SUMÁRIO
FIGURA 87 – BANKSY,
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. [...] A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”. [...] O materialismo histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialismo histórico faz desse passado uma experiência única. O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. [...] Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.151
No entanto, tornou-se ordem do dia aquilo que o situacionismo não poderia prever: o
multifacetado sobrepujando-se ao bipolar, e as falhas no sistema, os desencaminhamentos
que abolem noções de rota, de linearidade de crescimento e sucessão histórica, de
evolução recusando, respondendo ou acrescentando ao anterior imediato.
Não é fácil estabelecer o estatuto das descontinuidades para a história em geral. Menos ainda, sem dúvida, para a história do pensamento. Pretende- se traçar uma divisória? Todo limite não é mais talvez que um corte arbitrário num conjunto indefinidamente móvel. [...] O descontínuo – o fato de que em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo – dá acesso, sem dúvida, a uma erosão que vem de fora, a esse espaço, que, para o pensamento, está do outro lado, mas onde, contudo, ele não cessou de pensar desde a origem. Em última análise, o problema que se formula é o das relações do pensamento com a cultura: como sucede que um pensamento tenha um lugar no espaço do mundo, que aí encontre como que uma origem, e que não cesse, aqui e ali, de começar sempre de novo? [...] Bastará pois, por ora, acolher essas descontinuidades na ordem empírica, ao mesmo tempo evidente e obscura, em que se dão.152
151
BENJAMIN, 1994, p. 224-232 passim.
152
Historiadores contemporâneos, como o próprio Hobsbawm (2000), e também
Jacques Le Goff (“Sob a História, com H maiúsculo, existem as histórias; sob as venturas ou
desventuras, existem narrativas individuais”;153 “A cidade contemporânea, apesar das
grandes transformações, está mais próxima da cidade medieval do que esta última da
cidade antiga”154), defendem que a História está mais para os arcos e menos para as
flechas, não é reta e fixa em alvo, não movimenta-se por eventos, por sucedâneos, em
evolução e progresso. Não se encerra nos termos das ideologias, nem é necessariamente
ruptura, inversão, revolução. Ou continuidade, ou soma. Nem tampouco é necessariamente
entropia, aleatoriedade, relativismo. Nem tragédia, nem graça, nem farsa.
Ao contrário, é possível, e necessário – até imprescindível – alinhavar fechos
separados no tempo e no espaço, num exercício relacional; inventar uma perspectiva, uma
ordem, aceitando amplitudes e simultaneidades. Dispor esses fechos, essas junções
potenciais, descobrindo “sua posição dentro do conjunto e de acordo com as predisposições
e tendências de cada uma”.155 Incorporar a multiculturalidade e a polissemia, encorajar-se à
interpretação, particularmente no que tange à história da arte, como proposto por Argan:
conjugar a ‘história externa’ (investigativa, analítica e testemunhal) e a ‘história interna’
(motivacional, intencional, vivencial, portanto interpretativa).
153 LE GOFF, 1998, p. 50. 154 LE GOFF, 1998, p. 25. 155 PAZ, 1969, p. 40-41.
FIGURA 88 (à esq.) – BANKSY, interferência sobre reprodução de The interior of Buurkerk at Utrecht, de
E mais: conscientizarmo-nos que estamos mesmo, para o bem ou para o mal, às
portas de uma nova era. Estamos no fim da metamorfose à qual mal nos demos conta:
durante tanto tempo voltamos o olhar para o futuro – agora estamos nele. Estamos prestes.
Era das Conseqüências.
Era que se comprova pela realidade apresentar-se tencionada, extremada. Era que
se anuncia em surpresas e redirecionamentos, que surgem da urgência de um mundo
superpovoado, poluído e de configurações
sociais e recursos naturais sucateando, numa
“palpável transformação da temporalidade
nas nossas vidas, provocada pela complexa
interseção de mudança tecnológica, mídia de
massa e novos padrões de consumo,
trabalho e mobilidade global”.156 E que
surgem da inquietação e da criatividade de
uma elite cultural (mais até do que política) e de uma elite científica (mais até do que
cultural), e encontram eco e cada vez mais rápida aprovação, absorção e expansão nas
massas. “Nenhum período da história foi mais penetrado pelas ciências naturais nem mais
dependente delas do que o século XX [...] O fato de que o século XX dependeu da ciência
dificilmente precisa de prova”.157
Além disso, graças em parte à espantosa explosão de teoria e prática da informação, novos avanços científicos foram se traduzindo, em espaços de tempo cada vez menores, numa tecnologia que não exigia qualquer compreensão dos usuários finais. O resultado ideal era um conjunto de botões ou teclado inteiramente à prova de erro, que requeria apenas apertar-se no lugar certo para ativar um procedimento que se movimentava, se corrigia e, até onde possível, tomava decisões, sem exigir maiores contribuições das qualificações e inteligência limitadas e inconfiáveis do ser humano médio. Na verdade, idealmente, podia-se programar o procedimento para dispensar de todo a intervenção humana, [...] a menos
156
HUYSSEN, 2000, p. 25.
157
HOBSBAWN, 1995, p. 504-506.
ou até que alguma coisa desse errado, esses milagres de tecnologia científica de fins do século XX não exigiam mais dos operadores que [...] um mínimo de atenção e uma capacidade um tanto maior de concentrada tolerância ao tédio. Não exigia sequer alfabetização. [...] O aprendiz de feiticeiro não precisava mais preocupar-se com sua falta de conhecimento.158
Grandes e reestruturadoras mudanças cuja ilação tanto origina-se quanto origina (e
conduz) a pluralização da comunicação; as novas
modalidades de encontro; a veloz circulação planetária dos
conceitos, das idéias, dos conhecimentos, dos aprendizados,
dos verbos; a expedita rotação dos produtos culturais, em
penetração e proporção inéditas e agigantadas; a revolução
tecnológica dos cabos, das fibras óticas, dos dispositivos de
localização e mapeamento individual que depõem o extravio,
dos aparatos eletrônicos que miniaturizam-se e acrescentam-
se em continuidade ao cotidiano e ao corpo, transformando
ambos. O feitiço das imagens potencializa-se ainda mais na individuação: a câmara
fotográfica e também a filmadora foram para o bolso; cada um com seu quinhão, a preços
de ocasião – se via cópia não-autorizada manufaturada por mão-de-obra semi-escrava, a
preços ainda mais de ocasião.
Registro e captura à mercê da mais tênue vontade, envio em multiplicada expedição.
Individuação, ecceidade. Portabilidade.
Assim a ciência, através do tecido saturado de tecnologia da vida humana, demonstra diariamente seus milagres ao mundo de fins do século XX. É tão indispensável e onipresente – pois mesmo os mais remotos confins da humanidade conhecem o rádio transistorizado e a calculadora eletrônica – quanto Alá para o muçulmano crente. É discutível quando essa capacidade de certas atividades humanas produzirem resultados sobre-humanos se tornou parte da consciência comum, pelo menos nas partes urbanas das
158
HOBSBAWN, 1995, p. 509-510.