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Fissuras no controle da distribuição e dos direitos de transmissão

No documento YouTube: a nova TV corporativa (páginas 78-84)

Para o público das faixas de renda mais baixas, o acesso à internet em banda larga é uma alternativa à televisão por assinatura, por exemplo. Hoje, há um número razoável de internautas que se mobilizam para con- seguir, através da internet, assistir a um evento esportivo com televisiona- mento restrito. Com o sugestivo título de “Conheça a 'TV a gato' do sé- culo 21”, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma reportagem descre- vendo a transmissão de uma partida de futebol pela internet, com sinal de vídeo captado, irregularmente, da emissora que detinha os direitos de transmissão:

Em um pequeno quarto, onde mal cabem duas camas, um armário e uma geladeira, A. J. se acomoda em frente ao computador e põe o fone de ouvido sem fio. Com alguns cliques, ele abre na tela do mi- cro a imagem de um jogo de futebol prestes a começar. A janela de seu MSN Messenger não para de piscar e seu filho pequeno corre por todos os lados do quarto, para desespero de sua mulher, que tenta fazer de tudo para controlar o diabinho.

A. J. respira, calça os chinelos, clica no mouse e fala ao microfone do fone de ouvido. “Opa... Estamos começando mais uma trans- missão aqui na AJ TV. Hoje o jogo é São Paulo e Goiás. O árbitro errrrgue a pata e apita! Bola rolando!”

Quem vê A. J. assim, falando para o monitor, não imagina que qua- se 2 mil pessoas o estão ouvindo naquele momento. Pois é: ele tem uma web TV do time do São Paulo, a AJ TV. Por esse canal de tele- visão online, A. J. transmite, via internet, todos os jogos do tricolor paulista - inclusive os fechados, da TV a cabo ou do pay-per-view (O Estado de S. Paulo, 2007).

Em alguns casos, segundo a reportagem, os torcedores chegam a pagar pelo direito de receber a transmissão clandestina. A qualidade de imagem e áudio, além do atraso do sinal em relação ao jogo, que pode variar de 15 segundos a quatro minutos, são desvantagens desconsideradas, pois o tor- cedor releva isso diante da oportunidade de poder assistir ao seu time pre- ferido em campo: “O grande público consumidor das webTVs são torce- dores que moram em lugares distantes de seus times do coração” (O Es- tado de São Paulo, 2007).

A operação é totalmente ilegal, mas a própria estrutura em rede, em que se baseiam as comunidades de fãs e que origina a mobilização em tor- no da transmissão da partida, dificulta a repressão. Em maio de 2007, um pequeno grupo de internautas brasileiros conseguiu romper os obstáculos impostos pela detentora da exclusividade de transmissão das corridas de Fórmula 1 no Brasil.

O relato a seguir é a experiência de um estudante de jornalismo de Jo- inville, Santa Catarina. Fã de Fórmula 1, no dia 13 de maio de 2007 ele re- correu a uma rede própria de informações e a um site português para as- sistir ao final do Grande Prêmio da Espanha. A corrida teve a sua trans- missão interrompida pela Rede Globo, única detentora dos direitos de transmissão do evento para o território brasileiro, que optou por transmi- tir a missa de beatificação de Frei Galvão celebrada pelo Papa Bento XVI em São Paulo:

Uma semana antes da corrida, o blog de Fábio Seixas (fabioseixas.- folha.blog.uol.com.br) antecipou que a Rede Globo não transmiti- ria a prova integralmente. No dia da corrida, procurei na internet

alguma emissora que transmitisse o evento ao vivo. Dois sites do exterior, especializados em TV pela web, redirecionaram a trans- missão de redes estrangeiras: sopcast.com/player e tvtuga.com. O primeiro tinha como opção uma emissora japonesa e, o segundo, uma emissora inglesa. Optei pela rede inglesa, que passou a corrida na íntegra e em tempo real, com apenas um intervalo comercial. (Roelton Maciel, 19 anos, em depoimento ao autor) (Ribeiro, 2007).

Não está em discussão, neste livro, a legalidade de tais atitudes. O que é relevante é o fato de que este é um comportamento típico do ambiente de convergência, em que os mecanismos de regulação e controle técnicos e legais sucumbem diante da oferta de oportunidades trazidas pelo avanço da tecnologia digital. O desrespeito aos direitos autorais e de exclusivida- de de transmissão não é uma novidade da convergência digital, mas a utili- zação da estrutura em rede para compartilhar tecnologia, inteligência e re- cursos para cometer esta irregularidade é um comportamento emergente.

O sistema de televisão aberta brasileiro está inserido em um sistema maior de comunicação social, como já foi explicado. As relações entre os dois sistemas se dão através de um complexo conjunto de trocas de infor- mações e “energias”: níveis de audiência, nível cultural, desenvolvimento social, desenvolvimento tecnológico, verba publicitária etc. Como em qualquer sistema aberto, cada ação ou iniciativa de um dos componentes gera uma reação, ou feedback, do componente imediatamente atingido. Quanto mais complexo e aberto é um sistema, maior é o número de ações e reações entre seus componentes, mas o conjunto se mantém equilibrado.

O que mantém o equilíbrio da TV aberta é o domínio dos mecanismos de controle dessas reações complexas, por componentes que têm maior poder de decisão e influência sobre o sistema. Essas decisões, e sua influ- ência, são administradas de maneira que a TV atinja os seus objetivos, que são definidos por seus controladores. Na TV comercial, os controladores são as empresas de comunicação, os anunciantes, a estrutura político go- vernamental e o público consumidor, em ordem decrescente de poder de acesso aos mecanismos de controle. Os objetivos do sistema, então, são a geração de lucro, a manutenção político governamental e a oferta de con- teúdos de informação e entretenimento. Johnson (2003) afirma que, nos

sistemas dominantes, ou seja, naqueles já consolidados e em estado de equilíbrio, o controle é decidido de cima para baixo, ou top down, a partir do feedback gerado pelos componentes com menor poder de influência. É o caso da TV aberta no Brasil.

Ocorre que mudanças no ambiente em que um sistema está inserido podem provocar comportamentos emergentes de seus componentes: ati- tudes e reações que não se ajustam ao padrão esperado de feedback. Mui- tas vezes, esse comportamento emergente não gera maiores consequênci- as dentro do sistema: é absorvido ou assimilado pelos componentes vizi- nhos, mais afetados por sua reação inesperada, e pode mesmo não surtir efeito algum. Outras vezes, o comportamento fora do padrão pode gerar consequências que abalam o sistema dominante de tal forma, que provo- cam o desequilíbrio. Esse desequilíbrio pode resultar em mudanças no sis- tema dominante, que passa a incorporar o comportamento emergente dentro de seus padrões; o desequilíbrio pode arruinar o sistema, provo- cando o caos; ou os comportamentos geram outro sistema, um sistema emergente (Jonhson, 2003).

O comportamento emergente só gera um sistema emergente quando proporciona um sistema com objetivos próprios e funções diferentes do sistema do qual se originou. Por isso, ainda é cedo para saber se os com- portamentos emergentes de compartilhamento de vídeo, de desrespeito aos direitos autorais e de produção descentralizada de vídeo podem gerar outro sistema dominante de produção e distribuição de conteúdo audio- visual. Já é possível afirmar que essas atitudes são cada vez mais comuns e, se não geraram um sistema dominante, já originaram uma série de siste- mas paralelos, cujos impactos atingem diretamente o modelo de negócio da TV aberta.

Além de tornar frágil o controle sobre a distribuição de vídeo, a con- vergência tecnológica proporcionou mudanças na relação de consumo do conteúdo. Uma delas é tida pelas emissoras de TV como uma grande ameaça à sua forma de manutenção e, na TV digital, passa a ser uma carac- terística intrínseca ao sistema: o controle sobre a grade de programação e a exibição dos programas. A TV digital oferece ao telespectador a possibi- lidade de gravar no decodificador, ou no próprio aparelho de TV, os pro- gramas exibidos. Existe até mesmo a possibilidade de evitar os comerciais.

Mesmo que os intervalos sejam mantidos na gravação, nada impede que sejam evitados durante a exibição. Segundo Donaton, isso já é suficiente para as redes de TV, agências de publicidade e anunciantes repensarem a antiga fórmula que mantém esse setor desde o início:

Nos últimos cem anos, o negócio da propaganda se baseou no mo- delo da intrusão. Mais do que isso, houve verdadeira devoção a ele. A intrusão dos publicitários quase nunca foi bem-vinda, mas era aceita pelo consumidor como um mal menor, um preço a pagar pelo rádio e pela TV de graça. O modelo emergente vira a situação de ponta-cabeça. O consumidor, com o poder que ganhou, tem cada vez mais instrumentos à disposição para driblar os intervalos comerciais. Quando ele decide que vale a pena assistir a eles, diga- mos, enquanto pesquisa para a compra de um carro novo, ele prefe- re usar a internet ou o PVR13 para obter exatamente o conteúdo

publicitário que procura. Uma vez que os anunciantes perdem os meios para invadir os lares e a mente dos consumidores, vão ter de resignar-se a aguardar um convite para entrar. Isso significa que te- rão de aprender quais os tipos de propaganda que os consumidores estão dispostos a procurar ou receber (Donaton, 2007, p. 27). Para o autor, a tendência é a publicidade e o entretenimento se integra- rem cada vez mais, de maneira que a mensagem publicitária faça parte dos programas e até mesmo passe a ser “buscada” pelos internautas e telespec- tadores. É importante esclarecer que não se trata simplesmente do já co- nhecido merchandising, que é a inserção de publicidade nos programas, entre os intervalos comerciais. Donaton cita, como exemplo bem sucedi- do, a campanha da BMW para o lançamento do modelo X5, em 2000. A fabricante de automóveis financiou a produção de oito curtas de dez mi- nutos, com atores e diretores do “primeiríssimo escalão de Hollywood” (Donaton, 2007, p. 103). O autor afirma que foi impossível conseguir os dados exatos, mas, pelos valores de mercado da época e por pesquisas jun-

13 Personal Video Recorder, qualquer dispositivo – software ou equipamento – com grandes possibili- dades de gravação personalizada e programável, que permita a gravação de programas transmitidos pela TV. Os conversores de TV digital e os aparelhos receptores já fabricados para atender ao SBTVD-T oferecerão essa possibilidade. Nos Estados Unidos, ficou popular o aparelho conhecido como TiVO, ao ponto de a marca ser usada como sinônimo para qualquer sistema de gravação de vídeo digital aco- plado ao televisor.

to a diversas fontes, chegou a um investimento próximo dos 15 milhões de dólares, sendo que apenas 15% foram usados para a veiculação de pro- paganda, e o restante para a produção dos filmes, uma proporção fora dos padrões da indústria da publicidade. A grande inovação foi priorizar a vei- culação pela internet, disponibilizando os vídeos gratuitamente:

O número de vezes que o filme foi visto cresceu até chegar à casa dos milhões, e depois à casa da dezena de milhões. E as propagan- das parecem ter funcionado. Pesquisas com consumidores indica- ram que a imagem da BMW foi fortalecida, especialmente entre compradores jovens, e também que o carro passou a fazer parte de mais listas de desejos de compra dos consumidores. As visitas às concessionárias subiram espetacularmente e – mais importante – o mesmo aconteceu com a venda nos Estados Unidos. A BMW ven- deu um número recorde de 213.127 veículos em 2001, 12,5% a mais do que no ano anterior, e depois bateu o próprio recorde em 2002 e 2003, apesar da recessão da economia americana e do preço relativamente alto dos seus carros de grande performance (Dona- ton, 2007, p. 107).

A iniciativa pioneira mostrou dois caminhos abertos pela convergên- cia: a utilização da internet como alternativa à radiodifusão e a oportuni- dade de contato direto com o público-alvo, através de um conteúdo capaz de atrair por não trazer uma mensagem única. Os filmes não apelavam apenas para o produto, mas para os vários contextos que cercam esse pro- duto e que despertam o interesse de públicos tão diferentes quanto um executivo de sucesso e um jovem e rico aventureiro. Mas existem infinitos caminhos proporcionados pela convergência.

Na seção a seguir, o maior portal de vídeo da web, o YouTube, será comparado à TV digital aberta – levando-se em consideração inclusive as suas possibilidades tecnológicas que ainda não estão sendo aplicadas. A comparação tem como objetivo prospectar as oportunidades e as dificul- dades que o ambiente digital de comunicação oferece aos dois meios.

No documento YouTube: a nova TV corporativa (páginas 78-84)