SUMÁRIO
FIGURA 132 – BANKSY,
na reversão de que “nosso sistema sócio-econômico requer a ‘diferença’, uma diferença
para ser codificada, consumida, erradicada”.240
A prática subcultural difere da prática contracultural [...] na medida em que recodifica os signos culturais mais do que propõe um programa revolucionário próprio [...] através de uma collage paródica de signos privilegiados de gênero, classe e raça que são contestados, confirmados, “consagrados”. [...] Diferente mas sem ser ainda o outro, o subcultural, no entanto, atrai o olhar sociológico. Na verdade, é em geral desconsiderado como um espetáculo de sujeição, mas essa é exatamente a sua tática: provocar a cultura principal para nomeá-la e, ao fazê-lo, nomear a si
mesmo. [...] E pode talvez se colocar (como) uma diferença (ou pelo menos
como uma “desafeição simbólica”) dentro do código.241
Em ineditismo, a hip-hop absteve-se da vitimação e apropriou-se da mercadoria de
sua própria expressão com tal muramento que impediu que qualquer (in)corporativo o
fizesse. Ineditismo que gerou notoriedade: “vários autores acreditam que a Hip Hop será
reconhecida como um movimento autêntico do século XX, com a mesma dimensão histórica
de um Cubismo, dos movimentos Dada e Bepop, à
qual presta tributo”.242 Ineditismo maior, fez tudo isso
preservando autenticidade – e credibilidade. Semi-
autonomia. Mantendo – ou centralizando – seu
caráter periférico, seu contexto original de instância
de excluídos que incluem-se por si; comprovam-no
as constantes e malsucedidas tentativas de unificação
pelo sistema (mercado da moda, publicidade, etc.),
tentativas de subordinação, absorção, conversão ou reinterpretação que jamais obtiveram
os resultados usuais.
240 FOSTER, 1996a, p. 224. 241 FOSTER, 1996a, p. 223-224. 242 TATE, 1998, p. 119.
A arte do que uma vez foi a periferia tende a adquirir (ou, em todo caso, a imitar) os padrões do mercado e a produção do centro, enquanto que, por sua vez, sua chegada traz novos critérios estéticos, políticos ou históricos ao funcionamento do establishment da crítica e museus da metrópole [...] até assuntos baseado em noções de “decência”.243
A hip-hop segue hermética e auto-sustentada – e notória – , por fim, o sistema (que
sempre se arrogou as tendências) é que teve de
adaptar sua estrutura às exigências dela – e
acolhê-la integral. Ela ultrapassou o reclame de
marginalidade que lhe fora definição para exercer
“pressão sobre as dimensões totalizantes da
cultura capitalista”,244 desafiou esta cultura com
seus próprios mecanismos fetichistas de privação e
evocações de desejo e, por consequência, nessa brecha do muro questionou a idoneidade
de aposição e a alegação comunal
daquela. Nessa fenda questionou a
alegação de idoneidade e
atemporalidade daquela – ou a
alegação de idoneidade e
atemporalidade de ambas, por
transmissão, por reflexividade. “Assim,
estas práticas indicam uma semi-
autonomia de gênero ou meio, mas de um modo reflexivo que se abre a questões
sociais”.245 A hip-hop impôs-se, e segue imposta.
Nas sociedades letradas, o mais importante empreendedor da memória é a escrita, que permite armazenar e transmitir a memória individual e coletiva. Nas sociedades orais, foi na pele que o homem registrou suas memórias,
243
MEDINA, 2005, p. 105 (tradução do autor).
244
FOSTER, 2003, p. 139 (tradução do autor).
245
FOSTER, 2003, p. 130 (tradução do autor).
FIGURA 134 – BANKSY, grafite/estêncil.
tatuou sua história. Hoje, nas sociedades multiculturais, a comunicação se faz por comportamentos, e a língua comum se manifesta nos gestos e nas atitudes, linguagens que envolvem diretamente o corpo. Sem território definido, a nação multicultural inventa territórios. Um deles, a cidade; o outro, o corpo. [...] Para o antropólogo italiano Massimo Canevacci, “a política não é mais ligada a dimensões sociais. Não há mais uma ligação com classe operária, salário, etc., mas com cultura, comunicação, consumo. A cultura num sentido antropológico, de modo de viver, de se vestir. As roupas, os signos, o corpo, as tatuagens, cicatrizes, tudo isso tem uma importância fundamental. Cultura, comunicação e consumo – tal é a política atual. Não para conquistar o poder, mas conquistar espaço, ou não-espaço”. [...] O corpo passa a ser um território. [...] Grafite e tatuagem são linguagens tão antigas quanto o homem e reaparecem em nosso cotidiano traduzidas e re- significadas para nossos suportes e crenças. Corpo e espaço híbridos, construídos na diversificação multicultural, contam o enredo do labirinto de crenças, mitos e desejos que se cruzam no dia-a-dia nas malhas do urbano. São veículos e vinculadores de comunicação que pertencem a uma sociedade que crê no simulacro, no fetiche e que procura na democratização da cidade e do corpo a expressão da liberdade, língua homogênea de interação.246
Imediatamente posterior à (ainda muito presente) hip-hop, e tanto reverberando sua
esfera comportamental quanto sua individuação que interioriza a cidade – unifica a cidade –
Banksy aspira ao capítulo mais recente da história estilística do grafite, que faz eco,
consciente ou não, ao apelo populista (porque procura o povo) e popular (porque no povo se
encontra) de todos os Muralismos, e que não só aceita como compraz-se da convivência
dos pólos e das fímbrias: a simplicidade do primordial e a sofisticação (referencialista) do
contemporâneo, num “sistema de escrita em que a elaboração verbal mais diferenciada e
246
ANTONACCI, 2002, não paginado.
mais sutil encontra-se lado a lado com o riscado mais primitivo”.247 Para o grafiteiro, não há
qualquer problema, e sim natural e confortável aptidão ao “desafio que se colocou para as
vanguardas: representar a metrópole moderna como o espaço da simultaneidade de tempos
históricos diferentes”,248 ruínas inclusas, onde “o longínquo de países ou épocas irrompe na
paisagem e no instante presente”,249 gruas inclusas – demonstrando uma vivência (assídua,
assertiva, aceite e assistente) da atualidade extrema, que contém em si o entendimento
intuitivo e de antemão daquilo que o historiar mais recente precisou elaborar e provar.
Banksy é epítome dessa página última da história estilística grafiteira, que parte de
um expressionismo abstrato, o estágio clássico, firma-se em um pop-psicodélico, virtuose, e
agora alcança probidade interpretativa, funcionalidade conceitual, sem abandonar seus
termos.
Banksy é dessa cepa de grafiteiro, e dela é expoente. É um ‘arte-terrorista’, é um
artista de guerrilha, no que as locuções comportem em nossos dias. Primeiramente, porque
“há determinados casos em que a guerrilha urbana atinge níveis estéticos, transcendendo
amplamente a função puramente política [...] para a criação de uma nova cultura”.250 E
também pela fetichização e ambivalência simbólica com as quais se reinvestem ou
recuperam os signos e as mercadorias, pois “nosso sistema sócio-econômico requer a
‘diferença’, uma diferença para ser codificada, consumida, erradicada”.251
247 BOLLE, 1999, p. 153. 248 BOLLE, 1999, p. 159. 249 BENJAMIN, 2007, p. 464. 250
CAMNITZER, in: FERREIRA, 2006, p. 273.
251
FOSTER, 1996a, p. 224.
FIGURA 138 – À esq., BANKSY, grafite/estêncil. Ao centro,
WALKER, Nick, grafite/estêncil. À dir., DOLK, grafite/estêncil.
FIGURA 137 – BASQUIAT, Jean
Essa procura ansiosa não só pode comprometer a recuperação do reprimido ou a diferença perdida (sexual, social, etc.); também pode promover a fabricação de falsas diferenças, codificadas para o consumo. E, se a diferença pode ser fabricada, também a resistência pode sê-lo. Aqui emerge a possibilidade de a marginalidade crítica ser um mito, um espaço ideológico de dominação onde, sob o disfarce do romantismo liberal, a diferença real seja erradicada, e a diferença artificial, criada para ser consumida.252
Banksy surge nos privilégios de um país desenvolvido e rico, mas, por outro lado,
também nasce no berço da indústria e de sua conseqüente necessidade sindical. Elizabeth
Wolff, então estagiária do jornal The Guardian, que acompanhou o jornalista Simon
Hattenstone numa das raras entrevistas concedidas pessoalmente (ou personalmente) por
Banksy, acentua: "Ele foi a pessoa mais encardida que eu já encontrara. Ele se parecia com
alguém de um dessas cidades industriais britânicas do século dezenove. Havia uma capa de
poeira nele".253 A acrescer a pantomima, acrescentar-se-ia a pronúncia cockney, algo entre
o dialeto, o sotaque e a gíria, uma musicalidade de locução, uma ginga sonora, uma
expressividade picaresca – como dizer rocknrolla ao invés de rock’n’roll. Um molde de
linguajar das classes mais baixas, nascido na pobreza e no trabalho braçal, crescido na
dignidade, na altivez. Um proferir preferido, de si ciente, de si orgulhoso.
Pendular entre as inglesas Bristol e Londres, desapropria e abriga no codinome a
identidade, de todo incógnita. Seu nome próprio (nome que sempre se liga a uma
subjetividade privada) é desconhecido; sua imagem, quando aparece, é de face
inapreensível, sorrelfa – necessidades da ilegalidade de sua arte, mas também, ou
principalmente, da desavença à celebridade. Trata-se de um artista fugidio: procurado, sua
acessibilidade escorre entre os dedos.
A amálgama de contemporaneidade e anonimato permite proezas, permite
arquitetar-se em terceira pessoa (atestam as três coletâneas editadas de seus trabalhos
serem de sua própria autoria), permite inventar a si próprio como autor independentemente
252
FOSTER, 1996a, p. 225.
253
da curadoria, da aprovação, da validação crítica, permite autorizar a si mesmo em seus
múltiplos e multiplicáveis sítios, reais e virtuais – com a pontaria do Humor e o auxílio da
eficácia da Rede e da eficácia da Rua, onde a arte é direcionada diretamente ao passante e
a ele imposta, não mediada, abrangendo um grande, heterogêneo, anônimo e indefinido
número de pessoas, um espectador móvel, em mobilidade; um público incontornável,
público superexposto, por testemunho (obrigatório e habitual) já conhecedor dos cânones da
grafitagem. Então o entendimento é mais imediato, anexa cognição prévia, e a crítica é
quase sempre inaudível, inócua, não mediadora. Ricocheteia no muro.
A forma, portanto, dispõe-se à função, que em Banksy
é o zelo, o questionamento, o fazer pensar, o espelhamento-
para-reflexão, a incitação. Mais a interrogação que a
exclamação. O fomento, o incentivo. Os talheres.
Para o artista que se pretende político no
contemporâneo, essa – e apenas essa – é a senda de
atuação que honra à Arte. Menos é tão somente retórica.
Mais não lhe cabe, é resvalar para o messianismo, é valer-se
da Arte para a manipulação, na mesma manobra do próprio
alvo crítico. Bons humoristas, como Banksy, sabem a
diferença; bons humoristas sabem o tom certo, num comportamento efetivo sem pressão,
eficiente sem alarde, competente sem desgaste.
Ele interpreta a iconoclastia dos movimentos sectários plebeus [...] como um protesto radical contra a independentização do estímulo sensível, posto que uma arte orientada para a instrução moral é plenamente reconhecida [...], tenta dar provas de que a arte [...] estaria apta a cumprir uma tarefa que por nenhuma outra via pode ser cumprida: o fomento.254
254
BÜRGER, 2008, p. 88-97 passim.