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4 Evolução dos conceitos

4.5 A crise dos fundamentos e as tentativas de superação

4.5.1 A figura de David Hilbert

Para David Hilbert (1862 - 1943) e outros, o problema de estabelecer fundamentos rigorosos era o grande desafio ao empreendimento de tantos, que pretendiam reduzir todas as leis científicas a equações matemáticas. Ele acreditava que tudo na matemática poderia e deveria ser provado a partir dos axiomas básicos. O resultado disso levaria a demonstrar conclusivamente, segundo ele, os dois elementos mais importantes do sistema matemático. Em primeiro lugar a matemática deveria, pelo menos em teoria, ser capaz de responder a cada pergunta individual – este é o mesmo espírito de completude que no passado exigira a invenção de números novos, como os negativos e os imaginários. Em segundo lugar, deveria ficar livre de inconsistências – ou seja, tendo-se mostrado que uma declaração é verdadeira por um método, não deveria ser possível mostrar que ela é falsa por outro método. Hilbert estava convencido de que, tomando apenas alguns axiomas, seria possível responder a qualquer pergunta matemática imaginária, sem medo de contradição. O esforço para

* A tese logiscista compõe-se de duas partes: 1)Toda idéia matemática pode ser definida por intermédio de conectivos lógicos (classe ou conjunto, implicação, etc.); 2)Todo enunciado matematicamente verdadeiro pode ser demonstrado a partir de princípios lógicos (“não contradição”, “terceiro excluído”, etc.), mediante raciocínios puramente matemáticos.

Para Brower, fundador desta escola – na verdade um radicalizador das teses de Kronecker que não aceitava a teoria dos conjuntos – o saber matemático escapa a toda e qualquer caracterização simbólica e se forma em etapas sucessivas que não podem ser conhecidas de antemão: a atividade do intelecto cria e dá forma a entes matemáticos, aproximando-se do apriorismo temporal de Kant.

Os logicistas tiveram de apelar a princípios extra-lógicos – axioma de Zermelo, axioma do infinito – que ainda hoje encontram-se sujeitos a calorosos debates e fortes reparos.

§ Caminho praticado por Hilbert no seu famoso trabalho Fundamentos da Geometria (1899), onde axiomatizou de modo rigoroso a geometria euclidiana.

reconstruir logicamente o conhecimento matemático acabou sendo liderado por essa figura, talvez a mais eminente da época.

No dia 8 de agosto de 1900, Hilbert deu uma palestra histórica no Congresso Internacional de Matemática em Paris. Ele apresentou 23 problemas não-resolvidos da matemática que acreditava serem de imediata importância. Alguns problemas relacionavam-se com áreas mais gerais da matemática, mas a maioria deles estava ligada aos fundamentos lógicos dessa ciência. Tais problemas deveriam focalizar a atenção do mundo matemático e fornecer um programa de pesquisas. Hilbert queria unir a comunidade para ajudá-lo a realizar sua visão de um sistema matemático livre de dúvidas ou inconsistências[Sin99]. Todos esses estudos denominaram-se Metamatemática ou Metalógica, pela conectividade das duas.

Ele propôs-se a demonstrar a coerência da aritmética*, para depois estender tal

coerência aos âmbitos dos demais sistemas. Apostou na possibilidade da criação de uma linguagem puramente sintática, sem significado, a partir da qual se poderia falar a respeito da verdade ou falsidade dos enunciados. Tal linguagem foi e é chamada de sistema formal, e está resumida no anexo A concepção formalista da matemática. Isto, que fazia parte do centro da doutrina formalista, mais tarde estimularia Turing a fazer descobertas importantes sobre as capacidades das máquinas. Registre-se também que John von Neumann, a quem muitos atribuem a construção do primeiro computador, era um aluno de Hilbert e um dos principais teóricos da escola formalista†.

* No início do século XX a matemática estava reduzida a 3 grandes sistemas axiomáticos: aritmética, análise e conjunto, sendo o mais fundamental o primeiro. Era natural que ele escolhesse esse sistema.

John von Neumann falava 5 línguas e foi um brilhante logicista, matemático e físico. Além de lhe ser atribuída a invenção do primeiro computador, ele estava no centro do grupo que criou o conceito de “programa armazenado”, que potencializou extremamente o poder computacional das máquinas que então surgiam.

Figura 16: Professor David Hilbert

Interessam agora dois problemas da referida lista de 23. O segundo, relacionado com a confiabilidade do raciocínio matemático (isto é, se ao seguir as regras de determinado raciocínio matemático não se chegaria a contradições), e, ligado a ele, o problema de número dez. Este era de enunciado bastante simples: descreva um algoritmo que determine se uma dada equação diofantina do tipo P(u1,u2,...,un) = 0, onde P é um polinômio com coeficientes

inteiros, tem solução dentro do conjunto dos inteiros. É o famoso problema da decidibilidade, o

Entscheidungsproblem. Consistia em indagar se existe um procedimento mecânico efetivo para

determinar se todos os enunciados matemáticos verdadeiros poderiam ser ou não provados, isto é, se eles poderiam ser deduzidos a partir de um dado conjunto de premissas*. Para

entender um pouco mais sobre decisão na matemática, ver o anexo O problema da decisão na

Matemática.

Também a questão da consistência, como já foi dito, era decisiva para ele, pois é uma condição necessária para o sistema axiomático do tipo que ele tinha em mente. Aristóteles já tinha mostrado que se um sistema é inconsistente, qualquer afirmação poderia ser provada como falsa ou verdadeira. Neste caso não seria possível haver um fundamento sólido

* A simplicidade do problema de Hilbert é apenas aparente, e somente após 70 anos de esforços foi encontrada a solução, por Matijasevic, um matemático russo de apenas 22 anos na época. É uma solução bastante complexa, dependendo tanto de resultados da Teoria do Números, conhecidos há muitíssimos anos, como do trabalho anterior de três americanos, Martin Davis, Julia Robinson e Hilary Putnan, que por sua vez baseia-se em certos resultados fundamentais sobre lógica e algoritmos descobertos na década de 30 por Kurt Gödel, Alan Turing, Emil Post, Alonso Church e Stephen Kleene. A resposta a esse problema de Hilbert é: tal algoritmo não existe: o décimo problema é indecidível.

para qualquer tipo de conhecimento, matemático ou não. Anos mais tarde, em 1928, no Congresso Internacional de Matemáticos, realizado em Bolonha, Itália, Hilbert lançou um novo desafio, que na verdade somente enfatizava aspectos do segundo e do décimo problema já descritos. Hilbert queria saber se é possível provar toda assertiva matemática verdadeira. Estava buscando algo como uma “máquina de gerar enunciados matemáticos verdadeiros”: uma vez alimentada com um enunciado matemático, poderia dizer se o enunciado é falso ou verdadeiro [Cas97]. É um problema que está relacionado com o citado projeto hilbertiano da busca de um sistema formal completo e consistente.

Ao mesmo tempo, em 1927, com 22 anos, von Neumann publicou 5 artigos que atingiram fortemente o mundo acadêmico. Três deles consistiam em críticas à física quântica, um outro estabelecia um novo campo de pesquisas chamado Teoria dos Jogos, e, finalmente, o que mais impactou o desenvolvimento da Computação: era o estudo do relacionamento entre sistemas formais lógicos e os limites da matemática. Von Neumann demonstrou a necessidade de se provar a consistência da matemática, um passo importante e crítico tendo em vista o estabelecimento das bases teóricas da Computação (embora ninguém tivesse esse horizonte por enquanto).

Já foi citado, no capítulo sobre o Desenvolvimento da Lógica Matemática, o desafio dos matemáticos do início do século de aritmetizar a análise. Eles estavam de acordo, no que diz respeito às proposições geométricas e outros tipos de afirmações matemáticas, em que poderiam ser reformuladas e reduzidas a afirmações sobre números. Logo, o problema da consistência da matemática estava reduzido à determinação da consistência da aritmética. Hilbert estava interessado em dar uma teoria da aritmética, isto é, um sistema formal que fosse finitisticamente descritível*, consistente, completo e suficientemente poderoso para descrever

todas as afirmações que possam ser feitas sobre números naturais. O que Hilbert queria em 1928 era que, para uma determinada afirmação matemática, por exemplo, “a soma de dois números ímpares é sempre um número par”, houvesse um procedimento que, após um número finito de passos, parasse e indicasse se aquela afirmação poderia ou não ser provada em determinado sistema formal, suficientemente poderoso para abranger a aritmética ordinária [Cas97]. Isto está diretamente relacionado com o trabalho de Gödel e Alan Turing.

Pode-se afirmar que, em geral, a lógica matemática prestou naqueles tempos maior atenção à linguagem científica, já que seu projeto era o da elaboração de uma linguagem lógica de grande precisão, que fosse boa para tornar transparentes as estruturas lógicas de teorias científicas. Tal projeto encontrou seus limites, tanto na ordem sintática como na ordem semântica (por exemplo, com os célebres teoremas de limitação formal). Este fenômeno levou a uma maior valorização da linguagem ordinária, que, apesar de suas flutuações e imprecisões, encerram uma riqueza lógica que os cálculos formais não conseguem recolher de todo. Dentro da própria matemática – como se verá mais adiante com Gödel – há verdades que não podem ser demonstradas mediante uma dedução formal, mas que podem ser demonstradas – o teorema da incompletude de Gödel é uma prova disso – mediante um raciocínio metamatemático informal. A partir desse propósito de construção de uma

* O termo finitístico é usado por vários autores. Hilbert quis dizer que tal sistema deveria ser construído com um número finito de axiomas e regras e toda prova dentro do sistema deveria ter um número finito de passos.

linguagem ideal surgiu a filosofia da linguagem (Moore, Wittgenstein, Geach em sua segunda etapa) colocando as questões lógicas sobre nova ótica [San82].

Na verdade, tanto a lógica matemática em sentido estrito como os estudos de semântica e filosofia da linguagem depararam-se com problemas filosóficos que não se resolvem somente dentro de uma perspectiva lógica. Há questões de fundo da lógica matemática que pertencem já a uma filosofia da matemática.

Todos esses desafios abriram uma porta lateral para a Computação e deram origem a um novo e decisivo capítulo na sua História. Da tentativa de resolvê-los ocorreu uma profunda revolução conceitual na Matemática – o Teorema de Gödel – e surgiu o fundamento básico de todo o estudo e desenvolvimento da Computação posterior: a Máquina de Turing.

4.6 Kurt Gödel: muito além da lógica

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Kurt Gödel (1906 – 1978) não desfruta do mesmo prestígio de outros cientistas contemporâneos seus, como Albert Einstein. Possivelmente contribua para isto o fato de que suas descobertas se produziram em um campo, o da lógica matemática, próprio das ciências formais, e não em algum ramo da ciência que tenha influenciado diretamente no conjunto da sociedade.

No entanto, suas grandes contribuições à lógica formal se estendem – segundo seus biógrafos – muito além do seu estrito âmbito formal e abordam questões tão vastas e espinhosas como a natureza da verdade, o conhecimento e a certeza. Pode-se afirmar que, junto com a teoria da relatividade de Einstein e o princípio da incerteza de Heisenberg, o teorema da incompletude de Gödel despertou a ciência moderna de seu “sonho dogmático”.