ADRIANO AGUINA
ESPIANDO A CAIXA‐PRETA:
os fatores intra e extra‐editoriais na produção de conteúdos de imagens para livros didáticos
São Paulo
ADRIANO AGUINA
ESPIANDO A CAIXA‐PRETA:
os fatores intra e extra‐editoriais na produção de conteúdos de imagens para livros didáticos
Dissertação apresentada ao programa de Pós‐ Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção de título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura.
Orientadora: Profa. Dra. Claudia Coelho Hardagh
São Paulo
2016
A282e Aguina, Adriano
Espiando a caixa-preta: os fatores intra e extra-editoriais na produção de conteúdos de imagens para livros didáticos. / Adriano Aguina. – 2016.
95 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2016.
Orientadora: Claudia Coelho Hardagh Bibliografia: f. 92-95
1. Produção Editorial. 2. Livro didático. 3. Imagem. 4. Processos editoriais. 5. Direito Autoral. 6. Edição de arte. 7. Educação. 8. Cultura. I. Título
Agradecimentos
À Profa. Dra. Claudia Coelho Hardagh, pela sua orientação e por todo incentivo para a conclusão dessa dissertação.
A todos os professores que contribuíram de alguma maneira para essa pesquisa nas aulas, nas bancas ou em conversas informais pela universidade.
À Universidade Presbiteriana Mackenzie por me dar essa oportunidade de formação.
À minha família, pelo apoio e carinho.
À minha esposa, pelo cumplicidade e apoio que tanto precisei durante esse percurso.
A presente pesquisa tem como problema norteador identificar os principais fatores que influenciam na produção do livro didático e como estes fatores, internos e externos ao aparelho editorial, interferem na produção e seleção de conteúdo de imagens que serão publicadas e trabalhadas pelos alunos e professores de todo país. Como referencial teórico central foram utilizados os principais conceitos da filosofia da caixa‐preta de Vilém Flusser, além de diversas bibliografias específicas de áreas variadas do conhecimento – como Editoração, Educação e Direito –, caracterizando‐se, dessa maneira, como uma pesquisa interdisciplinar. O pesquisador, também um profissional da área editorial, analisou de forma sistêmica o processo editorial, mais especificamente os processos de edição de arte e de iconografia, identificando e classificando os fatores intra e extra‐editoriais que influenciam ou determinam o output do processo, o conteúdo final do livro didático. Dentre os fatores intra‐editoriais, temos os pedagógicos, organizacional, financeiros, além dos fatores estilísticos e estéticos. Já entre os fatores extra‐editoriais temos os logísticos, legais e governamentais. A pesquisa revelou como esses fatores, escondidos sob a caixa‐preta do processo editorial, influenciam diretamente no conteúdo final de imagens apresentado pelo livro didático e que devem ser sempre considerados para qualquer tipo de análise desse objeto editorial e educacional complexo.
Palavras‐chave: Produção Editorial. Livro didático. Imagem. Processos
editoriais. Direito Autoral. Edição de arte. Educação. Cultura.
The aim of this work is to identify the main factors that influence the production of textbooks and how these factors, internal and external to the publishing industry, interfere with the production and selection of image content that will be published in the textbooks used by students and teachers from all over the country. We based our work on the main concepts of Flusser’s philosophy of black box, as well as several specific references in different areas of knowledge – such as Publishing, Education and Law –, what caracterizes this research as an interdisciplinary research. The researcher is a publishing professional and analyzed in a systematic way the publishing process, more specifically, the processes assigned to the art editor and iconographic process, identifying and classifying the internal and external factors to the publishing process that influence or determine the output of the process, the final content of the textbook. The internal factors identified are the pedagogical, organizational, financial and the stylistic/aesthetic ones. The external factors are the logistical, legal and government ones. The survey showed how such factors, hidden inside the black box of the publish process, influence the final content of images inside the textbook and suggests that such issues should be always considered in any analysis of this publishing and educational complex object.
Keywords: Publishing. Textbook. Image. Publishing house process. Copyright. Art editor. Education. Culture.
1. INTRODUÇÃO ... 8
2. METODOLOGIA ... 14
3. O LIVRO DIDÁTICO ... 16
4. O APARELHO EDITORIAL: UMA CAIXA‐PRETA INVISÍVEL ... 22
5. ETAPAS DO PROCESSO DE PRODUÇÃO DO LIVRO ... 30
6. EDIÇÃO DE ARTE: A PROGRAMAÇÃO VISUAL DO LIVRO ... 34
7. A IMAGEM NO PROCESSO EDITORIAL ... 42
8. FATORES INTRA E EXTRA‐EDITORIAIS ... 57
9. CONCLUSÃO ... 89
10.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 92
INTRODUÇÃO
Desenvolver materiais didáticos é um processo complexo que, muitas vezes, é realizado por equipes multidisciplinares. Editoras, por exemplo, além dos autores, têm uma enorme equipe de revisores, editores, designers, iconógrafos, dentre outros profissionais que são mobilizados para a produção de livros e outros materiais utilizados em sala de aula. Mesmo assim, vemos que com todo esse processo, ainda há muitos problemas e falhas nos materiais que são desenvolvidos, no entanto isso não desmerece os vários pontos positivos que ele possa ter.
É comum encontrarmos pesquisas que analisem os livros didáticos em diversos aspectos, fazendo comparações do uso de imagens, textos, organização de elementos, conteúdos trabalhados, características técnicas e culturais de certas épocas, design, redação, dentre tantos outros aspectos. Porém, há poucas pesquisas sobre como todos esses aspectos que são estudados exaustivamente no livro didático são escolhidos e criados, podendo, dessa maneira, revelar muitas informações que somente com o estudo de seu produto final, o livro didático, – o output do processo – seria impossível de se identificar.
Assim, há uma necessidade de se entender melhor esses processos envolvidos na criação dos livros didáticos, identificando os seus sujeitos e as suas estruturas. É o que chamaremos nesta pesquisa – fazendo relações com a obra de Vilém Flusser em Filosofia da Caixa Preta (1983) – de espiar a caixa‐preta do aparelho editorial, buscando elucidar o que ocorre neste processo e “clarear” aos sujeitos que são diretamente ligados ao uso do livro didático, como professores e pesquisadores, sobre algumas características que muitas vezes são ignoradas neste processo e são determinantes para o resultado que pode ser encontrado em quase todas as escolas do país.
Assim, apresentamos, dentro de um processo editorial de construção de um livro didático, os principais fatores que são determinantes para a escolha dos conteúdos que serão inseridos e oferecidos a seus leitores, procuramos mostrar que as escolhas não são apenas por critérios de adequação didática, e podem ser determinadas por outros fatores externos e internos do processo de edição de um material didático.
Por se tratar de um tema multidisciplinar e o programa de Pós‐Graduação Educação, Arte e História da Cultura ser interdisciplinar, a pesquisa apresenta referências bibliográficas de diversas áreas do conhecimento, como Design, Produção Editorial, Fotografia, Direito e Educação, dialogando entre os conhecimentos propostos por Edgar Morin (2005), por via do pensamento complexo, resultando em um trabalho interdisciplinar, com análise sistêmica da estrutura do aparelho editorial, o que nos proporcionaria uma pequena visão, uma “espiada”, por dentro dessa caixa‐preta.
Além da pesquisa bibliográfica multidisciplinar, utilizamos o conhecimento do pesquisador como sujeito interno do aparelho editorial, que apresenta informações adquiridas por meio da trajetória acadêmica e profissional desde 2002, ano de início da graduação em Comunicação Social com habilitação em Editoração na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Durante essa trajetória particular – e passo a usar a primeira pessoa para expressar melhor a minha relação com a educação e a pesquisa apresentada – estive em contato com a área de Comunicação e Design, pois, desde o início de minha carreira profissional o trabalho foi marcado pelo envolvimento com o processo gráfico dos meios editoriais (livros e revistas), além de buscar formação mais específica da área. Porém, no ano de 2009, iniciei alguns projetos de criação de vídeos‐aulas para formação técnica em programas relacionados à área de Design Gráfico, como o Adobe InDesign®, e ministrei algumas aulas presenciais sobre esses programas. Nesse momento, comecei a me interessar pelos processos de produção relativos ao ensino, mesmo que técnico, e iniciei algumas reflexões acerca de melhoria de processos gráficos e editoriais para a construção de novos conteúdos didáticos e técnicas para utilização em sala de aula.
conhecimentos sobre a inter‐relação da Comunicação‐Design‐Educação, já que atuava diretamente com livros didáticos em um projeto que ainda estava sendo desenvolvido do zero, ou seja, participando da elaboração e desenvolvimento das primeiras edições do ensino fundamental e médio dos livros do SME.
Até para tentar melhorar esse diálogo entre a área do Design e da Educação, busquei mais formação específica dessa área, fazendo uma especialização na Universidade Presbiteriana Mackenzie de Docência na Educação Superior, finalizada em 2013, o que culminou com um trabalho de conclusão de curso sobre a utilização de projetores em sala de aula, onde mostrava ao professor alguns parâmetros – noções de Design e Comunicação – para a construção de slides em palestras e em sala de aula.
Neste mesmo ano de 2013, iniciei o presente mestrado em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde tive contato maior com grande bibliografia relacionada à Educação e, mais especificamente, com algumas problemáticas relacionadas com o meu objeto de trabalho: o livro didático.
Tanto em conversas informais com professores e pesquisadores da área de Educação, quanto em pesquisas acadêmicas e livros que analisavam o livro didático, notei que somente algumas pessoas tinham essa clareza de que há um processo quase invisível entre o desenvolvedor do original do livro (o autor) e a gráfica, e dessas, um número menor ainda sabia de algumas das principais questões que influenciavam o processo de edição do livro, mesmo considerando que alguns também já atuavam na área editorial, como autores e revisores, por exemplo.
São alguns desses pontos que apresentamos nessa pesquisa, ao mostrar as relações do processo de produção do livro didático e apontar como cada uma dessas etapas influencia diretamente o conteúdo final publicado nesse produto editorial.
Para tanto, no primeiro capítulo após a apresentação da metodologia, apresentamos alguns dados que mostram a importância do livro didático no Brasil, sendo a principal fonte de material de uso didático em sala de aula. Também discutimos a superestimação do papel do livro didático em sala de aula, mostrando que, apesar de ser um tema de fundamental importância por sua ampla adoção nas escolas do país, não pode ser visto como solução única para resolver o problema da Educação no país e, muito menos, como o principal culpado desses mesmos problemas.
Em seguida, estabelecemos relações com a obra Filosofia da Caixa Preta, discutimos a importância da análise, não só os outputs do processo editorial, no caso, o livro didático – para entendermos melhor o “aparelho” e compreender os seus resultados. O entendimento desse processo é a base fundamental para conseguir, como diria Flusser, “jogar contra o aparelho”, no caso, o aparelho editorial e, dessa maneira, buscar “viver livremente num mundo programado por aparelhos” (FLUSSER, 2011). Para tanto, utilizamos as ideias do pensamento complexo defendida por Edgar Morin (2011) para que seja possível a visualização desse processo que é invisível para muitas pessoas.
Ao imergir na análise tendo como fundamento a metáfora flusseriana da caixa‐ preta, o processo editorial tomou outro sentido tanto para o editor como para o pesquisador. Elaboração da escrita passou a ser o aporte para a criação do livro que eu mesmo escrevia e mergulhava na caixa‐preta.
A seleção de imagens para análise não precisariam estar ligadas diretamente ao livro didático, pois o que nos interessava era trazer imagens que evidenciavam a caixa‐ preta editorial e suas consequências, trazendo reflexões que poderiam iluminar o inconsciente coletivo na valorização da cultura brasileira e entendimento da história real do Brasil.
Novamente essa etapa de pesquisa e da escrita aguçava o desejo de trazer uma contribuição estética para a esta obra na qual me debruçava e o editor queria marcar sua impressão no trabalho.
No sexto capítulo, apresentamos os fatores internos e externos que determinam a edição dos conteúdos de imagem. Dentre os fatores intra‐editoriais, temos os pedagógicos, organizacionais, financeiros, além dos fatores estilísticos e estéticos. Já entre os fatores extra‐editoriais temos os logísticos, legais e governamentais. É importante já termos a ideia de que, apesar do fator pedagógico ser o principal aspecto a ser considerado, todos esses fatores tem grande relevância no resultado final, influenciando de alguma maneira no conteúdo do produto final.
O produto final não poderia estar centrado somente na escrita, a metáfora da caixa‐preta, teria que se concretizar. Foi a partir dessa tentativa de torná‐la concreta que passo a ser o editor de arte, produtor da mensagem não‐textual e estética, concomitante com a conclusão a pesquisa, construí a minha caixa‐preta, na qual a dissertação estaria envolvida, conforme imagens abaixo (Figura 1).
Figura 1 – Imagens do processo de montagem da “caixa‐preta” que foi construída para envolver a dissertação.
As imagens como parte da conclusão, revelam a reflexão do pesquisador e editor sobre como esses fatores influenciam na qualidade do conteúdo de imagens a ser publicado pelo livro, apresentando algumas ideias de como isso poderia ser melhorado, discutindo como podemos jogar contra o aparelho editorial sem que sejamos excluídos desse jogo. Abrindo a “caixa‐preta” do mecanismo de edição de livros, acreditamos que será possível abrir novas e mais construtivas discussões sobre o seu produto final, o livro didático.
METODOLOGIA
A investigação de base qualitativa de caráter científico, foi desenvolvida pela análise dos processos de produção dos livros didáticos nas editoras, especificamente, produzidos para a educação básica. O estudo partiu da análise documental e, principalmente, do processo de produção, em uma abordagem qualitativa.
O foco da pesquisa é a análise do processo de produção do livro didático, incluindo principalmente os processos relativos aos elementos iconográficos (imagens, fotografias, ilustrações, mapas e gráficos). Consideramos como fontes primárias pois o pesquisador está envolvido na produção dos processos analisados.
A pesquisa dos processos exige do pesquisador cuidados como levar em conta e analisar contextos históricos, econômicos, políticos e sociais no qual os livros didáticos são produzidos.
A inserção do pesquisador no mercado editorial exige a visão sistêmica da produção do livro de caráter didático, pois este material passa pelo crivo oficial da legislação de Educação, de Direitos Autorais, de organizações detentoras dos bens de produção, de uma ideologia pedagógica, dentre outros mais que identificamos na pesquisa.
O caminho percorrido no processo investigativo foi, primeiramente, fazer uma pesquisa bibliográfica sobre o tema livro didático, além de temas relacionados com o processo de produção do livro como a Editoração, Educação, Direito Autoral, Direito de Imagem e Design do livro. Além disso, realizou‐se uma pesquisa na Internet sobre assuntos relacionados com o livro didático, uso e produção, buscando dados de mercado e reportagens que mostravam algumas características de suas relações. Como base conceitual da pesquisa, buscou‐se as relações entre os pensamentos de Vilém Flusser (conceito de caixa‐preta) e Edgar Morin (pensamento complexo) com o livro didático e a sua estrutura de produção.
Após analisar o processo e entender o seu funcionamento básico, buscou‐se identificar os fatores internos e externos que determinavam a escolha e produção da iconografia em questão, classificando‐os didaticamente para compreender as suas conexões e os seus impactos no conteúdo iconográfico do seu produto final, o livro didático.
O LIVRO DIDÁTICO
Apesar do grande número de críticas1 em seu uso na sala de aula sob vários
aspectos, o livro didático no Brasil é a principal fonte de material didático nas escolas de educação básica. Segundo a pesquisa de produção e vendas do setor editorial brasileiro da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Sindicado Nacional dos Editores de Livro (SNEL)2, em 2014 foram vendidos
mais de 184 milhões de livros didáticos no Brasil, representando mais de 42% do mercado de livros no país. A mesma pesquisa aponta que o governo foi responsável por 69% da compra livros didáticos em número de exemplares (sendo, a maior parte, via PNLD3), totalizando um número de 126.939.731 exemplares, o que torna o governo
brasileiro o maior comprador de livros do país e, além disso, um dos maiores compradores de livro do mundo.
Esses números apenas reforçam a ideia de que o livro didático é ainda amplamente utilizado no Brasil e que, por esse motivo, ainda será objeto de estudo em pesquisas na Educação, na Comunicação, no Design, na Economia, no Direito, na História da Educação e Cultura, dentre muitas outras áreas do conhecimento, por ser considerado um elemento de grande importância na formação dos sujeitos escolares (professores e alunos), impactando diretamente, mas não exclusivamente, em vários aspectos na sociedade.
A extrema relevância do livro didático na Educação, no mercado editorial e nas políticas públicas gera a necessidade de pesquisas sobre esse tema, sendo exaustivamente reforçada na academia como por Souza (1999a e 2002):
Não parece haver dúvida quanto à autoridade que o senso comum tradicionalmente confere ao livro didático em contexto escolar. O livro didático é um elemento constitutivo do processo educacional brasileiro. (SOUZA, 1999a, p. 28)
Discutir o papel do livro didático parece‐nos de extrema relevância por tratar‐ se tradicionalmente do principal mediador no ensino promovido pela instituição‐escola. O livro didático costuma ser, quase que exclusivamente, a
1 Essas críticas podem ser encontradas em simples pesquisas na Internet. Como exemplo, temos o texto jornalístico “Pesquisa aponta
que livros didáticos não condizem com provas de Física do Enem“, publicado no site da UFAL em 2013 (disponível em:
http://www.ufal.edu.br/noticias/2013/07/pesquisa‐aponta‐que‐livros‐didaticos‐nao‐condizem‐com‐provas‐de‐fisica‐do‐enem) e artigos como o publicado na revista História e Ensino, “Uma análise sobre o ensino de História e o livro didático” de Sonia Maria Gazola Pastro e Diná Teresa Contiero (disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/viewFile/12156/10675, acesso em: 14 de junho de 2016).
2 Produção e vendas do setor editorial brasileiro. Disponível em: <http://www.snel.org.br/wp‐
content/themes/snel/docs/pesquisa_fipe_2015_ano_base_2014.pdf>. Acesso em: 1 de maio de 2016.
principal fonte de material didático utilizado por professores de língua estrangeira e materna nas escolas da rede oficial de ensino. (SOUZA, 2002, p. 114)
Silva (2012), da mesma maneira, reforça igualmente o discurso em relação à dominância da utilização do material didático na escola:
Além de consagrado em nossa cultura escolar, o livro didático tem assumido a primazia entre os recursos didáticos utilizados na grande maioria das salas de aula do Ensino Básico. Impulsionados por inúmeras situações adversas, grande parte dos professores brasileiros o transformaram no principal ou, até mesmo, único instrumento a auxiliar o trabalho nas salas de aula. (SILVA, 2012, p. 806)
Veja que Silva (2012) não apenas aponta que material didático é o principal recurso didático utilizado pelo professor, como também, muitas vezes, é o único instrumento utilizado pelo docente em sala de aula, devido à inúmeros fatores como, por exemplo, a falta de estruturas básicas na escola (como bibliotecas ou acesso à computadores) ou, até, pelas más condições de trabalho do docente.
Não é surpresa, dessa maneira, que o livro didático seja vendido e adotado como um livro fechado, ou seja, que contém todo o conhecimento necessário para a formação do aluno, além de ser encarado como único dono da verdade. Vemos que, como apontado por Souza (1999a):
O caráter de autoridade do livro didático encontra sua legitimidade na crença de que ele é depositário de um saber a ser decifrado, pois supõe‐se que o livro didático contenha uma verdade sacramentada a ser transmitida e compartilhada. Verdade já dada que o professor, legitimando e institucionalmente autorizado a manejar o livro didático, deve apenas reproduzir, cabendo ao aluno assimilá‐la. (SOUZA, 1999a, p. 27)
Além de ser a principal fonte de material didático utilizado pelos professores, como apontado por Souza (1999 e 2002) e Silva (2012), o livro didático também é utilizado como único material de informação e formação de parte dos docentes, como constatou Coracini (1999):
[...] tem sido constatado, em reuniões com professores do ensino fundamental e médio da escola pública do Estado de São Paulo, que o único material de consulta e leitura do professor, na disciplina que ministra, é (são) o(s) livro(s) didático(s). (CORACINI, 1999, p. 34)
mera apresentação de respostas prontas, apresentando também os pressupostos metodológicos e teóricos do livro a ser utilizado (SILVA, 2012).
Isso é preocupante pois, apesar de poder contribuir na formação do professor, como o próprio MEC reconhece, o livro didático não pode ser o único ou principal meio para formação e informação do docente. Dessa maneira, como seria possível que o professor faça uma análise crítica desse material didático e, ainda, utilize outros instrumentos didáticos para complementar a sua aula e a sua formação? Em geral, até por uma questão de marketing, as editoras dos livros didáticos reforçam em seu discurso a completude do seu conteúdo (e, consequentemente, a ausência da necessidade de se buscar outras referências) pois, ao contrário, poderiam ser apontados como materiais incompletos e de menor qualidade, diminuindo as suas chances no mercado.
As exigências do MEC quanto ao manual do professor para o PNLD revela a falha na formação do professor, pois traz projetos e planos de trabalhos prontos, didáticas que não dão conta das especificidades da escola, comunidade e concepção pedagógica.
Essa visão crítica em relação ao conteúdo do livro didático é importante para que haja melhor entendimento das escolhas dos conteúdos apresentados, das suas formas textuais, das suas formas gráficas, da hierarquização dos elementos, dentre outros aspectos fundamentais na significação da informação apresentada. O problema é que, como já apontado por Souza (1999), o livro, e não só o livro didático, é visto como um depositário dos conteúdos verdadeiros a serem seguidos, aumentando ainda mais as discussões em relação a aplicação dos livros didáticos e, assim, desviando das discussões mais pertinentes, como o papel do livro didático no ensino, sua utilização pelo docente, a formação de professores e suas condições de trabalho. Silva (2012) destaca que:
O autor aponta em sua pesquisa a superestimação do papel do livro didático na formação da sociedade. Isso pode ser constatado quando identificamos na mídia alguns exageros sobre problemas encontrados nos livros didáticos distribuídos pelo governo por meio do PNLD, como erros de digitação, de processo de seleção e edição de imagens ou na escolha de conteúdos de textos de nossa literatura. Silva (2012) descreve em sua pesquisa algumas situações que ilustram como esses problemas são abordados por alguns meios de comunicação e por parte da sociedade, onde o professor, da maneira que a situação é apresentada, não é visto como o principal agente na formação do aluno. Em um dos casos, ocorrido em 2010 na cidade de Jundiaí (SP), um dos pais chegou a pedir a intervenção do Ministério Público “para garantir uma educação saudável aos adolescentes”. O livro em questão continha o texto de Ignácio de Loyola Brandão, Obscenidades para uma Dona de Casa, o que, para os pais de alguns alunos, era considerado inadequado para a faixa etária (Ensino Médio) e que o problema seria resolvido com o recolhimento do livro e sua “correção”, provavelmente.
Outra situação que pode ilustrar a mesma visão do professor como apenas um dos agentes de formação, e não o principal, ocorreu no caso do livro que fazia parte do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, em 20144. Neste caso, uma ação foi apresentada pelo Instituto de Advocacia
Racial no Supremo Tribunal Federal (STF) e buscava o recolhimento do livro e a inserção de notas sobre o racismo, o que foi negado. Apesar de realmente conter frases que podem ser consideradas de teor racista, a obra deve ser analisada de forma contextualizada historicamente, cabendo ao professor, neste caso, orientar o aluno na prática de análise do texto em questão. Afinal, se isso não ocorrer, qual é o papel do professor em sala de aula? Será apenas de reproduzir os discursos que estão nos livros? Não seria esta uma boa oportunidade para o professor introduzir discussões sobre a diferença entre as sociedades de épocas diferentes reforçando a interdisciplinaridade dos conteúdos, desenvolvendo também o espírito crítico do aluno?
Vemos que não é tão óbvio que o livro didático não pode ser superestimado como único herói ou vilão da Educação no país. Um exemplo positivo de como o seu poder não
4 Ministro do STF rejeita incluir nota sobre racismo em livro de Lobato. Disponível em:
é absoluto sobre uma sociedade, ocorreu no Canadá, mais precisamente, na província de Quebec,
[…] onde o ensino de História, durante mais de 50 anos, foi ministrado com o objetivo de ensinar aos canadenses de língua francesa a necessidade de sobrevier enquanto povo, proteger a língua, a fé além de continuarem fazendo parte do grande Canadá. Entretanto, por volta de 1950, os quebequenses começaram a dizer que queriam se separar daquele grande Canadá que lhes haviam ensinado a amar negando todo o processo de ensino de mais de cinco décadas. (SILVA, 2012, p. 816)
Vemos, assim, que os livros didáticos têm sim a sua importância nas relações de poder, de cultura e econômicas e, até por essa razão, são utilizados pelos governos como instrumentos de doutrinamento ideológico, porém, eles não têm poderes ilimitados. Há outros agentes importantes nessa relação, como a família, as comunidades, a igreja e o professor, por exemplo. Mesmo assim:
Parece‐nos que o contexto escolar não conseguiu, ainda, abrir mão do paradigma “transmissão de conhecimentos via livro didático” e a questão, talvez, não esteja em “abandoná‐lo” simplesmente, mas, sim, em questionar essa ordem paradigmática que coloca o livro didático enquanto fonte única, universal de referencia para a sala de aula. (SOUZA, 2002, p. 117)
Souza (1999c), em outra pesquisa, adiciona que
Cabe ao professor promover entre seus alunos momentos que contemplem questionamentos do papel do livro didático, não enquanto a principal “arma” para sua atividade pedagógica, mas como um dos recursos a ser abordado de forma crítica. O livro didático é, geralmente, um dentre os componentes de uma situação de aprendizagem. É difícil avaliar o grau de eficácia e eficiência de um livro didático se não levarmos em conta as contradições de produção de sua elaboração e de seu uso. (SOUZA, 1999c, p. 102)
A autora destaca, além da questão do livro didático não ser o único componente para a relação ensino/aprendizagem e a própria condição de seu uso, mas também “as contradições de produção de sua elaboração”, alertando para outros fatores decisivos que se relacionam diretamente aos conteúdos finais apresentados pelo livro didático, fatores que estão presentes ainda na fase editorial do livro e que, muitas vezes, são ignorados por professores e, até mesmo, por pesquisadores da área, o que causa certas lacunas que, sem esta análise mais detalhada, não são possíveis nem de se identificar.
Para tentar responder esta pergunta, no capítulo seguinte, mostraremos como o conhecimento do que chamaremos aqui de “aparelho editorial” pode nos ajudar a compreender os problemas encontrados nos livros didáticos e também propiciar a indicação de soluções mais adequadas para a sua produção como instrumento de apoio ao docente na escola.
O APARELHO EDITORIAL: UMA CAIXA‐PRETA INVISÍVEL
Como vimos anteriormente, o tema livro didático apresenta grande relevância para pesquisas em várias as áreas do conhecimento. Isso ocorre, dentre outros fatores, devido a sua significante importância na relação ensino/aprendizagem, aos percentuais de vendas e produção representativos para a indústria gráfica e editorial e na difusão de dados e informações consequentemente possibilitados pela sua popularização e distribuição nacional.
Porém, ainda é usual encontrarmos críticas nos meios de comunicação e até nas pesquisas acadêmicas que ainda colocam o livro didático como o principal elemento em sala de aula, superestimado o seu valor dentro de uma formação educacional de forma positiva (como é disseminado no marketing editorial) ou negativa (ao aponta‐lo como o maior responsável pelo problema da Educação).
Bittencourt (2006), diferentemente, conclui que:
[...] para entender o papel que o livro didático desempenha na vida escolar, não basta analisar a ideologia e as defasagens dos conteúdos em relação à produção acadêmica ou descobrir se o material é fiel ou não às propostas curriculares. Para entender um livro didático é preciso analisá‐lo em todos os seus aspectos e contradições. (BITTENCOURT, 2006, p.73)
Analisar o material didático em outros aspectos pode significar estudá‐lo utilizando também conhecimentos de outras áreas que abordam o tema “livro didático” por outros aspectos, como os sociais, financeiros e políticos. É não aceitar que um conhecimento pode realmente ser dividido, e que ele realmente pode existir sem as suas ligações com outras partes do mundo real.
Morin (2011) afirma que a disciplinaridade é sim um meio eficiente para se chegar ao conhecimento. Porém, isso só ocorre quando entende‐se as suas limitações considerando que esta divisão é apenas construída e não reflete a realidade.
A fecundidade da disciplina na história da ciência já foi demonstrada; por um lado, ela realiza a circunscrição de uma área de competência, sem a qual o conhecimento tornar‐se‐ia intangível [...]. Entretanto, a instituição disciplinar acarreta, ao mesmo tempo, um perigo de hiperespecialização do pesquisador e um risco de “coisificação” do objeto estudado, do qual se corre o risco de esquecer que é destacado ou construído. (MORIN, 2005, p. 106)
objeto estudado, tornando‐o mais aberto e, ao mesmo tempo, inacabado, possibilitando assim a inserção de novos aspectos para que se tenha uma mínima visão de toda a sua complexidade e de suas ligações. Por isso, Morin (2011), complementa o raciocínio, afirmando que
A consciência da multidimensionalidade nos conduz à ideia de que toda visão unidimensional, toda visão especializada, parcelada, é pobre. É preciso que seja ligada a outras dimensões [...].
Mas [...] a consciência da complexidade nos faz compreender que jamais poderemos escapar da incerteza e que jamais poderemos ter um saber total: “A totalidade é a não verdade”. (MORIN, 2011, p. 69)
Assim, já neste primeiro momento, ficaria claro que todo discurso afirmativo com o sentido de supervalorização do livro didático (positiva ou negativamente) seria um exagero e descabido. Assim como o objeto não pode ser “coisificado”, logicamente, suas origens e consequências não poderão ser entendidas sem a compreensão da
multidimensionalidade citada por Morin. Nesse mesmo sentido da
multidimensionalidade dos objetos, Choppin (2004) afirma também que
O livro didático não é, no entanto, o único instrumento que faz parte da educação da juventude: a coexistência (e utilização efetiva) no interior do universo escolar de instrumentos de ensino‐aprendizagem que estabelecem com o livro relações de concorrência ou de complementaridade influi necessariamente em suas funções e usos. (CHOPPIN, 2004, p.554)
Com essa afirmação, o autor destaca a necessidade do conhecimento de outros fatores em relação ao livro didático como o próprio ambiente escolar e a vida cotidiana de seus leitores/alunos, não apenas analisando a sua configuração e conteúdos.
O discurso unidimensional, posso assim chamar, onde o livro didático é visto como o único ou grande responsável por algum fator da nossa sociedade, também ignora como é o processo de produção de um livro didático e quais são alguns dos principais fatores envolvidos no desenvolvimento desse produto editorial.
Por isso, nos utilizaremos das ideias de Flusser (2008) de colocar a metáfora caixa‐preta para elucidar a respeito da ignorância com relação ao processo de produção cultural, e ponderando que
apertarem as teclas e por minha própria experiência ao receber as imagens. (FLUSSER, 2008, p. 56)
E isso é o que ocorre nesse discurso unidimensional, onde a caixa‐preta do processo editorial do livro é, por muitas vezes, desprezado ou simplificado. O mesmo autor complementa também que
[...] O que caracteriza a revolução cultural atual é precisamente o fato que os participantes da cultura ignoram o interior das “caixas pretas” que manejam. (FLUSSER, 2008, p. 113)
Por outro lado, se lembrarmos de algumas das principais características da revolução industrial, como o desenvolvimento da divisão do trabalho e da linha de montagem, o problema não era o mesmo? O funcionário, assim como o personagem de Charles Chaplin no filme Tempos Modernos (1936), também, apesar de fazer parte de uma “caixa‐preta” (do aparelho industrial, no caso), continua a desconhecê‐la a tal ponto de desconhecer o seu output? A tirinha de Frank e Ernest, publicada no Jornal do Brasil no dia 19 de fevereiro de 1997, da mesma maneira, ilustra essa mesma situação, como podemos ver na figura 2.
Figura 2 – Tirinha sobre a linha de montagem (Frank e Ernest).
tornam as caixas‐pretas funcionais e controladoras, não a sua forma física. É o que Flusser (2008) chama de software ou suas virtualidades.
O aparelho fotográfico é, por certo, objeto duro feito de plástico e aço. Mas não é isso que o torna brinquedo5. Não é a madeira do tabuleiro e das pedras que torna o xadrez jogo. São as virtualidades contidas nas regras: o software. O aspecto duro dos aparelhos [hardware] não é o que lhes confere valor. (FLUSSER, 2011, p.47)
Essa mesma complexidade do objeto também foi reconhecida em outras áreas do conhecimento, como na Cibernética. Porém, descreve Morin (2011) que, em vez de entrar e explorar esse objeto complexo, a Cibernética apenas a contornou, sem negá‐la.
Quando a cibernética reconheceu a complexidade, foi para contorná‐la, pô‐la entre parêntese, mas sem negá‐la: é o princípio da caixa‐preta (black‐box); considera‐se as entradas no sistema (inputs) e as saídas (outputs), o que permite estudar os resultados do funcionamento do sistema, a alimentação que ele necessita, de relacionar inputs e outputs, sem entrar entretanto no mistério da caixa‐preta.
Ora, o problema teórico da complexidade é o da possibilidade de entrar nas caixas‐pretas. É considerar a complexidade organizacional e a complexidade lógica. [...] Ora, é preciso aceitar certa imprecisão e uma imprecisão certa, não apenas nos fenômenos, mas também nos conceitos [...]. (MORIN 2011, p. 35‐36)
Como vimos acima, o princípio da caixa‐preta, onde a impossibilidade de se entender o interior de um aparelho obriga o indivíduo apenas a considerar os inputs e os outputs para a compreeder um problema, é um conceito trabalhado por Flusser (2008). Morin (2011), por sua vez, propõe que o pensamento complexo é a possibilidade de entrar na caixa‐preta e entender parte desse mistério escondido e, até então, inacessível. Dessa maneira, assim como a filosofia da fotografia, o pensamento complexo é também necessário para, como dizia Flusser (2011, p. 107), “se viver num mundo programado por aparelhos”.
Apesar disso, o pensamento complexo não é a solução para conhecer todas as respostas. É, pelo contrário, também um meio de se levantar mais perguntas. Por isso, Morin (2011) afirma que
A complexidade não é uma receita para conhecer o inesperado. Mas ela nos torna prudentes, atentos, não nos deixa dormir na aparente mecânica e na aparente trivialidade dos determinismos. (MORIN, 2011, p. 82‐83)
5 FLUSSER define o aparelho fotográfico como brinquedo pois o homem vira um jogador do aparelho fotográfico, buscando o
No caso, quando estamos analisando o livro didático devemos não só apenas analisar o seu output (o livro impresso finalizado), mas também considerar as virtualidades e características do aparelho editorial. Ou seja, considerar o próprio processo de produção do livro didático e suas relações. Tirar conclusões sem considerar essas virtualidades afasta o pesquisador do conhecimento complexo e o aproxima dos determinismos verificados em seus outputs, não revelando os reais problemas ainda escondidos na caixa‐preta editorial.
Apesar disso, devemos novamente alertar que o pensamento complexo não propõe chegar no conhecimento real de fato. Até porque a complexidade dos aparelhos impediria o seu entendimento total. Como dito anteriormente, “a totalidade é a não verdade”. Flusser (2008), complementa que
[...] com o aperfeiçoamento progressivo dos aparelhos, surgiu um problema imprevisto, embora previsível. Os aparelhos vão rolando sempre mais rapidamente, de modo que se torna humanamente impossível acompanhar seu curso. [...] Perdeu‐se o controle sobre os aparelhos. Os aparelhos se autonomizaram das decisões humanas, mas não pelo programa humano inicial ter se apagado. [...] Exemplos de tais aparelhos que escapam ao controle e continuam funcionando automaticamente podem ser observados em toda parte: aparelhos administrativos, aparelhos políticos, aparelhos econômicos, aparelhos culturais e, sobretudo, obviamente, os aparelhos termo‐nucleares. (FLUSSER, 2008, p. 105)
Dessa maneira, além do autor destacar a falta da necessidade do hardware (materialidade) do aparelho ao citar exemplos de aparelhos de nossa sociedade como o administrativo e o político, ele também destaca, como ideia principal do excerto, a perda do controle do aparelho pelo aumento da sua complexidade, impossibilitando o seu conhecimento total, o que não significa que o programa humano inicial básico foi apagado.
Note que, neste caso, quem tem poder não é mais quem possui o aparelho, mas quem detém o programa. É uma nova relação de poder emergida nessa atual revolução do conhecimento.
[...] O fotógrafo exerce poder sobre quem vê suas fotografias, programando os receptores. O aparelho fotográfico exerce poder sobre o fotógrafo. A indústria fotográfica exerce poder sobre o aparelho. E assim ad infinitum. (FLUSSER, 2011, p.47)
[...] O input de cada um deles é alimentado por outro aparelho; o output de todo aparelho alimenta outro. Os aparelhos se programam mutuamente em hierarquia envelopante. (FLUSSER, 2011, p.94)
Sobre o livro didático podemos dizer, por exemplo, que é programado pelo aparelho editorial responsável por sua produção. Este aparelho editorial é alimentado por bancos de imagens que distribuem imagens programadas por seus fotógrafos. Estes, foram programados pelo aparelho de distribuição de mídia (o próprio banco de imagens, por exemplo) onde há regras de como a fotografia deve ser produzida para serem aceitas. Todos eles estão programados pelo governo brasileiro, seguindo a sua legislação para que seus respectivos aparelhos continuem a funcionar. E assim continua esse sistema definido como envelopante e aberto por cima, como define Flusser.
Procuramos mostrar o quanto é fundamental o conhecimento do funcionamento do aparelho editorial para se entender melhor as características finais do seu output, o livro didático. Um dos fatores a ser destacado no interior do aparelho editorial é o que chamaremos de fator estilístico e estético, contemplando o design do livro. Sobre esse assunto, Hendel (2003), em um dos mais clássicos livros sobre o design do livro, faz uma comparação entre a arte da impressão e do design:
Se a impressão é a arte negra, o design de livro pode ser a arte invisível. [...] Quando aceitamos a ideia de que o importante no livro é o significado das palavras e não o modo de como se apresentam, isso se deve a própria invisibilidade do design. (HENDEL, 2003, p. 1)
Parafraseando Hendel, não diríamos que a arte invisível é apenas o design do livro, mas todo o processo do aparelho editorial. Assim, por isso, para a maior parte dos leitores e boa parte dos pesquisadores, o livro é escrito pelo autor. Porém, Souza (1999a) alerta que:
O autor do livro didático é destituído de autonomia, pois, para existir no interior do aparato [aparelho] editorial, precisa estar em conformidade com seus padrões, além de ter de ocupar o “lugar” que lhe cabe, ou seja, o de fazer concessões. (SOUZA, 1999a, p.31)
O estudo sistemático do contexto legislativo e regulador, que condiciona não somente a existência e a estrutura, mas também a produção do livro didático, é condição preliminar indispensável a qualquer estudo sobre a edição escolar. Escrever a história dos livros escolares — ou simplesmente analisar o conteúdo de uma obra — sem levar em conta as regras que o poder político, ou religioso, impõe aos diversos agentes do sistema educativo, quer seja no domínio político, econômico, linguístico, editorial, pedagógico ou financeiro, não faz qualquer sentido. (CHOPPIN, 2004, p. 561)
Esse pensamento complexo também não pode ser considerado apenas como a junção dessas dimensões. “Um todo é mais do que a soma das partes que o constituem”, segundo Morin (2011, p. 85). Ou seja, devemos sempre considerar também as novas conexões que são descobertas nessa sobreposição de diferentes ideias. Para exemplificar isso, Morin (2011) se utiliza de uma simples alegoria, o tapete.
Para todos é óbvio que a soma de dois novelos de linha não é igual a um tapete, mesmo que este seja o total de material a ser utilizado. A diferença básica entre os novelos de linha e o tapete é a sua organização, ou seja, o trabalho que o tecelão teve para fazer o trançado das linhas.
Além disso, “O todo é então menor do que a soma das partes” (MORIN, 2011, p. 85), ou seja, na junção das partes, sempre há uma diferença. O autor explica que no trançar nas linhas há partes em que, quando vemos o tapete, não conseguiremos mais enxergar. Ou seja, a soma das linhas é menos do que o que o tapete apresenta.
Concluindo, o autor diz então que “O todo é ao mesmo tempo mais e menos do que a soma das partes.” (MORIN, 2011, p. 86). Ou seja, ao mesmo tempo que ele apresenta uma forma que não é igual a apenas a junção dos dois novelos de linha ele também é “esconde” algumas partes com o trançado. Utilizando a mesma alegoria para o aparelho editorial, poderíamos dizer que o tecelão poderia ser o processo editorial, que trabalha para que os dois novelos (conteúdo + didática), com os trançados que serão necessários vire um tapete (o livro didático). O que queremos então neste processo é mostrar o “verso” do tapete, onde poderemos identificar os seus pormenores, suas regras, suas conexões, para entenderemos melhor o seu output, ou seja, a sua aparência final. Ver o verso do tapete é tentar clarear o interior da caixa‐preta do processo editorial, pois
Lembremos novamente que, como já foi dito, o aparelho (no caso, o aparelho editorial)
[...] trata‐se de brinquedo complexo; tão complexo que não poderá jamais ser inteiramente esclarecido. (FLUSSER, 2011, p.47)
Não é intenção deste trabalho em esgotar todas as complexidades do aparelho editorial e, assim, clarear toda a caixa‐preta, o que seria impossível. O recorte desta pesquisa é a busca pelo branqueamento dessa caixa, que é possível e será trabalhada nas próximas páginas, apresentando a configuração básica de um processo editorial e, depois, aprofundando no processo de Edição de Arte e, mais especificamente, no processo de Iconografia, apresentando alguns fatores internos e externos que são determinantes na configuração final do livro didático em relação ao conteúdo de imagens. O que pretendemos é dar uma espiada por dentro da caixa‐preta e revelar algumas de suas principais virtualidades.
ETAPAS DO PROCESSO DE PRODUÇÃO DO LIVRO
O processo de produção do livro, que também classificamos como “arte invisível”, diferentemente de Hendel que delimitou esta arte como o design do livro, é um processo de gestão e produção de conteúdos com o objetivo de sua publicação final em formato de livro, digital ou impresso. Segundo Araújo (2008), este processo, também chamado de editoração é
[...] o conjunto de teorias, técnicas e aptidões artísticas e industriais destinadas ao planejamento, feitura e distribuição de um produto editorial. Em outras palavras, editoração é o gerenciamento da produção de uma publicação – livros, revistas, jornais, boletins, álbuns, cadernos, almanaques etc. (ARAÚJO, 2008, p. 38)
O processo editorial pode ser dividido e sucintamente descrito nas seguintes fases:
1. Criação do projeto editorial: é quando se define o projeto para o livro que será produzido pela editora. Nele se definirá os conteúdos textuais e visuais do projeto, incluindo o projeto gráfico. Este processo pode ocorrer antes do recebimento dos originais do autor (com no caso dos livros didáticos) como também após o recebimento (como no caso de alguns livros literários e técnicos que são diariamente enviados para as editoras para avaliação).
2. Seleção de originais: neste caso, é quando a editora seleciona algum texto enviado por autores que estão interessados em publicar seus conteúdos. Em alguns casos, não há esse processo pois o original pode ser feito por encomenda, como é o caso da maioria dos livros didáticos.
3. Escrita e entrega do original: é onde o autor do livro se encontra. Ele será responsável pela entrega do texto original (ou seja, ainda sem revisão, formatação e edição) para a Editora.
4. Preparação do texto: momento em que o texto é formatado e adequado aos
padrões mínimos do projeto editorial. Visa facilitar o processo e organizá‐lo desde o seu início. Esta preparação também pode ser realizada pelo revisor.
revisor também pode ser técnico, onde ele será responsável por avaliar os conteúdos que estão sendo apresentados no original.
6. Edição/Direção de arte: é o processo de gerenciamento dos aspectos visuais do processo, incluindo a diagramação, ilustração e a iconografia.
7. Diagramação: este é o processo em que o conteúdo é formatado e adequado
ao projeto gráfico definido no projeto editorial. É o processo onde entra o design do livro.
8. Ilustração: criação de ilustrações personalizadas para o projeto.
9. Iconografia: processo onde se busca e se define todas as imagens (fotografias, símbolos, ilustrações) que estarão no livro. É onde se analisa a informação visual da imagem e sua contextualização no conteúdo. Também é onde se verifica a disponibilidade da imagem que é necessária para o conteúdo e sua qualidade técnica.
10.Direito autorais: processo responsável pela legalização da publicação de textos e imagens, fazendo o trâmite legal para a utilização desses conteúdos.
11.Impressão: processo de transformação do conteúdo digital em material impresso. É a produção industrial do livro.
12.Distribuição/publicação: pode ser digital ou físico, necessitado, nos casos de impressos, de uma logística para que o livro chegue ao cliente (leitor).
A seguir, temos um exemplo simplificado de um fluxograma com os elementos do processo editorial (Figura 3). Note que, além de passar por todas as etapas anteriormente descritas, vemos que ainda há um feedback que deve ser considerado para a produção da nova edição do material ou, até mesmo, um novo material.
Figura 3 – Fluxograma com exemplo de processo editorial.
Todos os livros didáticos passam por processos similares aos destacados na imagem. Em cada processo haverá, em geral, um profissional especializado na área que fará a adequação e alteração no original quando necessário. Por ser um material complexo, e depender de muitos fatores internos e externos, o processo de produção de um livro didático resulta em um output (produto final) bem diferente do original do autor (input), tudo isso para se adequar às regras do aparelho editorial. Não entraremos na discussão se esses processos melhoram ou pioram a qualidade do conteúdo, mas, inevitavelmente, eles serão responsáveis pelo conteúdo final que será publicado em formato de livro didático.
didáticos, no próximo capítulo veremos mais sobre as principais atividades do editor de arte no processo de produção do livro.
EDIÇÃO DE ARTE: A PROGRAMAÇÃO VISUAL DO LIVRO
O editor de arte é o profissional responsável pela avaliação, organização e gerenciamento dos elementos visuais de uma página. Como explicado por Araújo (2008),
[...] No Brasil já se tornou corrente, por exemplo, designar profissionais de certos setores da editoração como “editor de arte” (responsável pela programação visual de uma publicação), “editor de texto” (encarregado do preparo e revisão literária dos originais) e assim por diante. (ARAÚJO, 2008, p. 50)
E é esse profissional, o editor de arte, muitas vezes um designer, produtor editorial ou comunicador, que fará a verificação da adequação do conteúdo diagramado e das imagens, considerando o projeto gráfico, o conteúdo textual e a adequação didática desses elementos no caso dos livros didáticos. Logicamente, há casos em que o editor de arte será auxiliado pelo revisor técnico (ou o editor da área de conhecimento) para que a adequação do conteúdo à didática se efetive. Além disso, ele também deverá fazer a verificação técnica do arquivo, quanto à qualidade e definição de imagem, para se certificar da legibilidade da imagem no produto final.
Quando está fazendo a verificação da adequação dos elementos (textos, imagens e até os “vazios”) na página em relação ao projeto gráfico, o editor de arte deve verificar as relações que cada um desses elementos, desde uma letra isolada até o caderno completo com todas as páginas, mantém as suas relações de modo coerente e de acordo com o projeto editorial e gráfico definido anteriormente. Samara (2007) descreve que
O espaço tipográfico é governado por uma série de relações das partes com o todo. A letra isolada é um grão, e faz parte de uma palavra. As palavras juntas formam uma linha [...]. Ao se colocar uma linha de tipos na paisagem nua da página, cria‐se instantaneamente uma estrutura. [...] Uma linha após a outra cria um parágrafo. [...] O limite sólido cria uma referência à página, e o parágrafo, conforme se alonga no comprimento, se converte numa coluna [...]. Os vazios entre os parágrafos, as colunas e as imagens ajudam a orientar o movimento dos olhos pelo conteúdo, tanto quanto a massa densa das palavras cercadas por esses vazios. (SAMARA, 2007, p. 23)
Dentro dessa multidimensionalidade, há um conceito importante chamado de hierarquia dos elementos. Esta forma de organização visual é fundamental na significação da página e ela pode, se realizada de forma adequada, ajudar ao leitor a captar de forma mais eficaz o conteúdo da página. Na figura 4 podemos ver um bom exemplo de como a hierarquia dos elementos pode ajudar na compreensão de um conteúdo e na melhor organização das ideias para o leitor da página.
Figura 4 – Comparação de duas páginas em relação à hierarquia visual. Na página da direita vemos
uma organização hierárquica mais clara, utilizando cores, pesos e espaçamentos de linha de forma planejada, facilitando a leitura do conteúdo.
Lupton (2008), explica que
É importante dizer que não há o “certo” e o “errado” neste caso. A hierarquia deve ser realizada de forma que seja a mais adequada ao seu leitor, adaptando‐se o projeto conforme as suas necessidades. Conversando com as ideias de Morin, a página e a publicação editorial são objetos que têm relações complexas entre seus elementos e o leitor e, como afirma o autor, neste caso, “é necessário aceitar uma certa imprecisão e uma imprecisão certa”.
Também é importante ressaltar que a hierarquia não é neutra, pois a sua importância estética e ética revela que ela é uma condutora da leitura, direcionando a observação dos destaques na página. Seria o metadado do texto, uma “etiquetagem”, ordenando e hierarquizando realmente a importância e relevância de cada uma das informações apresentadas, mudando as suas conexões e influenciando diretamente na sua compreensão final.
Uma das teorias utilizadas para análise, distribuição e inter‐relação entre os elementos é a Gestalt. Gomes Filho (2003), apresenta os sete fundamentos básicos dessa teoria: a segregação, a semelhança, a unidade (ou unificação), a proximidade, a continuidade, o fechamento e a pregnância.
Para entender um pouco sobre o funcionamento dessa teoria, podemos buscar alguns exemplos de como essas forças podem influenciar na informação e interpretação em um material gráfico. Não é raro encontrarmos materiais disponíveis na internet ou em qualquer meio impresso que mostram como a inobservância em relação a esses conceitos básicos do Design podem aumentar a dissonância na comunicação e, por isso, baixar a sua pregnância, definido por Gomes Filho (2003) como um princípio em que
[...] as forças de organização da forma tendem a se dirigir tanto quanto o permitem as condições dadas no sentido de clareza, da unidade, do equilíbrio, da Boa Gestalt, enfim. (GOMES FILHO, p. 24, 2003)
seguir. Isso, para um livro didático, quando, em geral, estamos lidando com um leitor aprendiz e com pouca experiência, as consequências podem ser ainda mais desastrosas.
Figura 5 – Imagem de um exemplo de página dupla de revista. O elemento no meio do texto da segunda página dificulta a leitura pois o leitor fica em dúvida em relação a ordem de leitura.
Há casos em que o leitor, mesmo lendo o texto pelas duas opções de ordem de leitura, não saberá ao certo qual foi a opção do designer, podendo causar erros de interpretação do texto. Essa confusão se explica, pois em cada uma das ordens de leitura há, pelo menos, um fundamento da Gestalt influenciando o olhar e a interpretação desse leitor. Um deles, a proximidade, que direciona o nosso olhar para a coluna da direita, por ser a mais próxima visualmente do primeiro trecho. O outro, a continuidade, nos direciona para o módulo inferior primeiro seguindo a lógica de leitura da página anterior. Com isso, a página diminuiu a sua pregnância seguindo a sua organização visual e facilidade de leitura.
Além de se ater a essas ligações entre os elemento, sua hierarquização e pregnância, o editor de arte é responsável por analisar as linguagens não‐verbais que estarão contidas no livro didático e sua coerência com as linguagens verbais presentes.