-131)

SUMÁRIO

FIGURA 107 – BANKSY,

elongação autoral, muito renovadora, muito faceada a sendas e fendas contemporâneas,

quanto ao futuro insinuado da atribuição (o futuro insinuado dos direitos de propriedade

intelectual, na menção escassa da reprodução inelutável que o ciberespaço acentuou) e

quanto a seu despojo sem pesares aparentes, do aceite ao contente, nas chaves criativas

da transcrição manuseada, nos bastões criativos da apropriação e do remanejamento da

produção alheia.

Elongação também muito árdua de ser sustentada, na temporada de caça midiática

que vivemos e, na alternativa do coletivo, na manutenção de um convergido artístico, um

núcleo de uniformidade confocal, porque um grupo completamente igualitário impulsionaria

a exterioridade da manifestação política, mas pesaria a interioridade que alimenta as artes.

Na liga complexa entre afirmação ideológica e plenitude plástica – alternante

preponderância de uma ou outra, delicado equilíbrio – a pessoalidade elusiva de Banksy

inscreve-se, ou melhor, responde a uma bissexta tradição.

Após um certo número de anos, toda uma série de análises concretas mostrou de fato que, sem negar nem o sujeito nem o homem, [...] substituir o sujeito individual por um sujeito coletivo ou transindividual [...] não suprime, por isso, a idéia de sujeito, [...] fundamentada na existência de uma estrutura mental coerente elaborada por um sujeito coletivo.202

Como relata o artista, escritor e ativista Stewart Home (1999), politicamente cria-se

uma situação em aberto, impossibilitando responsabilizar um indivíduo em particular.

Artisticamente, confrontam-se noções ocidentais de individualidade, de identidade, de valor

– e mesmo de verdade. A tradição é tão imediata que, não houvesse em Banksy a

especificidade grafiteira e a concretude de uma personificação biográfica, mesmo que

inventada, suspeitar-se-ia nele a reencarnação do Luther Blissett Project, pois seus

primeiros passos notórios – cartazes e estandartes com seus estênceis discretamente

enxertados e subitamente assomados em protestos ingleses, como os contrários à Guerra

do Iraque no início deste milênio – correspondem exatamente aos últimos suspiros notórios

202

de Luther Blissett no

final do milênio

passado, ainda que,

na habitual ironia de

Blissett (habitual

também de Banksy),

seu suicídio simbólico

não encerraria o uso

do pseudônimo, mas

dar-lhe-ia nova

vertente em Wu Ming

(‘anônimo’ em mandarim, provável alusão ao turvo superpopuloso da China).

Luther Blissett “constitui um exemplo-limite: trata-se de um indivíduo múltiplo; o nome

do autor parece se apagar verdadeiramente em proveito de uma coletividade, e de uma

coletividade renovável, pois não são sempre os mesmos que são”203 Luther Blissett. O mote

do projeto já anuncia que qualquer um pode ser Blissett, e já autoriza – e convida – qualquer

um a ser Blissett; e assim tem sido o uso clonado dessa identidade livre, recrutadora, ao

mesmo tempo aberta e encoberta, esse pseudônimo com ares piratas de heroísmo popular,

adotado e compartilhado por inúmeros artistas, ativistas e hackers204 – ao que tudo indica,

também por Home –, em diversos pontos do globo, atuação sem fronteiras como a de

Banksy. Os meios correntes que possibilitam a Banksy editar e publicar por si seus próprios

livros – compilações de suas obras e de suas idéias –, e bem vendê-los, são os mesmos

que o mesmo fazem por Blissett, igualmente editando e publicando os seus, inumeráveis

dada sua inumerabilidade autoral, somando desde uma co-autoria (dupla ou duplicada) com

203

ULLMO apud FOUCAULT, 2006, p. 296.

204

Literalmente, ‘aquele que corta, que fende’, no sentido original do lenhador. O termo hoje designa os curiosos e hábeis decifradores cibernéticos, capazes de explorar meandros de programas de computador, burlar sistemas de segurança digitais, invadir contas e espaços virtuais alheios – inclusive governamentais –, provocar viroses, usurpações, pirateamentos e demais terrorismos logísticos. A atividade não se resume ao gracejo ou ao crime, mas também à sua solução, tamanha a destreza, criando uma nova seara profissional: muitos hackers chegam a adentrar sítios considerados intransponíveis tão somente para se identificar e oferecer seus préstimos à contratação.

Home, Green Apocalypse205 (1999) até 54 (2006), de Wu Ming. A obra mais conhecida,

disponível inclusive no Brasil, talvez seja Guerrilha Psíquica (2001), com direito a farsesco

retrato do autor na capa; e a mais sintomática talvez já se anuncie em seu título, de

extensão inversamente proporcional à espessura, mais aproximada ao panfleto: Guy Debord

is really dead: the major failures of the Situationist International considered in their historical, cultural, psychological, sexual and especially political aspects, appended with the modest proposal that we cease allowing the traditions of the lead generations to dominate the lives of the living (1995).206

A especialidade primeira de Blisset: inserir-se no noticiário regular (como fez Banksy

nas passeatas), através de performances públicas geradoras de rumores igualmente

públicos, que se tornam alarmes (e ganham o estatuto de verdade) pela própria dinâmica do

repasse, pleno de acréscimos. Ou através do plantio direto de factícios nos veículos de

comunicação, pela competência para a invasão digital, falseando a autoria a renomados

jornalistas, ou até mesmo a renomados acadêmicos como Umberto Eco. De uma maneira

ou de outra, Blissett fez-se douto em criar enganosas manchetes, tomadas como factuais –

por tão bem executadas na Rua e tão bem detalhadas na Rede, sem faltar um iota –, e

então amplamente reproduzidas e divulgadas pela imprensa, em confusões noticiosas que

encamparam a credibilidade do comentarismo midiático – que facilmente abusa de se valer

de toda sorte de especialistas e, ainda assim, pouco especializar a matéria –, mensurando

pela ridicularização o esclarecimento proposto pelas mesas (tele)jornalísticas.

Demonstrando o quanto o excesso de informação tem aliviado essa mesma da

comprovação, a tem tornado pouco checada, embora – ou por – muito checável. E

descartável. Expondo os arsenais atuais de unir sabotagem cultural e guerrilha tecnológica,

apresentando os burlescos arsenais contemporâneos de burlar regras e éticas para

explicitar a burlaria de regras e éticas encontrável nas instituições corporativas, pautadas na

conjugação do benefício público ao benefício próprio. Aquilatando os arsenais

205

‘Apocalipse verde’, ‘Apocalipse ecológico’.

206

‘Guy Debord está realmente morto: os principais fracassos da Internacional Situacionista, considerados em seus aspectos históricos, culturais, psicológicos, sexuais e especialmente políticos, anexos à modesta proposição na qual nós deixamos de consentir às tradições das gerações mortas para dominar a vida ao vivo’.

contemporâneos fraudulentos de agir internamente a estruturas aparentemente sólidas e

inatingíveis, exclusivas e exclusivistas, como tática de apontar-lhes as ressalvas e

denunciar-lhes o domínio. E a sanha

sensacionalista. Agir tanto no lugar comum

quanto no lugar-comum, agir entretecido em

ambos os cernes públicos, ambas as

extremidades da significação, na circulação da

mensagem, na reviravolta. Soma de renovação e

inovação das frentes de batalha contra os

malefícios do capital, partidas da trincheira externa e chegadas à virose interna.

Trata-se de encontrar voz na contemporaneidade. Trata-se de uma nova ética em

formação, uma ética que, conjuntamente à psique humana e à psicopatia social, encontra-se

no cerne das contradições da sociedade contemporânea e no

calor de seus debates. Mas não menos ética por nova ou por

em formação. Uma ética diferençando a conivência da

conveniência. Uma ética que, enquanto obra de arte, decante

que “esta classe de ações contém certos limites auto-

impostos, próprios da condição estética. Como obras de arte,

estas ações possuem fronteiras internas específicas e/ou

momentos de neutralização. Embora situadas em um limite

ético provisório, redefinem este mesmo limite sem a intenção

de negá-lo”.207

Então a crítica cultural dos muros intentar-se multicultural – e acordar-se arte –,

(re)afirmando-se na condição humana, na globalização e na etnografia como fantasmagoria

de fronteiras, na manipulação bastante comprometida com a chegada da reportagem civil,

pareada, e do tempo real nas novas mídias, no admirável-mundo-novo selado pelo salto da

velocidade do pergaminho manuscrito para a velocidade do pensamento enviado na

207

MEDINA, 2005, p. 114 (tradução do autor).

No documento Onde Está Banksy? (páginas 127-131)