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NATUREZA DE BEM PÚBLICO DO CONHECIMENTO

3. CONHECIMENTO

3.1 NATUREZA DE BEM PÚBLICO DO CONHECIMENTO

Tratando-se da análise econômica de recursos, há uma diversidade de conceitos, tanto provenientes do Direito quanto da Economia, que se assemelham e acabam por confundir os praticantes da AED. Por isso, na expectativa de evitar conflitos conceituais, embora o Princí- pio da Parcimônia não tenha sido descrito em “Metodologia”, este trabalho manter-se-á fiel à

Navalha de Occam56. Assim sendo, a presente dissertação vai desconsiderar as classificações

tradicionais de bens jurídicos, referindo-se aos bens imateriais em estudo (PI), simples e tão- somente, como criações humanas, ou ainda, como criações provenientes da energia inventiva do espírito humano, conforme proposta de Barbosa (2003, pp. 34-35), na definição de bens intangíveis.

No início deste capítulo, explicou-se como o ímpeto de criação do conhecimento faz parte da natureza humana e, ainda, como ocorre a evolução desse conhecimento em atendi- mento às utilidades de seu criador, mesmo sem o estabelecimento de qualquer regime de pro- priedade privada sobre as criações provenientes da energia inventiva do ser humano. Desco- brir se apropriação privada deve, ou não, ser aplicada ao recurso do conhecimento é uma ava- liação da utilidade que será apresentada um pouco mais tarde (no capítulo 4). Por ora, é ne- cessário responder uma das perguntas fundamentais acerca dos direitos de propriedade que foram propostas por Cooter & Ulen (2010) – “o que deve ser objeto de apropriação privada?” – e, para tanto, é imperativo classificar o conhecimento. Assim sendo, seguindo a proposta dos autores – posto que a classificação do conhecimento, per si, não permita uma conclusão pela manutenção da apropriação privada da produção intelectual – a tipificação serve para dizer se o conhecimento, em seu estado natural, carece de apropriação privada.

56 Também conhecido como Princípio da Parcimônia, o Corte de Occam, assim chamado em homenagem ao frade inglês Willian de Occam [1285-1347], é um princípio lógico segundo o qual, na presença de diversas pos- sibilidades de conceitos aplicáveis a um objeto de estudo, é mais “econômico”, no sentido de ser mais parcimo- nioso, adotar o critério mais simples.

Considerando, então, as características necessárias à tipificação econômica de bens (exclusividade de acesso e rivalidade de uso), conclui-se que o conhecimento é um bem pú- blico. No que tange à exclusividade de acesso, variando entre fácil e difícil (Figura 2), uma vez publicado, é praticamente impossível excluir usuários não autorizados (free-riders) do acesso ao conhecimento. Nesse sentido, a título de exemplo, vale citar as músicas57 que, uma vez disponibilizadas pelos seus criadores ao público, são imediata e facilmente copiadas mun- do afora, mesmo que os titulares dos DPI sobre as canções não as ofereçam pela internet. No quesito “rivalidade de uso”, variando entre baixa e alta (Figura 2), a classificação do conhe- cimento poderia ser considerada inferior à baixa, mais do que não-rival, caso houvesse esta hipótese no quadro de “Tipos Econômicos de Bens”. Isso acontece com o recurso porque i- númeras pessoas podem usar o mesmo conhecimento ao mesmo tempo, e, ainda que diante de uma utilização maciça, este bem não sofreria qualquer diminuição (quantitativa ou qualitati- va) de seus atributos. Conservando o exemplo no campo da música, todos os habitantes deste Planeta com acesso à rede mundial de computadores podem, ao mesmo tempo, realizar o

download do mesmíssimo arquivo musical, sem isso retire a qualidade do recurso. Isso posto,

numa tipificação econômica, sem a adoção de direitos de apropriação privada sobre a produ- ção intelectual, cumpre reiterar que o conhecimento é um bem público.

Segundo os preceitos das ciências econômicas, os bens públicos devem ser fornecidos pelo Estado porque, dentre outras razões, não é possível excluir os usuários não autorizados do acesso a esse tipo de recurso e, em função desse efeito carona (freeriding), os fornecedores privados desses bens não têm incentivos para abastecer o mercado. Com base nessa justifica- tiva, há quem defenda a manutenção do Estado na promoção da Pesquisa & Desenvolvimento – mais em “Externalidades Positivas Geradas pelas Atividades de P&D” (item3.3.1). Todavia, a classificação do recurso não leva em consideração o momento de sua criação, pois, no caso do conhecimento, apesar de o recurso ser base para mais conhecimento, como camadas de concreto que vão se sobrepondo numa construção, isso só ocorre ex post sua criação. Então, visando uma análise de sua evolução (crescimento), o que ocorreria, ex ante, com a produção do conhecimento sem a possibilidade de aplicar direitos de apropriação privada sobre a pro-

57 Em função do custo de controle sobre as cópias não autorizadas de músicas realizadas pela internet, tem se tornado uma discussão comum, não apenas no âmbito da AED, a utilidade social da manutenção dos DPI sobre tais ativos. Afinal, embora os modelos matemáticos variem, é possível que, dada a facilidade de reprodução não autorizada e a dificuldade de fiscalização, os custos de proteção desses direitos já tenham superado os benefícios de incentivos que eles gerariam.

dução intelectual? Ou, de maneira mais prática, que aconteceria se não houvesse um sistema de propriedade intelectual vigente?

3.2 (DES) INCENTIVO À INOVAÇÃO

Embora o termo já tenha sido citado no presente trabalho, a necessidade de uma deli- mitação formal de inovação ainda não havia sido identificada por aqui. No entanto, doravante, não é possível avançar sem descrever algumas características conceituais do termo. Este texto adotará o conceito de inovação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Eco- nômico (OCDE):

Uma inovação é a implementação de um produto (bem ou serviço) novo ou signifi- cativamente melhorado, ou um processo, ou um novo método de marketing, ou um novo método organizacional nas práticas de negócios, na organização do local de trabalho ou nas relações externas (Manual de Oslo - Proposta de Diretrizes para Coleta e Interpretação de Dados sobre Inovação, 2005).

Em “Metodologia”, mais especificamente na nota 10, é possível verificar que a inten- ção inicial deste trabalho era manter o foco na análise da legislação nacional e, se possível, usar preferencialmente referências brasileiras. Entretanto, em razão do Princípio da Parcimô- nia, a legislação do País não parece adequada ao estudo do tema. Na verdade, o obstáculo relativo ao uso da legislação nacional para delimitação do termo, na análise em separado, nem é a falta de simplicidade – vide o conceito (simples) adotado na Lei de Inovação58: “introdu- ção de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços” (BRASIL, 2004). Ocorre, no entanto, que, além daquele presente na Lei nº 10.973/2004, há outros conceitos pairando pela legislação do País, como é o caso, por exemplo, da explicação adotada pela Lei do Bem59: “considera-se inovação tecno- lógica a concepção de novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias in- crementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado” (BRASIL, 2005). Devido à falta de harmonia, ou melhor, em função da falta de unidade conceitual da legislação nacional, o presente texto manterá sua opção pelo conceito da OCDE, já que o manual da Organização, com orientações sobre o tema, é internacional-

58 Lei nº 10.973, de 2 de dezembro 2004, que dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecno- lógica no ambiente produtivo e dá outras providências (BRASIL, 2004).

59 Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, que, entras atribuições, dispõe sobre incentivos fiscais para a ino- vação tecnológica (BRASIL, 2005).

mente aceito. Ademais, um dos objetivos centrais da OCDE é padronizar conceitos e metodo- logias para a construção de estatísticas e indicadores de P&D (OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, 2005), e que, portanto, encontra-se em conso- nância com a proposta de simplicidade e amplitude deste estudo – mais informações sobre a discussão conceitual acerca do tema em “Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inova- ção: Avaliação do Marco Regulatório e seus Impactos nos Indicadores de Inovação” (Mendes, Oliveira, & Pinheiro, 2013).

De volta à questão fundamental que fora colocada para ser respondida aqui, já se sabe que, ex post, o conhecimento, sendo matéria-prima para sua própria evolução, é mais eficiente para a geração de novos conhecimentos quando se torna público. Mas o que ocorreria, ex an-

te, com a produção do conhecimento sem a possibilidade de aplicar direitos de apropriação

privada sobre criações do intelecto humano?

Considerando o momento anterior à produção do conhecimento, ex ante, suponha-se a inexistência de direitos de propriedade sobre o conhecimento produzido. Nesse cenário, em- bora as criações provenientes da energia inventiva do ser humano continuassem ocorrendo, como mencionado no início do capítulo 3, não haveria um estrutura de incentivos organizada para a criação de mais conhecimento.

No caso das inovações, em se tratando da atuação racional na maximização de sua própria utilidade, um agente só optaria por continuar investindo na produção de mais conhe- cimento se – e somente se – os benefícios auferidos por ele superassem os custos atrelados ao seu esforço. Embora os custos sejam mais simples de se entender, num cenário de ausência de DPI, os benefícios atrelados à produção intelectual costumeiramente não estão claros para aqueles que estão se aventurando num contato inicial com a propriedade intelectual. Como exposto em “Metodologia”, maximizar a utilidade não significa aumentar os rendimentos ad- vindos das atividades de Pesquisa & Desenvolvimento e, igualmente, “benefícios” não é sinô- nimo de valores pecuniários que possam ser auferidos por um criador a partir de suas cria- ções. Na escala de utilidade dos criadores, esses benefícios podem estar ligados ao prazer de realizar algo especialmente novo, à vontade de solucionar problemas (seus ou de terceiros), à curiosidade de se manter estudando um tema que seja realmente instigante etc. Enfim, há vá- rias outras recompensas relativas à inovação que podem entrar na análise marginal (custo- benefício) dos criadores.

Contudo, sem o estabelecimento e manutenção de um regime de PI, a falta de um sis- tema de apropriação privada das produções intelectuais pode manter em subótimo o nível de incentivo à inovação. Consequentemente, com uma estrutura de incentivos aquém da deseja- da, o nível de novas criações úteis, apesar de se manter crescente, ficará abaixo do desejado (subótimo) pela sociedade. Um exemplo verídico – e trágico – desse baixo nível de incentivos à inovação ocorreu com os Stradivari e, numa espécie de advertência, será exposto no quadro abaixo.

Figura 3: Tragédia dos Stradivari

Histórico da Tragédia

A família Stradivari, conduzida pelo luthier Antonio Giacomo Stradivari [1644-1737], produzia instru- mentos de corda (violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, violões e harpas). Ainda hoje, os instrumen- tos Stradivari, notadamente os violinos construídos nas primeiras décadas do século XVIII, são conside- rados o ápice da sonoridade em cordas. As técnicas construtivas aplicadas àqueles magníficos violinos continuam sendo motivo de debate e ainda não são totalmente conhecidas, nem por luthiers daquela época, nem por cientistas da atualidade. O fato é que os instrumentos Stradivari possuem uma sonorida- de ímpar, superior a todos àqueles construídos desde então, e, apesar de diversas descobertas científicas, restam inúmeras dúvidas sobre as técnicas desenvolvidas pelo discípulo de Nicola Amati [1596-1684] (Sacconi, 1979). Por mais que se tenha insistido – e que se continue persistindo –, nos últimos 300 anos, ainda não foi possível copiar violinos com a mesma sonoridade extraível de um legítimo Stradivarius, pois não há registros suficientes da sua tecnologia de produção e, portanto, não seria incorreto alegar que se trata de uma sonoridade perdida (Sacconi, 1979). Mas o que aconteceria se, por exemplo, via título de patente emitido pelo Estado, Antonio Giacomo Stradivari pudesse proteger eficazmente suas criações da concorrência realizada por meio de cópias não autorizadas de seus instrumentos?

Opções

Talvez a família Stradivari se mantivesse fiel ao meio que utilizava para proteger sua tecnologia única da apropriação pela concorrência: o segredo industrial60. Ainda hoje, em tempos de DPI, quando um inven- tor consegue manter suas criações em sigilo, esta é uma opção muito atrativa, pois, ao contrário do que ocorre com as patentes, um segredo não tem prazo para findar. Na contramão deste benefício, no entan- to, uma vez que um segredo industrial seja (lealmente) descoberto pela concorrência, não há proteção legal aplicável à invenção. Então, esse tipo de avaliação entre os possíveis mecanismos de apropriação e proteção do conhecimento (patente versus segredo industrial) ainda se trata de um dilema comum aos empreendedores pós-TRIPS. Portanto, não é possível afirmar que, diante da possibilidade de proteger sua arte por meio do patenteamento, a família Stradivari tivesse optado por esta alternativa.

Resultados Possíveis

Contudo, diante da possiblidade de proteção formal, via direitos de propriedade intelectual, haveria uma

60 “Os segredos industriais são toda e qualquer informação relativa à fabricação ou que diz respeito ao negócio que é mantida em sigilo, e que, via de regra, propicia a seu detentor algum tipo de vantagem diante de seus con- correntes” (CNI - Confederação Nacional da Indústria, 2013).

opção a mais para Stradivari considerar e, por isso, uma hipótese a mais de sobrevivência de sua tecno- logia única. Afinal, para a concessão de uma patente, o luthier deveria descrever suficientemente61 sua invenção, possibilitando a reprodução de uma cópia fiel do instrumento. Mais ambiciosamente, seria possível pensar até em avanços tecnológicos, provenientes da contribuição de futuros luthiers, sobrepos- tos ao processo de fabricação singular de Stradivari (Andersen, 2003). Estabelecida a continuidade da fabricação de cópias daqueles instrumentos, toda a sociedade, e não apenas músicos especializados em cordas, seria beneficiada pela sonoridade extraída dos violinos reproduzidos (ou até melhorados) de acordo com as especificações do mais célebre gênio da luthieria.

Vislumbrada a possibilidade de outras tragédias, como a que sucedera com os instru- mentos Stradivari, num ambiente no qual se queira promover a inovação, mesmo que boa parte dos criadores continue optando pela manutenção do segredo sobre suas criações, é soci- almente útil dar a eles a opção de realizar uma barganha com o Estado. Afinal, na prática, os direitos de propriedade intelectual são apenas uma barganha proposta pelo Estado, na qual os criadores revelam o conhecimento que tenham produzido em troca da propriedade temporária sobre sua produção intelectual ora revelada. O Estado, por sua vez, alterando a estrutura de incentivos dos demais agentes, em função de todo o conhecimento desvendado ao fim da va- lidade da proteção conferida, obtém mais desenvolvimento.

Após ciência da possibilidade de tragédias relacionadas à extinção de soluções inova- doras para a satisfação de necessidades humanas devido à impossibilidade de sua apropriação formal, é preciso esclarecer os custos e riscos envolvidos no processo criativo. Esses custos e riscos são os mais fortes argumentos para se entender o trade off que os criadores enfrentam no momento de decidir entre continuar investindo na produção de uma obra intelectual ou não. É relativamente óbvio que o custo de reproduzir obras intelectuais inovadoras é invaria- velmente inferior ao de sua produção inicial (Shapiro & Varian, 1999), bastando realizar o

download de uma música na internet para entender que esse (baixo) custo de copiar não en-

volve explicações de maior complexidade. Contudo, os custos e riscos envolvidos nas ativi- dades de P&D, são demasiadamente complexos e carecem de uma exposição mínima de suas particularidades, especialmente daquelas relacionadas com os obstáculos da Pesquisa & De- senvolvimento realizada pelo Estado (item 3.3.1).

61 O princípio da suficiência descritiva está resumidamente descrito no artigo 24 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996: “[o] relatório deverá descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a possibilitar sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de execução” (BRASIL, 1996).

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