Tavares. Crédito: Jason Reed/Reuters. Disponível em: <http://fronteiralivre.ig.com.br/index.php/2009/07/10/imagem‐de‐obama‐supostamente‐ observando‐brasileira‐causa‐polemica/>. Acesso em: 2 de maio de 2016.
Porém, com a divulgação de um vídeo, absolveu‐se Obama e considerou‐se que ele apenas estava virando naquele momento exato da fotografia para ajudar a mulher que estava no degrau de cima a descer. Apesar de causar uma discussão nada profunda sobre o caráter de Barack Obama, o ocorrido foi uma ótima amostra de como é o funcionamento da fotografia e das outras imagens técnicas. Elas não refletem a verdade. Apenas reproduzem imagens, de acordo com a sua programação que retratam um pequeno momento, um milésimo de segundo, sob certo um ângulo e certas condições de luz.
[...] O homem se esquece do motivo pelo qual imagens são produzidas: servirem de instrumentos para orientá‐los no mundo. Imaginação torna‐se alucinação e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstruir as dimensões abstraídas. (FLUSSER, 2011, p. 24)
Ou seja, a fotografia é apenas um pequeno recorte da realidade que, sem a sua contextualização (reconstrução das dimensões abstraídas) e compreensão de
funcionamento do aparelho (mediação), será encarada como a realidade. Isso ocorre pois
O caráter aparentemente não‐simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas e não imagens. O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia nos seus próprios olhos. (FLUSSER, 2011, p.30)
É o mito da caverna de Platão. Acreditamos nas imagens refletidas pela fogueira como realidade e não as contestamos pois parecem tão naturais e reais a ponto de nos convencermos de sua neutralidade. A informação mediada, independente da mídia ou forma (verbal ou não‐verbal), apesar de necessária, deve sempre ser lida de maneira crítica, encarando‐a verdadeiramente como ela é: apenas uma sombra da realidade. As fotografias são apenas metacódigos do real.
[...] O propósito das imagens é dar significados ao mundo, mas elas podem se tornar opacas para ele, encobri‐lo e até mesmo substituí‐lo. Podem construir um universo imaginário que não faz mediação entre o homem e o mundo, mas, ao contrário, aprisiona o homem. (FLUSSER, 2007, p. 143)
Não é de se estranhar que atualmente há várias discussões sobre a utilização do programa Adobe Photoshop® em fotografias para revistas. Na França, há a obrigatoriedade de inserir a imagem a informação de utilização de programas de retoque de fotografia6. A justificativa para a aprovação dessa lei era de diminuir o
número de casos de pessoas com anorexia e bulimia (principalmente adolescentes) que se inspiravam nos modelos retocados. Ou seja, para resolver um problema de compreensão da mediação da imagem, por aparentemente desistirem de ensinar que as imagens não são a pura realidade, foi instaurado uma lei para que, de alguma forma, o leitor não seja “enganado” pelo “vilão” e enganador Adobe Photoshop®. Ora, é importante lembrar que não é só o Photoshop que causa essa distorção proposital da realidade. Não seria necessário, então, incluir a informação de que a modelo está utilizando base na pele e outros tipos de maquiagem para cobrir as suas imperfeições? E a luz utilizada? E em relação ao tipo de lente escolhida para a foto e o ângulo da imagem? Até pessoas que não são profissionais da área de fotografia já sabem com tirar fotos (as chamadas selfies) de uma forma que apareçam “mais magras”7. Por isso, e por muitas
outras razões que não nos ateremos aqui, é muito mais eficaz “alfabetizar” as pessoas na 6 França aprova lei que determina que revistas indiquem o uso de Photoshop em fotos. Opera Mundi. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/42666/franca+aprova+lei+que+determina+que+revistas+indiquem+uso+de+ph otoshop+em+fotos.shtml>. Acesso em: 2 de maio de 2016. 7 13 truques para parecer mais magra nas fotos. Bolsa de Mulher. Disponível em: <http://www.bolsademulher.com/estilo/13‐ truques‐para‐parecer‐mais‐magra‐nas‐fotos>. Acesso em: 2 de maio de 2016.
linguagem visual, mostrando as suas potencialidades e, com isso, permitindo uma visão crítica sobre elas.
A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto são todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captar‐lhes o significado. (FLUSSER, 2011, p. 31)
Como destacamos, antes mesmo do Photoshop®, havia muitos outros fatores que poderiam interferir na significação da imagem a ser gerada pelo aparelho fotográfico. A manipulação laboratorial de fotos, por exemplo, já era conhecida desde 1855, quando um fotógrafo alemão, Franz Hanfstaengl (1804‐1877), inventou a primeira técnica de retocar negativos e a apresentou na Exposition Universelle de Paris (SONTAG, 2004, p.102). Além disso, devemos considerar que quando há um fotógrafo, este toma decisões técnicas para fazer o seu recorte da realidade conforme as escolhas de luz, enquadramento, lente e espaço fotografado, como também afirma Bittencourt (2011) E Kossoy (2014).
A desconstrução de uma imagem fotográfica pode ser iniciada pela análise do papel do fotógrafo na produção de uma foto. Existe sempre um sujeito por trás da máquina fotográfica. Existe sempre a manipulação da fotografia por ele, apesar de aparente neutralidade da imagem produzida pelo aparelho mecânico. A escolha do espaço, das pessoas em determinadas posturas, a luminosidade, o destaque a determinados ângulos das pessoas ou dos objetos ficam a critério do fotógrafo. (BITTENCOURT, 2011, p. 367)
[...] Dramatizando ou valorizando esteticamente os cenários, deformando a aparência dos seus retratados, alterando o realismo físico da natureza e das coisas, omitindo ou introduzindo detalhes, elaborando a composição ou incursionando na própria linguagem do meio, o fotógrafo sempre manipulou seus temas de alguma forma: técnica, estética ou ideologicamente. O produto final, a fotografia, é o documento que hoje temos diante de nós para o estudo: “interpretado” no passado antes mesmo da própria tomada do registro e ao longo das sucessivas etapas de sua materialização (laboratório, edição e publicação). (KOSSOY, 2014, p. 122)
Sabendo‐se desse tipo de controle da manipulação de imagens e, ao mesmo tempo, da falsa percepção de objetividade da fotografia, a máquina fotográfica foi utilizada inúmeras vezes para manipular fatos e divulgar ideias previamente pensadas. Sobre esse tipo de uso da imagem fotográfica, Kossoy (2014) diz que
[...] Uma imagem que se apoia no realismo fotográfico (da aparência) enquanto testemunho fiel, enquanto “prova” que pode conduzir o receptor desavisado a imaginar uma situação verdadeira que não existe, para criar, enfim, no imaginário dos receptores uma (pseudo)realidade. (KOSSOY, 2014, p. 135‐136) Ainda que esse tipo de manipulação com base em imagens pareça muito atual e que ela vem ganhando cada vez mais atenção da academia e da sociedade em geral,
podemos constatar que há décadas a imagem fotográfica é utilizada com fins de manipulação e propaganda, como podemos constatar em algumas imagens divulgadas na 2a Guerra Mundial pelos aliados e pelos países do eixo e, mais próximo a nós, em
imagens divulgadas pela ditadura militar no Brasil, como o caso da foto emblemática do suposto suicídio de Vladmir Herzog em 1975 (figura 13). Figura 13 ‐ Imagem do jornalista Vladimir Herzog morto no DOI‐CODI de São Paulo. Crédito: Silvaldo Leung Vieira.
A foto em questão, produzida por Silvaldo Leung Vieira, aluno do curso de fotografia da Polícia Civil de São Paulo na época, após sua divulgação nos meios de comunicação, tornou‐se um dos símbolos da luta contra a ditadura militar no Brasil pois denuncia, por detalhes do seu conteúdo, a tese de que o suicídio havia sido forjado, o que mudou os rumos da ditadura no país.
Segundo entrevista cedida pelo autor da foto para a Folha de S. Paulo, em 20128,
quando ele chegou na cela para registrar a foto, a cena do suicídio já havia sido montada, não sendo permitida a sua livre circulação para este registro. Silvaldo declarou: “tudo foi manipulado, e infelizmente eu acabei fazendo parte dessa manipulação”.
Kossoy (2014) afirma que
[...] Qualquer que seja o assunto registrado na fotografia, esta também documentará a visão de mundo do fotógrafo. A fotografia é, pois, um duplo testemunho: por aquilo que ela nos mostra da cena passada, irreversível, ali congelada fragmentariamente, e por aquilo que nos informa acerca de seu autor. (KOSSOY, 2014, p. 54)
Se aceitarmos que a fotografia, de certo modo, também nos informa sobre o seu autor, neste caso, talvez mostre a falta de experiência dos manipuladores em criar a pseudo‐realidade dessa fotografia, que deixaram rastros evidentes de alteração da realidade (que, devemos destacar, ainda é virtual), onde Vladimir aparece enforcado com uma cinta de pano atando o nó em uma janela a 1,63 m de altura, com as pernas arqueadas e os pés no chão. A própria imagem trazia em seus metadados as evidências da sua simbologia e, para os leitores de imagens mais experientes, não havia dúvidas da montagem da cena do suicídio. A “caixa‐preta” da ditadura começava a ser colocada à luz de velas que evidenciavam alguns pontos até então obscuros para a maioria da população, o que fez o aparelho, pouco a pouco, perder a sua força de dominação. Para que isso ocorresse, novamente, vemos que foi fundamental entender o funcionamento do aparelho fotográfico, sua potencialidade, suas virtualidades e seu envelopamento dentro de um aparelho maior, possibilitando, dessa maneira, a leitura crítica da imagem, colaborando no processo de libertação da sociedade brasileira em relação ao aparelho ditatorial.
Então, vemos que muito além da qualidade no processo de escolha de imagens pelo iconógrafo, há, na verdade, muito a ser feito por todos os agentes da Educação, no sentido de possibilitar ao aluno entender os processos inerentes das imagens técnicas para ler criticamente as suas informações, investindo em sua autonomia e desenvolvendo as suas habilidades criativas e artísticas com o uso dessas linguagens visuais. Para tanto, é necessário também que o próprio professor também saiba fazer esse tipo de leitura crítica da imagem e de seu conteúdo. Porém, ainda nota‐se uma
8 O instante decisivo: A Folha localizou o fotografo do cadáver de Herzog. Disponível em:
dificuldade de professores em entender essa linguagem não‐verbal, devido à própria cultura escolar verbalista, como explicitado por Pfromm Netto (1998).
Padecemos de um mal bastante antigo nos vários níveis de ensino: o mal do ensino maciçamente verbalista. Isso explica porque na era da comunicação de massa, ainda trabalhamos numa prática docente teimosamente ligada à cultura oral – e uma cultura oral pela metade, pois apenas o professor fala acrescentando algumas palavras e números no quadro negro. (PFROMM NETTO, 1998, p. 68)
Essa mesma cultura de ensino verbalista é também destacada por Kossoy (2014), mostrando que,
[...] apesar de sermos personagens de uma “civilização da imagem” – e neste sentido alvos voluntários e involuntários do bombardeio contínuo de informações visuais de diferentes categorias emitidas pelos meios de comunicação –, existe um aprisionamento multissecular à tradição escrita como forma de transmissão do saber, como bem esclarecia Pierre Francastel décadas atrás; nossa herança livresca predomina como meio de conhecimento científico. A fotografia é, em função dessa tradição institucionalizada, geralmente vista com restrições. (KOSSOY, 2014, p. 34)
A academia, de modo geral, é território marcado pela dominância de uma principal linguagem, a verbal, mostra da nossa herança livresca, como afirma KOSSOY. Porém, isso torna a linguagem padrão utilizada na academia e na Educação muito dissonante em relação à linguagem do cotidiano. Atualmente, nem é mais necessário sair do lugar para constatarmos esta diferença. Basta olharmos para os chamados
smartphones (telefones com propriedades de processamento de dados, uso de
programas, acesso à internet, além de serem ainda úteis como meio de comunicação por voz) que veremos que a hierarquia da informação em suas telas são muito diferentes da maioria dos livros, mostrando a maior importância dada às imagens em relação ao texto, mostrando como as linguagens não‐verbais estão ganhando maior terreno em nossas vidas (figura 14).
Figura 14 ‐ Exemplo de tela inicial de um smartphone. iPhone 5c, com o sistema operacional iOS. A hierarquia dos conteúdos mostra a predominância da imagem. Além de mostrar certa sintonia – mesmo que atrasada – das editoras com o que está ocorrendo no mundo em relação ao desenvolvimento de conteúdos mais visuais, as mudanças dos livros didáticos nos últimos anos também refletem a existência de professores que valorizam o uso de imagens como conteúdo em sala de aula. Apesar de utilizarem a imagem normalmente como espécie de “prova documental” de algum texto específico, temos relatos em muitos trabalhos publicados em revistas de diversas áreas e em algumas dissertações de mestrado – como de Metzker, 2010 – que apontam o surgimento de um professor mais integrado com as novas mídias, interessado no seu uso em sala de aula e, consequentemente, interessado nas características dessa linguagem não‐verbal mesmo sem o devido preparo em sua formação incial na universidade.
Bittencourt (2006), por exemplo, convoca‐nos a uma reflexão sobre a utilização das ilustrações nos livros didáticos:
A reflexão sobre as diversas ilustrações dos livros didáticos impõe‐se como uma questão importante no ensino das disciplinas escolares pelo papel que elas
têm desempenhado no processo pedagógico, surgindo indagações constantes quando se aprofundam as análises educacionais. Como são realizadas as leituras de imagens nos livros didáticos? As imagens complementam os textos dos livros didáticos ou servem apenas como ilustrações que visam tornar as páginas mais atrativas para os jovens leitores? (BITTENCOURT, 2006, p.70) Entender o funcionamento dos processos de produção da imagem é também o caminho para a leitura crítica da imagem. Em outras palavras, é caminho para a “leitura complexa” da imagem. Flusser (2008) vai mais fundo, aspirando um mundo onde a comunicação por meio de imagens, o que aumentaria (e muito) as virtualidade dos conteúdos, enriquecendo a nossa capacidade de comunicação.
Qual é o milagre necessário para que semelhante revolução (técnica e economicamente viável) aconteça? A resposta é obvia: seria necessário que a gente se afastasse do divertimento para observá‐lo de fora. De distância crítica, as imagens postas ao alcance de todos pela telemática aparecerão, de repente, enquanto superfícies aptas a serem manipuladas dialogicamente, como o eram outrora as linhas dos textos. De repente, as pessoas se tornariam conscientes das virtualidades dialógicas inerentes a imagens: que são infinitamente maiores que as virtualidades dos textos, já que superfícies compõem por infinidade de linhas. [...] Os diálogos, por intermédio de imagens sintetizadas (ou por intermédio de imagens pré‐fabricadas, mas telematizadas), seriam de riqueza criadora por ora inteiramente inimaginável. Seriamos, de repente, todos “artistas” (aqui o termo “arte” engloba ciência, política e filosofia). (FLUSSER, 2008, p.120)
Talvez, em uma análise superficial, já tenhamos algo semelhante ao que Flusser imaginava se considerarmos o crescente uso dos “emoticons”, caracteres tipográficos combinados que servem para basicamente refletir emoções. que atualmente já estão sendo substituídos e ampliados pelos chamados “emojis” (pictogramas), utilizando‐os em redes sociais e nos “apps” para expressar emoções e pensamentos (Figura 15). Figura 15 – Exemplos de “emoticons” e “emojis”. Disponível em: <http://www.howtogeek.com/208890/how‐to‐use‐emoji‐on‐your‐smartphone‐or‐pc/>. Acesso em: 9 de junho de 2016.
No caso da iconografia para os livros didáticos, o problema são as tais virtualidades, ou, “regras do jogo” para o uso das imagens. A possiblidade da riqueza no uso da linguagem por imagens que Flusser almejava pode até já existir para os “artistas” profissionais, porém, as tais virtualidades para utilizá‐las atrapalham em muito a criação de conteúdos mais ricos para os livros. É o que definimos aqui como os fatores intra e extra‐editoriais que veremos no capítulo a seguir.
FATORES INTRA E EXTRA‐EDITORIAIS