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Financiamento público da P&D

3. CONHECIMENTO

3.3 CUSTOS E RISCOS DA PESQUISA & DESENVOLVIMENTO

3.3.2 Financiamento público da P&D

Uma das justificativas para a tipificação econômica de bens (Figura 2) é a de que, em se tratando de bens públicos necessários à sociedade (segurança nacional, por exemplo), devi- do à sua falta de exclusividade de acesso e de rivalidade de uso, os bens dessa natureza, por eficiência econômica, deveriam ser fornecidos pelo Estado. A explicação para essa opção está lastreada no efeito carona (freeriding), o qual é causado por usuários que não pagam pelo produto ou serviço (free-riders), mas usufruem desses benefícios como se pagantes fossem, aproveitando a carona disponibilizada pela impossibilidade de fornecimento seletivo do pro- duto ou serviço ou, noutra linguagem, da impossibilidade de exclusão do seu acesso a esses benefícios. No caso da segurança nacional, por exemplo, mesmo que fosse legalmente possí- vel66, o Estado não dispõe de meios67 para identificar os cidadãos com débitos relacionados

66 Sobre a ilegalidade aqui mencionada, vide artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988).

aos tributos de fomento da segurança pública, e, ainda que a identificação fosse factível, não seria fisicamente possível defender apenas a parte da população que estivesse quite com todas as suas obrigações tributárias. Na outra via, em razão da mesma impossibilidade de excluir os usuários não autorizados do acesso aos recursos disponibilizados, os empreendedores priva- dos não têm interesse em fornecer bens dessa natureza (públicos).

Posto que haja justificativas lastreadas na natureza de bem público do conhecimento para que este seja fornecido pelo Estado, seria oportuno, em contraposição a essas justificati- vas, comparar a estratégia de fornecimento de inovação pela Administração Pública à de abas- tecimento de produtos adotada pela extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), com base nas anotações de Ludwig von Mises, em “O Cálculo Econômico sob o Socialismo” (Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014). Normalmente, num mercado compe- titivo, ainda que este não seja considerado perfeitamente competitivo, há uma relação de equi- líbrio entre demanda e oferta e, portanto, na pratica, não há oferta sem que haja uma demanda para ser suprida. Durante os primeiros quatro anos da revolução bolchevique, em razão da estatização dos meios de produção, o Estado precisava avaliar os desejos da população (de- manda) para determinar quais produtos e serviços seriam disponibilizados (oferta) aos mem- bros daquela sociedade. Para tanto, fora criado um comitê de planejamento central que, à exceção de produtos e serviços triviais (alimentação básica, aquecimento residencial etc.), por probabilidades estatísticas, acertava apenas uma porção da demanda social. Portanto, sem mencionar os descomedidos custos envolvidos nesse tipo de estratégia, por impossibilidade estatística de previsão, a URSS não satisfazia boa parte – se não a maior parte – das aspira- ções de consumo de seus cidadãos. Naquele período, não era incomum que os habitantes obti- vessem do Estado soviético bens que não desejavam em detrimento de não obter outros que realmente quisessem68. No caso da P&D, sem equilíbrio de mercado (interação entre as forças

67 Considerando-se os custos de transação envolvidos numa improvável identificação e monitoramento individu- al de cada cidadão, mesmo diante de todos os avanços tecnológicos ocorridos nesse setor (celulares com GPS, identificação por rádio frequência etc.), não se trata de uma hipótese factível, pois os custos de controle (exclu- são) superam seus benefícios (pagamento de tributos).

68 Essa é uma das justificativas expostas por Ludwig Von Mises [1881-1973] para explicar a ineficiência econô- mica do socialismo. A justificativa, em resumo, é que a produção moderna é extremamente complexa e diversifi- cada; que somente um sistema de preços e lucros pode orientar (com eficiência) os investimentos; e que, sendo o Estado o detentor de todos os meios de produção, sem o instituto da propriedade privada, não há informação ou incentivos suficientes para um sistema de produção eficiente. Para exemplificar, é como se um cidadão desejasse um tênis (demanda), mas o Estado, entendendo se tratar da demanda por um calçado e tentando fornecer o pro- duto mais adequado para toda população, entregasse-lhe um par botas (oferta) – mesmo que se tratasse de calça- dos confortáveis e duradouros, não era em botas que morava o interesse daquele cidadão, o qual, por óbvio, permanecia frustrado com os produtos e serviços fornecidos pelo Estado.

de demanda e oferta), assim como ocorrera no socialismo das URSS, como garantir que as escolhas realizadas pelo Estado, por mais justificáveis que sejam estas, estejam alinhadas às expectativas da sociedade civil?

O conhecimento, matéria-prima da inovação, por ser um bem não-rival e não- excludente, como demonstrado (item 3.1), é um bem público. Ainda assim, apesar da força do argumento relativo às externalidades de estoque69 geradas pela Pesquisa & Desenvolvimen- to, o investimento estatal, principalmente em desenvolvimento e inovação, não faria frente aos desafios que se apresentam diante de uma sociedade com necessidades distintas e crescentes. Nesse sentido, não custa relembrar do comitê de planejamento central da União das Repúbli- cas Socialistas Soviéticas para, trazendo aquela experiência ao campo da P&D, discutir quais os critérios o Estado usaria para escolher esta ou aquela tecnologia em que investir. A título de provocação, se as atividades de Pesquisa & Desenvolvimento fossem uma responsabilida- de estatal, quais seriam as inovações disponíveis?

Numa economia planificada, em que as decisões (sobre quais produtos e serviços de- vem ser oferecidos à população) são tomadas por um comitê central de planejamento, dificil- mente haveria Google, WhatsApp, Easy Taxi etc. – mantendo-se os exemplos atrelados ape- nas ao setor de serviços. É provável que, nos dias de hoje, boa parte da população considere esse tipo de serviço imprescindível para a vida moderna, mas, na hipótese de uma economia planificada assumir o controle daquilo que seria fornecido pelo Estado, é improvável – para não dizer impossível – que um comitê central de planejamento ofereça tais serviços. Em uma economia de mercado, durante o desenvolvimento de produtos e serviços inovadores, milhões de tentativas de sucesso naufragam, mas, quando um serviço como o Facebook, por exemplo, é bem recebido pelos consumidores, seu crescimento é vertiginoso. Por outro lado, numa eco-

69 No caso do conhecimento, durante toda a sua produção (considerando as fases – sempre misturadas – de a- prendizado, de aplicação e, especialmente, de compartilhamento) ocorrem externalidades positivas de estoque, que é o acúmulo (estoque) de benefícios gerados por etapas que, muitas vezes, são anteriores aos processos de Pesquisa & Desenvolvimento. Quando uma empresa fabricante de cosméticos, por exemplo, inicia suas pesqui- sas para o desenvolvimento de um produto baseado no conhecimento tradicional de comunidades indígenas (externalidade de estoque), há um aproveitamento desta vantagem para, no mínimo, dar indícios de aplicação para o produto em desenvolvimento. Esse estoque de conhecimento é considerado uma externalidade porque, de acordo com o conceito aplicado ao termo pelos microeconomistas (Pindyck & L.Rubinfeld, 2010), os benefícios da dianteira proporcionada à indústria de cosmético em questão não são internalizados pela comunidade indígena que o desenvolvera. Ainda conforme Pindick (2010), além de causar um investimento aquém do ideal para o desenvolvimento tecnológico e econômico, as externalidades positivas podem ir se aglomerando até gerar um resultado acumulado, também considerado uma falha de mercado, que afeta outros produtores e consumidores. Trata-se de externalidades positivas de estoque, as quais, em matéria de P&D, no Brasil e no mundo, devido ao acúmulo de conhecimento produzido e por se tratar de forte incentivo à falta de envolvimento do setor privado, têm sido utilizadas como argumento para subsídios governamentais à produção do conhecimento.

nomia planificada, as decisões relacionadas à disponibilização de produtos e serviços à popu- lação são planejadas e, por isso, o Estado não erra tanto quanto o mercado. Contudo, quando um comitê de planejamento estatal erra no quesito do fornecimento de produtos e serviços, ele o faz em larga escala e, por isso, os prejuízos são igualmente vertiginosos. Portanto, enquanto a economia de mercado acerta pelo erro, a economia planificada, apesar de falhar menos, erra em larga escala.

Avaliando os incentivos relativos aos interesses particulares de mercado, também não é possível deixar toda a P&D a cargo da iniciativa privada porque há setores específicos que apresentam falhas de mercado, como é o caso, por exemplo, dos medicamentos para doenças

negligenciadas70. Os tratamentos para essas doenças, os quais exigiriam investimentos relati-

vamente baixos (se comparados aos demais produtos) não é disponibilizado pela indústria farmacêutica em função de que tais doenças estão restritas a populações em situação de ex- trema pobreza (sem condições de arcar com o custo de desenvolvimento e produção desses medicamentos). Devido a falhas de mercado como essa, em que a iniciativa privada não tem incentivos para fornecer produtos suficientes para o suprimento da demanda, cabe a hipótese de atuação do Estado. Ainda assim, essa atuação não necessariamente precisa ser direta em termos de P&D, podendo ser realizada, por exemplo, por meio de estratégias de fomento à inovação – tributação específica, crédito mais fácil para empresas inovadoras, prêmios para pesquisas etc.

Não bastasse a dificuldade de escolha daquilo que deve, ou não, ser financiado pelo Estado, há outro empecilho para que o Estado assuma processos de P&D: o custo. Para exem- plificar mais este obstáculo, estudos do Tufts Center for the Study of Drug Development (2013) indicam que, atualmente, o desenvolvimento de uma nova droga, com inovação radical (nova molécula, nova rota de obtenção de produto biotecnológico etc.) custa, em média, USD 1,2 bilhões. Normalmente esses números são produzidos pela indústria farmacêutica interna- cional, um grupo seleto de grandes players conhecido por “Big Pharma” e, portanto, seria um excesso de ingenuidade tomá-los como referência exata71. Afinal, os membros das Big Phar-

mas têm todo interesse do mundo em dizer o quão custoso é o desenvolvimento de novos me-

70 Doenças negligenciadas é um conceito adotado para um grupo de doenças que afetam, quase exclusivamente, as populações dos trópicos. Fazem parte dessa lista, por exemplo: Doença de Chagas, Cisticercose, Tripanosso- míase africana, Leishmaniose, Esquistossomose e Tracoma (WHO, 2013).

71 Uma contestação interessante acerca dos números apresentados pela Tufts Center for the Study of Drug Deve- lopment pode ser encontrada em “O Outro Lado da Pílula ou Os Bastidores da Indústria Farmacêutica” (St-Onge, 2006).

dicamentos para, a partir desses números, justificar seus lucros. De qualquer maneira, mesmo que os custos não estejam perfeitamente mensurados, eles servem de referência e, por isso, têm se tornado um indicador para quaisquer players envolvidos no setor de medicamentos – Estado, indústria farmacêutica etc. Mantendo esta parte da análise atrelada à hipótese de de- senvolvimento de novos medicamentos, o Ministério da Saúde, em 2012, teve um orçamento de R$ 91,7 bilhões (Ministério da Saúde, 2013). Considerando a referência da Tufts Center

for the Study of Drug Development (2013), com esse dinheiro, caso não houvesse qualquer

outra obrigação (consultas, hospitais, equipamentos, pessoal de apoio etc.) a cumprir, o Mi- nistério teria, em tese, orçamento para desenvolver trinta novos medicamentos por ano. Se a Pasta da Saúde pudesse financiar apenas um medicamento novo por ano, isso (talvez) fosse suficiente para manter um ritmo razoável de inovação no setor, mas, não é preciso frequentar o SUS, para entender que o Ministério da Saúde não pode retirar bilhões de reais do seu caixa para investir em P&D de novos medicamentos72 – mesmo se o Brasil considerasse os benefí- cios relativos às inovações produzidas. Enfim, ponderando somente as dificuldades orçamen- tárias dos Estados, sem mencionar a falta de expertise desses atores nas etapas posteriores à pesquisa básica, bastaria a menção a valores bilionários de desenvolvimento para mantê-los, incluindo o Brasil, fora dessa competição.

3.4 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO

Neste capítulo, realizou-se uma tentativa de deixar claro que criar faz parte da natureza humana e que, por isso, o conhecimento, principal produto da energia inventiva do ser huma- no, vem evoluindo há mais de dois milhões de anos, mesmo sem qualquer sistema de proprie- dade intelectual. Assim sendo, baseado na simples combinação do fato de que o marco legal dos direitos de propriedade intelectual é de 1474 com o fato de que, ainda assim, sempre hou- vera avanços no conhecimento, é possível concluir que continuaria havendo desenvolvimento da produção intelectual mesmo sem a adoção e manutenção de qualquer regime de PI.

72 A Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio de um grupo especializado de estudos – Consultative Expert Working Group on Research and Development: Financing and Coordination – recomenda que, no futuro, os países se reúnam e invistam 0,01% do seu Produto Interno Bruto (PIB) para o tratamento de doenças negli- genciadas, afetadas diretamente por falhas de mercado (WHO, 2013). Nesses termos, lastreado nos valores do PIB de 2012 (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, 2013), o Brasil teria que investir aproximadamente R$ 0,44 bilhões por ano. Embora o Ministério da Saúde não tenha os números consolidados, se houvesse um tratado obrigando o País a cumprir a recomendação da OMS, o Brasil estaria em apuros orça- mentários, pois, em termos de investimento estatal em P&D para o tratamento de doenças negligenciadas, o Ministério da Saúde não está nem perto dos valores recomendados.

Mais adiante, foi exposto que a natureza de bem público (praticamente sem rivalidade de uso e exclusividade de acesso) do conhecimento faz dele um forte candidato ao forneci- mento estatal. Essa conclusão decorre da incidência sobre o conhecimento de um dos mesmos problemas atrelados a recursos de natureza semelhante: subinvestimento. Apesar de não sofrer com a sobre-exploração, visto que o excesso de uso não extrai nada de suas qualidades – ocor- rendo, inclusive o inverso: mais uso significa mais crescimento e evolução – o conhecimento,

ex ante sua produção, sofre – demasiadamente – as consequências do subinvestimento.

Além da natureza de bem público do conhecimento, que é a causa fundamental do su- binvestimento que acomete o recurso, os custos e riscos relacionados com as atividade de Pesquisa & Desenvolvimento formam um obstáculo considerável à evolução do conhecimen- to público. Entre outras variáveis não exploradas aqui, os custos de P&D estão diretamente relacionados com as diferenças entre as fases que envolvem um produto ou serviço da banca- da até a prateleira. Mais especificamente, essas distinções entre as etapas ocorrem devido à necessidade de haver diferentes players, com suas próprias especializações (bancada, merca- do, contratos de transferência etc.), e isso gera exorbitantes custos de transação. Não bastasse esse problema, ainda há que se considerar que o processo de Pesquisa & Desenvolvimento (& Inovação) é um tabuleiro de apostas no qual, enquanto uns raros projetos se salvam, muitos outros afundam, levando consigo os custos neles investidos (sunk cost).

Outro obstáculo à evolução do conhecimento como um recurso tratado neste capítulo foi a diferença de retorno entre o privado (apropriado pelo criador) e o social (usufruído pela sociedade como um todo) no processo de inovação. Isso acontece em razão das externalidades positivas (benefícios dos quais o inventor não consegue se apropriar), as quais, quando rela- cionadas com a evolução do conhecimento, são muito maiores para a sociedade que para o criador.

Além da recomendação tradicional do fornecimento de bens públicos pelo Estado, até este ponto, foram detectados consideráveis obstáculos à produção de mais recursos intelectu- ais. O que trouxe o texto ao questionamento de que, portanto, o fornecimento desses bens poderia, realmente, ser uma obrigação estatal. No entanto, entre as inúmeras dificuldades de colocar tal hipótese em prática, alguns obstáculos basilares foram expostos na dissuasão dessa teoria. Embora, nalguns casos em que há falhas de mercado, tenha restado clara a necessidade de entrada do poder público na seara da inovação, ficou igualmente claro que, uma vez não configuradas tais falhas, os custos e riscos envolvidos no processo de P&D não podem ser

suportados pelo Estado. Ademais, caso fosse factível (em termos de orçamento) à estrutura estatal tomar para si as atividades de Pesquisa & Desenvolvimento, quais seriam as inovações disponíveis? Essa é uma questão que envolve escolhas as quais, como restou provado durante o funcionamento do comitê central de planejamento da URSS, uma nação não dispõe de fer- ramentas adequas para realizar – só um sistema de preços pode fazê-lo com eficiência.

Se a produção do conhecimento é benéfica para a sociedade; se, tratando-se de bem público, o livre acesso à informação produzida seria a melhor opção (ex post) de disponibili- zação do conhecimento; e se, sendo disponibilizado por meio do livre acesso, haveria mais e mais “Tragédia dos Stradivari”, como resolver o problema técnico (ex ante) da falta de incen- tivo para o ponto ótimo de produção do conhecimento? Noutras palavras, como reduzir o “ (Des) Incentivo à Inovação”?

4. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

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