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FIGURA 110 – BANKSY,

No documento Onde Está Banksy? (páginas 131-136)

SUMÁRIO

FIGURA 110 – BANKSY,

grafite/estêncil.

comunicação eletrônica; selado nas ofertas ao convívio, tece a “safra recente de estudos

sobre a riqueza da vida cotidiana e o papel das mediações culturais na relação com a

mídia”208 – ancorando ser o artista urbano dos que melhor se harmonizam, se aproveitam e

se apropriam, por a metrópole ser o mais bem acabado retrato destes dias, e, no bom

senso de oportunidade do artista circunstancial, circunstante e mundano, afigurar-se

também dos melhores suportes. Para o grafiteiro, a melhor superfície, a melhor estratégia e

o melhor comprometimento sempre serão o

espaço da cidade irresoluta, os paradigmas

ocidentais em geral, a sintaxe metaestável, estável

de instabilidades: tanto seus limites estruturais

quanto seus limites sociais, bem como as

circulações, definidoras e redefinidoras, de uns

para os outros. Incluso nelas, o grafite renova-se.

Suas tendências contemporâneas evidenciam,

suas renovações éticas testemunham que a tropa grafiteira não assenta seus

acampamentos. Respeitante a seus rituais, à sua dogmática maneira, o grafite caminha.

Transforma-se. Forma-se. Para tal, não há hoje melhor exemplo que o coletivo Graffiti

Research Lab209, que, preservando o divergente paralelismo ao raciocínio da máquina do

consumo (referenciando-se à logística cartazista – no que esta se atualizou e (i)materializou

em telas e luminosos), contemporanizou-se na pesquisa de pontos de luz em substituição à

tinta, pontos de luz que são a própria representação e o enquadramento do retrato noturno

das metrópoles. Trata-se de diminutos leds210 coloridos, presos a igualmente diminutas

baterias (que os mantêm acesos por algumas horas), e também a diminutos ímãs (que os

tornam aderentes como os grafites e seus pares – adesivos, lambe-lambes, etc.). Essas

pequeninas luzes são arremessadas à noite, em grande quantidade, em direção à vasta

208

FILHO, 2003, p.44.

209

‘Laboratório de Pesquisa Grafiteira’.

210

Sigla em inglês para Light Emmiting Diode, ‘diodo emissor de luz’, um semicondutor eletroluminescente.

gama de superfícies metálicas presentes no urbano (que demonstram que a cidade, hoje, é

tão metal quanto é concreto quanto é asfalto).

Esses arremessos não têm o modo certeiro dos tiros; pelo contrário, atentam ao

movimento e buscam os mais diversificados caminhos entre o braço e a aderência, num

festival de inúmeros pontos coloridos simultaneamente lançados por várias pessoas, que

privilegia a ação, o happening, e que por fim cria verdadeiros acúmulos de colorações

luminosas e brilhantes, formas sem total controle que variam do alto teor de acaso à

completa abstração – como muitas pichações.

Belas obras, de essência tão grafiteira quanto contemporânea. Na aplicabilidade

exclusivamente noturna, a lealdade às tradições do grafite. Na efemeridade das pequenas

baterias, a renovação tecnológica e o aprofundamento dessas mesmas tradições – e a

renovação e o aprofundamento da consciência da impermanência que é a face de tantas

vertentes artísticas pós-industriais.

Acaso e impermanência (e seu bom uso), como já dito, são dois pilares essenciais

da construção da contemporaneidade nas artes. Sua inata aceitação pelo grafiteiro

(empírica porque dada pela experiência sensível, intuitiva porque apreendida direta, clara e

imediatamente da realidade), seu proveito e sua vantagem, possibilitam agora um novo

capítulo do que já se pode considerar a história estilística do grafite, que sobrepõe (e de

certa forma revaloriza) a inscrição e a simples e simplória presença e ocupação do entorno

que estão tanto na gênese das artes ocidentais quanto na matriz e na herança genética dos

muros, por contigüidade.

FIGURAS 112 (à esq.), 113 (ao centro) e 114 (à dir.) – GRAFFITI RESEARCH LAB, performance,

A genealogia de toda arte mural, grafite incluso, está na direta descendência das

pinturas das cavernas e dos abrigos

rochosos do Paleolítico Final, anteriores à

escrita, das nossas mais antigas

manifestações artísticas conhecidas, desde

então oscilantes entre modesto primitivismo

e surpreendente segurança e requinte,

desde então evidenciando o talento de seus

artistas e o papel relevante que a arte

desempenha na vida comunitária. A própria dição ‘grafite’ relaciona-se primeiramente às

gravações obtidas raspando a superfície da pedra.

Nos rituais dos povos caçadores, esses traçados e grafismos precedem a invenção da escrita, acompanham a narração oral e a encenação dos mitos [...], colocando-se portanto como uma janela sobre o mundo da imaginação. [...] Com a elaboração de símbolos, o homem consegue em seguida registrar seu pensamento de maneira mais inteligível. Devido à sua faculdade de comunicar informações complexas à distância e no tempo, estes signos contribuíram para a aglomeração dos seres humanos.211

Tais pinturas nunca se descobrem facilmente acessíveis, próximas às entradas das

cavernas, mas sim em seus recantos mais profundos, sendo comumente preciso rastejar

por acanhadas passagens para alcançá-las. Também agora, é comum se aventurar por

becos escuros e espaços recônditos para encontrar as atuais pichações, e é já conhecida a

hierarquia entre seus autores: quanto mais inacessível e arriscado o local-suporte, tanto

maior o mérito, mais alta a casta e a patente do autor entre seus pares (posto que eles se

reconhecem menos pela assinatura e mais pelo traço, pelo gesto; ou por atributos

propositada e repetidamente inseridos nos trabalhos). Por conseguinte, encontramos

imagens no alto de edifícios ou nos arcos sob viadutos, poucos metros acima de

movimentadas avenidas e rios poluídos.

211

BAGNARIOL, 2004, p. 9.

Policiais e seguranças sempre usam bonés com uma pala que vai até pouco acima dos olhos. Aparentemente essa é uma técnica psicológica, pois as sobrancelhas são muito expressivas, elas te deixam na mão se você estiver mentindo ou tentando intimidar alguém. Você tem muito mais autoridade se as mantiver cobertas. A vantagem disso é que torna difícil para nosso policial médio ver qualquer coisa além de um metro e setenta a partir do chão. O que explica porque grafitar topos de construções e pontes é tão fácil.212

No caso de Banksy, encontramos suas obras inseridas dentro mesmo dos museus e

galerias, num ‘risco’ e num enfrentamento de seus ‘naturais oponentes’, sob seu ponto de

vista. Banksy: “Pintar algo que desafie a lei da terra é bom. Pintar algo que desafie a lei da

terra e a lei da gravidade ao mesmo tempo é ideal”. 213

Pelos retratos dos animais saraivados de lanças, quase sempre de perfil ou com a

cabeça virada para trás, como em fuga, aduz-se que os mitogramas tenham obedecido ao

propósito de assegurar o êxito na caça, tão comumente representada, como se figurar os

animais alvejados por dardos e azagaias fosse tê-los ao arbítrio; como se a morte traçada

garantisse a morte real, ou ao menos garantisse a coragem e a confiança para arrostá-los

com rudimentares armas – possibilidade replicada pela raridade da representação de feridas

e por pequena porção dos modelos (até o momento) não se verificarem parte usual da

alimentação dos caçadores. Numa ação arquetípica de concepção repetitiva e circular dos

212

BANKSY, 2001, p. 36 (tradução do autor).

213

BANKSY, 2005, p.81 (tradução do autor).

FIGURA 116 – BANKSY, pincel atômico sobre pedra – obra inserida

clandestinamente no Museu Britânico de Londres, e por decisão deste, incorporada ao acervo. Seu título, Wall Art [Arte Mural], alude à rede de supermercados Wall Mart. Em sua ficha técnica, também confeccionada por Banksy, lê-se: Arte Mural – Leste de Londres: Este exemplar primorosamente preservado de arte primitiva data da era Pós- Catatônica, e acredita-se descrever o homem primordial aventurando-se pelas áreas de caça da periferia da cidade. O artista responsável é conhecido por ter criado um substancial corpo de trabalhos pelo sudeste da Inglaterra sob a alcunha Banksymus Maximus, mas pouco mais se sabe sobre ele. A maior parte deste tipo de arte infelizmente não sobreviveu. A maioria é destruída por zelosos funcionários municipais, que não reconhecem o mérito artístico e o valor histórico de untar os muros. PRB 17752,2-2,1

acontecimentos, habitual do pensamento indômito, talvez o usual realismo de representação

se prestasse, autópsia inversa, a dar-lhes vida, a animá-los, a criar os animais – em

indistinção entre figuração e realidade – e por efeito aumentar o abastecimento do qual

dependia a sobrevivência, como uma ritualização da abundância e da fertilidade. Ou, ainda,

obedecia-se ao ímpeto de ornar, de ocupar, de preencher e, assim, apoderar-se do espaço,

fazer-se importante, presente e dono. Hoje, a grafitagem é bastante difundida entre aqueles

de classe operária ou de classe nenhuma, de pouca renda e pouca oportunidade, aqueles

sem acesso à palavra, reflexo de um moderno ritual de abundância e fertilidade, ou de

conquista e posse. De exigência do verbo e da imagem como

assinaturas da existência, pois “ao projetar imagens sobre

uma superfície plana, o ser humano exprime seu próprio

universo interior. Tornando-se criador de formas, ele pode

conhecer e enxergar a si mesmo”214 e igualar-se em

importância, como auto-inclusão, consideração e desígnio,

como superação imaginária da facticidade majoritariamente

insuperável. ‘Escreveu no muro’, da mesma forma que ‘leia na minha camisa’, é gíria que

bem conota a soma de pleito, aposta e certeza. Posição assumida, partido tomado.

Inscrição feita através de inscrição. Banksy:

Ah, essa é a chave do grafite: o posicionamento. [...] Sim, é tudo sobre retribuição mesmo. [...] Apropriar-se com uma marca trata de retribuição. Se você não possui uma companhia de trens, então você vai e grafita sobre um deles em substituição. Tudo vem daquela coisa na escola quando você tinha de ter seu nome marcado nas costas de alguma coisa – aquilo a faz pertencer a você. Você pode ser dono de metade da cidade rabiscando seu nome sobre ela. 215

Em seus primeiros trabalhos, Banksy também fizera uso das grandes tags – as

conhecidas e reconhecíveis marcas, os apelidos, as assinaturas excessivamente gráficas,

214

BAGNARIOL, 2004, p. 9.

215

BANKSY, 2003, não paginado. Entrevista a Simon Hattenstone (tradução do autor).

No documento Onde Está Banksy? (páginas 131-136)